Edição nº 533

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 30 de julho de 2012 a 05 de agosto de 2012 – ANO 2012 – Nº 533

No vai-da-valsa


 

Em tempos de domínio do samba, uma valsa tem enorme sucesso. É Lábios que beijei, composição de J.Cascata e Leonel Azevedo. Desde a primeira gravação, pela RCA Victor, em 1937, Lábios faz história na música popular brasileira. O intérprete dos versos tristes que choram a perda da amada é Orlando Silva, o “cantor das multidões” e seu arranjador, Radamés Gnatalli. Os historiadores escrevem que a valsa é uma das primeiras a incluir o naipe de cordas, proveniente da música erudita, em composições populares no Brasil. A escolha foi feita por Gnatalli, que na época já era compositor e intérprete consagrado. A carreira de arranjador não foi menos brilhante até sua morte, em 1988, e a antiga valsa sempre foi lembrada pelos fãs e críticos como um belo exemplar de toda a inventividade de Radamés. Tal unanimidade pode, no entanto, conter certos equívocos. É o que constata a dissertação de mestrado “Tua imagem permanece imaculada. Radamés Gnattali e seu arranjo para a valsa-canção: ‘Lábios que beijei’", de Geremias Tiófilo Pereira Júnior, orientada pelo docente Roberto Cesar Pires, do Instituto de Artes (IA) Unicamp.

Músico formado pela Unicamp e também pelo Conservatório de Tatuí, Geremias sempre traz consigo, além da flauta transversal e da clarineta, seu saxofone. Foi a partir deste instrumento que entrou em contato com o universo de Gnatalli: ouvindo o “Concertino para saxofone alto e orquestra”. Como aluno especial da pós-graduação em Música no IA, voltou-se para os arranjos e então decidiu estudá-los no mestrado. Lábios que beijei foi intensamente analisada pelo viés técnico em oposição ao viés histórico. “Eu quis confrontar tudo o que dizem de Lábios com o que pode ser descrito no papel, musicalmente.” Assim, Geremias buscou a partitura da valsa na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Não encontrando, decidiu fazer por conta própria. A transcrição detalhada do arranjo foi parte da investigação. “Evidentemente ouvindo a valsa, em razão da qualidade da gravação, posso ter deixado passar algum instrumento. Mas tentei ser o mais fiel possível ao arranjo original”.

O resultado permitiu que o músico levantasse várias hipóteses. A principal é que, ao contrário do que se supunha, as combinações propostas são, de certa maneira, bastante tradicionais, “comuns até”, diz o pesquisador.  “Nessa época, Radamés tomou por base os arranjos de Pixinguinha, que utilizava bastante a flauta transversal, instrumento característico do choro, em seus arranjos. Se ele inovou o arranjo brasileiro, em minha opinião não foi nesse momento”, salienta. Mesmo a inclusão das cordas na música popular, Geremias explica que, três anos antes de Lábios, músicos norte-americanos já tinham inovado nesse campo.

Outra ideia posta em comparação é a que as cordas teriam maior expressão no arranjo de Gnatalli. “Analisei quantos compassos têm as cordas em relação à flauta transversal e pude verificar que os dois instrumentos têm o mesmo peso.” Para o autor, é a flauta transversal quem dialoga com Orlando Silva enquanto as cordas fazem o background de notas paradas, uma base para a melodia. A flauta transversal também seria em menção ao choro e teria ainda, na valsa, a mesma importância primordial que tem a guitarra no fado português. A melodia triste também é reforçada pelo som de dois clarinetes que operam “numa região bem grave, obscura”.

Segundo Geremias, piano, bateria e contrabaixo fazem a marcação rítmica contínua no arranjo, numa alusão à dor da perda do personagem da canção. As cordas são a sustentação harmônica e o violoncelo chama a atenção em um solo. “É lindo porque o instrumento preenche grande parte do interlúdio instrumental e é tocado numa região aguda, aproveitando o talento de Iberê Camargo Grosso” afirma. Ao todo, são 9 instrumentos utilizados no arranjo.

