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Jorge Lima
 

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Estudo cobrindo o período de 1964 a 2002 mostra por que as políticas sociais não funcionam no Brasil

O desmonte do projeto de Estado social e a distribuição de migalhas



LUIZ SUGIMOTO



(Foto: Antoninho Perri)Fila do posto de saúde, fila do posto da Previdência, fila do emprego, fila do ônibus, a escola precária das crianças, a aposentadoria rala, a despensa vazia, a rede de esgoto que não chega, o sonho cada vez mais distante da casa própria, a terra nunca dividida. Por que as políticas sociais no Brasil não funcionam? Em lugar de respostas compartimentadas da literatura recorrente, por setores como os da saúde e da educação, o professor Eduardo Fagnani apresenta um trabalho raro, por se tratar de análise ampla, lúcida e pedagógica sobre o conjunto da política social no país, num período de quase 40 anos. Política Social do Brasil (1964-2002): Entre a Cidadania e a Caridade é a tese de doutorado defendida por ele no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, com orientação do professor João Manuel Cardoso de Mello.

“Diante da predominância das análises setoriais, segui a trilha que pesquisadores da Unicamp abriram na primeira metade dos anos 1980, buscando compreender a política social brasileira como um todo, pela análise do conjunto dos setores que a compõem. Hoje em dia há um reducionismo inaceitável na questão social. Quando a imprensa e os setores conservadores falam em política social, em geral se referem, apenas, a programas de transferência de renda do tipo Bolsa-Família e Bolsa-Escola. Esses programas são importantes, sim, mas como parte de uma estratégia de enfrentamento da questão social. O equívoco é achar que eles encerram a própria estratégia”, observa Eduardo Fagnani.

Segundo o professor, o enfrentamento da questão social não pode prescindir, em primeiro lugar, de políticas sociais universais clássicas: previdência social, assistência social, educação, saúde e seguro-desemprego. Em segundo lugar, considerando que o Brasil é um país de capitalismo tardio, essa estratégia também deve contemplar políticas sociais universais em setores como habitação popular, saneamento básico e transporte público, que acumulam problemas estruturais crônicos – já resolvidos nos países capitalistas centrais . Entram ainda a reforma agrária e, sobretudo, o mercado de trabalho. “Sabemos que a principal política social é o crescimento econômico, com geração de emprego e renda”, afirma.

O estudo de Fagnani tem como foco a Constituição de 1988, denominada por Ulysses Guimarães de “Constituição Cidadã”, que incorporou parcela substancial de uma ampla agenda reformista progressista (econômica, política e social) construída a partir da luta contra o regime militar e pela restauração do Estado Democrático de Direito. Foi quando o Brasil teve a grande chance de constituir um sistema de proteção social universal e igualitário, semelhante ao Estado de Bem-Estar Social implementado por países europeus nos “30 Anos de Ouro” seguintes à 2ª Guerra. “Quando se propõe uma agenda desse tipo, mexe-se com privilégios que estão arraigados há muito tempo”, observa o professor, que vai contar como os contra-reformistas derrubaram, desfiguraram ou simplesmente jogaram no lixo artigos que representavam importantes avanços na área social.

Eduardo Fagnani participou como pesquisador na Unicamp das fases inaugurais do Nepp (Núcleo de Estudos de Políticas Públicas) e do Cecon (Centro de Estudos da Conjuntura e Política Econômica), em meados dos anos 80. É professor de Economia Social e do Trabalho, vindo a integrar, mais recentemente, a equipe do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho). “A tese, na verdade, é uma síntese das reflexões que venho fazendo durante esse tempo”, explica. Os tópicos que seguem são transcrições da entrevista que o pesquisador concedeu ao Jornal da Unicamp.


