Edição nº 542

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 15 de outubro de 2012 a 21 de outubro de 2012 – ANO 2012 – Nº 542

As bibliotecas
da cana

Estão armazenados 380 mil clones bacterianos
com fragmentos de DNA de duas variedades


O biólogo Danilo Sforça acaba de construir duas bibliotecas de Bacs (em português Cromossomo Artificial de Bactéria) que somam um pouco mais de 380 mil clones bacterianos contendo fragmentos de DNA de duas variedades de cana: a SP80-3280 (221.184 clones) e a IACSP93-3046 (165.888 clones). Representam quatro vezes o genoma completo da planta, feito inédito no mundo. A cana plantada hoje é um híbrido entre o cruzamento das espécies Saccharum spontaneum e Saccharum officinarum.

Trocando em miúdos, o biólogo construiu um recurso genético e genômico para estudo da cana e uma plataforma de seleção rápida de clones Bacs, agilizando o uso das bibliotecas por pesquisadores que desejem encontrar genes ou outros tipos de sequências no genoma da cana. Assim, pode-se recuperar um gene com todas as suas cópias variantes em poucas horas. 

“A nossa biblioteca está pronta, é fácil de ser utilizada e é representativa”, assinala ele. Vieram da França para o Brasil em agosto e poderão ser consultadas no ano que vem, uma vez que falta fazer uma cópia de segurança.

Elas são um recurso genético pois, com esse material, compreende-se melhor a genética da cana; e é genômico pois, com seus clones, pode-se obter informações do genoma diretamente, como o sequenciamento de pedaços do genoma, de genes e de qualquer região que se queira desvendar.

Exceto essas, há só mais uma biblioteca representativa do genoma, de cerca de 100 mil clones, construída por um grupo americano de uma variedade de cana francesa, a R570.

O objetivo do pesquisador era encontrar rapidamente a sequência completa de genes de interesse à agricultura bem como de seus variantes, proeza que apenas é uma realidade com essa biblioteca.

Danilo contou com a colaboração da pesquisadora Mônica Conte e foi orientado pela professora Anete Pereira de Souza, do Instituto de Biologia (IB) e do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG). Teve ainda apoio do grupo da professora Hélène Berges, do Centro Nacional de Recursos Genômicos (CNRGV) do Instituto Nacional de Pesquisas Agronômicas Francês, de Toulouse. 

Melhoramento

O Brasil tem a maior área plantada de cana-de-açúcar no interior de São Paulo, que produzirá, na safra 2011/2012, mais de 308 milhões de toneladas, o equivale a 54% do total a ser produzido no país. Dependendo da variedade e região, pode-se obter em média 75-85 toneladas por hectare.

Essa planta é uma cultura bianual e, após o seu plantio, pode levar um ano e meio para poder crescer bem. Necessita de muita água, temperaturas elevadas e muita radiação solar para se desenvolver. Pode ser plantada em três épocas diferentes, dependendo da área de plantio: sistema de ano-e-meio, sistema de ano e plantio de inverno. O produtor procede aos cortes todos os anos (cada ano em uma área) e, depois, vem o replantio.

Os projetos genomas podem sequenciar o genoma completo ou só os genes. O genoma da cana é grande e cheio de sequências repetidas, dificultando o seu sequenciamento e organização, por isso o genoma completo ainda não está sequenciado e não há unanimidade quanto à melhor estratégia para isso. Vários grupos lidam com suas táticas para chegar a ele.

Há projetos de sequenciamento do genoma completo da cana ou de partes dele espalhados pelo mundo. O Brasil efetuou um genoma parcial da cana, no qual uma porção do genoma foi sequenciada pelo cDNA, um DNA complementar, representando os genes da cana. E outros grupos vêm repetindo tal sequenciamento com tecnologias modernas como as de nova geração, com as quais se vai mais longe.  

Outros grupos ainda refizeram o sequenciamento de genes e de outras regiões do genoma pois, com a pesquisa, notou-se que era fundamental saber a região onde não havia genes funcionando.

Mesmo ninguém sabendo a melhor abordagem para o sequenciamento do genoma completo, uma coisa é certa entre os pesquisadores: ter Bacs que representam o genoma completo para sequenciar conduzirá a um resultado mais fiel.

Esse processo é urgente, situa a docente, pelas informações no genoma que ajudam a obter variedades mais produtivas e adaptadas aos solos brasileiros. O maior beneficiado será o melhoramento genético, sobretudo em áreas agrícolas com condições climáticas desfavoráveis.

“Já plantamos em regiões de solo pobre e devemos plantar em regiões secas. É preciso ter genes que confiram adaptabilidade a diferentes condições de solo e clima limitantes à cultura. Precisamos dos genes e da região de controle deles, que está na parte que não é gene; com isso faremos variedades de cana para uma agricultura mais sustentável”, pondera Anete. Os dados do genoma poderão guiar o trabalho do melhorista no campo. 

Hoje nota-se um nítido interesse na produção de álcool a partir do bagaço de cana usado nas usinas para queima, resultando na produção de energia. Dessa forma, a usina produz grande parte da energia da queima do bagaço para o funcionamento de suas máquinas, sem gastar com a compra da energia elétrica produzida pelo governo. “Há usinas em que o excedente de energia produzida queimando o bagaço pode ser vendido às cidades ao redor”, expõe Anete.