O autor da dissertação considera que o sucesso que a valsa alcançou, projetando a carreira tanto de Orlando Silva quanto de Radamés (que continuaram por mais 10 anos a parceria), se deve também aos intérpretes dos instrumentos: além de Iberê como violoncelista, a primeira gravação de Lábios tem Luciano Perrone na bateria, o violinista Romeu Ghipsman e o próprio Gnatalli no piano. Geremias estava em dúvida apenas se na flauta transversal estava Dante Santoro ou Pixinguinha. Ligou e foi atendido por José Menezes, músico do Sexteto de Radamés Gnatalli. Ele confirmou que era mesmo Dante Santoro (que improvisaria menos que Pixinguinha embora a flauta estivesse “muito à vontade”, como descreve o pesquisador).

Outras duas entrevistas, com o músico Paulo Moura – falecido em 2010, e Laércio de Freitas, também do Sexteto, constam na dissertação. O objetivo do autor foi se aprofundar mais na história do arranjo brasileiro, antes de tentar entender Gnatalli em Lábios que Beijei.

Arranjadores

Radamés Gnatalli era arranjador da gravadora RCA Victor, junto com Pixinguinha, na época em que a indústria fonográfica começa a se estabelecer no Brasil. A comparação entre os dois no período foi inevitável. Pixinguinha acabou sendo visto como patrimônio e tradição, enquanto Radamés era o novo, o inovador.

A dissertação recupera um momento antes, quando os arranjadores eram os músicos que sabiam escrever a partitura de melodias cantadas por músicos que não conheciam exatamente a grafia musical. Há aqueles que saíram do teatro de revista e foram para o rádio, entre eles Anacleto de Medeiros.

Na época de Gnatalli e Pixinguinha, o arranjador tinha um papel importantíssimo porque não apenas escolhia os instrumentos como também determinava quais seriam os intérpretes. “Hoje, com algumas exceções, o arranjador não tem muita autonomia. Quem determina tudo é o produtor. Isso se confirmou com as entrevistas que eu fiz, principalmente com Paulo Moura”, afirma Geremias.

O autor também relembra outros grandes nomes do arranjo, em referências em sínteses biográficas. Ele ressalta, por exemplo, o trabalho do maestro Odmar Amaral Gurgel, o “Gaó”. “Ele tem um nível de performance muito próximo do Radamés Gnatalli, no entanto não é lembrado”.

Gnatalli seria quase que um fenômeno midiático, “obviamente sem retirar seus méritos”, observa o pesquisador. Isso se deve principalmente ao sucesso do programa “Um milhão de melodias”, que estreou em 1943 na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, e foi até 1966, sob a direção de Radamés.

De Lábios que Beijei, o autor da pesquisa fez o levantamento de outras 23 regravações desde a primeira, em 1937. “Para entender a influência do arranjo de Radamés Gnatalli até hoje, todas as versões se relacionam com ele diretamente, destacando as cordas”. Gravações de Ângela Maria em 1956, de Jacob do Bandolin, em 1959, de Caetano Veloso (com Jaques Morelenbaum no violoncelo) são citadas por Geremias como as mais representativas. A mais recente é de Mônica Salmaso em 2011, com piano, voz e flauta transversal.

As conclusões do pesquisador o fazem concordar com outros trabalhos acadêmicos na área da música que colocam o arranjo original no mesmo status de uma composição. “Além da composição de Lábios, temos outra composição embutida, que é o arranjo de Gnatalli. Conseguir identificar uma música pelo arranjo é algo que deve ser respeitado, como uma composição”.

  • Publicação

Dissertação: “Tua imagem permanece imaculada. Radamés Gnattali e seu arranjo para a valsa-canção: Lábios que beijei”.
Autor: Geremias Tiófilo Pereira Júnior
Orientador: Roberto Cesar Pires
Unidade: Instituto de Artes (IA)