1º MOVIMENTO

O professor Eduardo Fagnani, autor da tese de doutorado: "A estratégia  macroeconômica fragiliza a capacidade de intervenção do Estado" (Foto: Antoninho Perri)Identifico dois movimentos estruturais opostos e determinantes nesses quase 40 anos de política social no Brasil. O primeiro no sentido de construir as estruturas institucionais, de financiamento e de proteção social características do chamado Estado de Bem-Estar Social, um sistema universal e equânime semelhante àquele que a social-democracia européia constituiu no pós-guerra. Esse movimento vem desde os anos 1930, mas é a partir da crítica ao regime militar, no bojo do processo de redemocratização na sociedade civil de meados dos anos 70, que ele ganha impulso. São tempos de reorganização dos sindicatos, da Contag (e da pressão pela reforma agrária), dos sanitaristas etc. O outro movimento aponta no sentido contrário: da desestruturação daquelas bases, que ganha impulso nos últimos anos da transição democrática e, sobretudo, com o contra-reformismo neoliberal implementado entre 1990 e 2002.

Na agenda reformista progressista, a política social na ditadura era criticada pela forma de financiamento, cujas fontes tinham efeito muito limitado na redistribuição de renda. Eram poucos recursos fiscais e muitos recursos auto-sustentados que precisavam de retorno financeiro e, portanto, eram inacessíveis aos assalariados de baixa renda e aos miseráveis. Havia críticas, também, contra a excessiva centralização do processo decisório em certas agências do governo federal (como BNH e Inamps, por exemplo), excluindo-se a participação da sociedade civil e, assim, distanciando o foco da política social das reais carências da população pobre. O terceiro ponto atacado era a privatização do espaço público: naquele contexto autoritário, interesses empresariais e políticos tinham acesso privilegiado nos processos decisórios das políticas sociais, fazendo com que as decisões também se desviassem do objetivo central, o combate à miséria.

Quais eram as alternativas? Em relação ao financiamento, era preciso rever a tradicional subordinação da política social no âmbito da política econômica, assegurando maior disponibilidade de recursos fiscais para a área social. Contra a centralização, a grande bandeira era fortalecer a Federação, descentralizando poder político e recursos financeiros. Contra a privatização do espaço público, impunha-se a restauração do Estado Democrático de Direito, ampliando-se, assim, o controle social sobre os processos decisórios e a ação do Estado.

Percebe-se assim, no final dos anos 70 e começo dos 80, a formação de uma ampla agenda de reformas de cunho desenvolvimentista, democrático e redistributivo, por pressão de um movimento popular que teve como ponto alto a campanha pelas eleições diretas em 1983. Sabe-se, porém, que a transição democrática foi um pacto conservador, envolvendo setores que lutavam contra o regime e uma dissidência da Arena, o PFL. Entre 1985-86, segmentos progressistas do pacto, que passaram a ocupar pastas importantes da Nova República (Fazenda, Previdência Social, Saúde), tentavam avançar na implementação dessa agenda de reformas progressistas. Num segundo momento, em 1987-88, a luta por transformações deslocou-se para a Assembléia Nacional Constituinte.

A luta política na Constituinte foi árdua – “uma longa travessia”, como diria Ulysses Guimarães – mas desembocou na Constituição de 1988. Lendo a Carta, a única derrota significativa é a reforma agrária. Ali estava a maior parte das propostas da agenda reformista, como direitos trabalhistas, a autonomia sindical e a lei de greve. Na previdência social, a equiparação dos direitos dos trabalhadores rurais com os urbanos e a vinculação da aposentadoria com o salário mínimo. Introduziu-se o princípio da seguridade social e o orçamento da seguridade social. Destacam também a definição de fontes de financiamento para o seguro-desemprego, a reorganização da assistência social e a reforma urbana. Os defensores da escola pública obtiveram boas vitórias, como o reforço à vinculação de recursos para a educação. O SUS foi outra conquista extraordinária, que rompeu com a política privatista na saúde que vigorava na ditadura.