Outra vertente do bagaço é a produção de etanol. Por isso, equipes de melhoramento de cana buscam genes ligados à degradação do bagaço pelo acesso da celulose ao ataque químico ou biológico por fungos.

Variantes

O interesse de Danilo era ver a variação dos genes da cana, já que esse genoma diverge dos mamíferos e de outras plantas. O homem, por exemplo, recebe duas cópias de cada cromossomo do seu genoma: uma cópia vem do pai e uma da mãe. Então ele é diploide. Para cada gene, tem pelo menos dois variantes ou alelos.

No caso da cana, ela pode receber de seis a 12 cópias de cada um de seus cromossomos. E essas cópias podem vir em número variável dos genitores. Por isso, a cana é poliploide. Para cada gene, ela tem de seis a 12 variantes ou alelos.

Para entender a importância do número de variantes dos genes no genoma, basta analisar o caso de alguma doença genética, como a fenilcetonúria, no homem: se ele tiver os dois variantes do gene defeituosos, será doente. Se tiver um variante e o outro não, pode não ser doente. Mas, se for dominante, basta um variante defeituoso para a doença ocorrer.

Essa situação é mais complicada para a cana, que possui dez cromossomos que podem estar repetidos de seis a 12 vezes em cada gene. Além disso, o total de cromossomos é variável no caso da cana cultivada, por ela ser um híbrido entre duas espécies. 

Para estudar como e quanto os genes e seus variantes influenciam no parecimento de uma característica, é preciso ter todas formas variantes do gene em mãos, saber sua sequência e as regiões que regulam seu funcionamento. A única forma rápida é ter uma biblioteca de clones com pedaços do genoma completo.

O maior empecilho à obtenção de uma biblioteca de Bacs que represente o genoma completo da cana está no tamanho do genoma e nas sequências repetidas em grande quantidade.

Comparativamente, o tamanho do genoma do sorgo, também usado na produção de etanol, tem 750 megabases. Já o genoma da cana tem dez gigabases (dez mil megas). É 14 vezes maior que o do sorgo. 
Apesar do grande tamanho do genoma, o número dos genes da cana não deve ser diferente daquele de outras plantas com genomas menores. Além do número de variantes de cada gene, o genoma possui muitas sequências repetidas, responsáveis em parte pelo seu tamanho. São elas que dificultam os projetos de sequenciamento do genoma completo da cana.

Seleção rápida

Este trabalho é ímpar por somar duas variedades de cana adaptadas ao Brasil em uma biblioteca capaz de buscar genes de interesse às condições de cultivo brasileiras e é um recurso que deve alavancar a pesquisa mundial da cana. “Queremos que engenheiros, biólogos, farmacêuticos usem as nossas bibliotecas”, convida a docente.

Elas permitirão fazer trabalhos básicos, como chegar a um gene específico e pegar a sua sequência na biblioteca, a trabalhos mais complexos, como buscar uma região comum a vários genes, avisa Danilo.

Haverá uma pessoa treinada para ensinar a selecionar os clones Bacs na nova plataforma. Com isso, em poucas horas, a seleção será feita mediante reações de amplificação de DNA (PCRs), e o pesquisador recuperará o gene desejado com as cópias variantes. Poucos grupos no mundo, entre eles o de Anete e Danilo, detêm essa tecnologia.

Para ganhar acesso aos mais de 380 mil clones, será preciso construir mais três plataformas. Cada qual permite acesso imediato a 110 mil clones. Nos próximos meses, será construída uma segunda plataforma de modo que os 221.184 clones da biblioteca para a variedade SP80-3280 estarão disponíveis ao acesso rápido.

Esse trabalho integra um temático do Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia, o Bioen. Por meio dele, Danilo fez um estágio de oito meses no CNRGV, onde montou as bibliotecas de Bacs e a plataforma, tecnologias que servem ao estudo genômico de qualquer espécie de planta, animal ou microrganismo. 

Essa biblioteca teve desmembramentos. O seu autor já selecionou 700 clones de Bacs com a nova plataforma, que foram transferidos para o Instituto de Ciências Biomédicas da USP, para o seu sequenciamento no projeto Genoma da Cana-de-Açúcar da Fapesp.

Outra parte do estudo envolvia saber se as bibliotecas tinham um tamanho ideal de clones a partir de fragmentos de uma dada variedade de cana. A conclusão foi que sim. Os clones estão com um tamanho de DNA muito bom: 100-120 mil pares de bases.

Agora o biólogo está na segunda etapa do projeto. Avalia a variação de genes únicos na cana com quatro equipamentos adquiridos: um robô para rearranjo de bibliotecas, um sequenciador de nova geração, um biofreezer com backup e um espectrômetro de massas, alcançados com recursos do Bioen e do INCT Bioetanol do CNPq.

Outros recursos estão para chegar, vindos do projeto CeProbio, apoiado pelo CNPq e Comunidade Europeia. “O país já pode se orgulhar da contribuição que as bibliotecas de clones Bacs trarão à pesquisa genética e genômica em cana”, conclui Anete.