2º MOVIMENTO

Quando se propõe uma agenda como esta, mexe-se com privilégios arraigados há muito tempo. A quem beneficiava a política de saúde na ditadura? Aos grandes hospitais, à indústria farmacêutica, a interesses particulares poderosíssimos com vinculações na base política que apoiava a ditadura. A quem beneficiava a política centralizadora no MEC, que, por exemplo, comprava e distribuía a merenda escolar para os mais de 5 mil municípios brasileiros? Ou a política habitacional, se não à indústria da construção civil e ao setor financeiro? Da mesma forma, a vinculação constitucional de recursos para a área social contrariava os interesses das elites políticas e econômicas. O mesmo ocorria quanto aos novos direitos trabalhistas e sindicais. No plano ideológico, a Constituição de 88 batia de frente com o neoliberalismo, já hegemônico em âmbito internacional. Não se mexe com tudo isso sem uma reação.

Daí, o segundo movimento na política social do país, que é da desconstrução do sistema formalmente esboçado na Constituição de 88. Digo formalmente esboçado porque a Constituição é um instrumento frágil, que define princípios gerais. O SUS, por exemplo, está descrito em cinco artigos (196 ao 200). Na etapa seguinte, da regulamentação constitucional complementar, os cinco artigos foram transformados na Lei 8080 (1990), com mais de 50 artigos. E esta regulamentação constitucional vai ocorrer num ambiente absolutamente hostil.

Esse movimento rumo à desestruturação inicia-se no final do governo Sarney. Em 1987, há uma ruptura do pacto político da transição (a “Aliança Democrática”) e os setores retrógrados representados pelo PFL, comandados pelo presidente da República, retomam o centro do poder. A reação, que chamo de “primeiras contramarchas”, manifesta-se em diversas frentes. A primeira dentro da própria Assembléia Constituinte, com a formação do “Centrão”, orquestrada pela cúpula do governo e que no meio dos trabalhos propõe a mudança de regimento, o que implicava inclusive em rever leis já aprovadas após um ano de trabalho. Era uma clara tentativa golpista de impedir a tramitação da referida agenda reformista.

Outro episódio emblemático, na última etapa da Assembléia, em julho de 88, é o pronunciamento de Sarney em cadeia de rádio e televisão, advertindo que os constituintes tinham uma última chance de mudar o que haviam aprovado até então, sob risco de “o país se tornar ingovernável”. Os focos da ingovernabilidade, segundo ele, eram a seguridade social e a reforma tributária (que retirava recursos da União e repassava a estados e municípios). No dia seguinte, Ulysses Guimarães ocuparia a tribuna para um discurso memorável, afirmando que “ingovernável é a miséria” e intitulando a Constituição de 88 de “Constituição Cidadã”.

Aprovada a Constituição, veio o que se chamou de “Operação Desmonte”. Na preparação do Orçamento da União para 1989, é retirada uma série de despesas, cortando-se abruptamente investimentos que o Estado mantinha havia mais de 20 anos na área social. Outra trincheira se abriu em 1989, na etapa da tramitação da regulamentação constitucional complementar, quando os contra-reformistas descumprem todos os prazos, desfiguram artigos ou simplesmente ignoram a Carta. Um exemplo é a destinação de recursos das contribuições sobre o faturamento e o lucro (Cofins e CSLL), criadas com o fim específico de financiar a seguridade social, para finalidades não estabelecidas na Constituição, o que depois se perpetuou.

Finalmente, outra frente de contramarchas ocorre no âmbito da ação direta do Executivo. O caso emblemático é a reforma agrária, tema que voltou com força no congresso da Contag (1978), sendo assimilado pela Igreja e movimentos sociais, e acabou “assimilada” também pelo governo, que criou o Ministério da Reforma Agrária em março de 85. No mês seguinte, na discussão das primeiras propostas (baseadas no Estatuto da Terra, de 1964) com os proprietários de terras, veio a reação e o início do recuo do governo, com a reforma agrária voltando a ser assunto militar, tratado pelo Conselho de Segurança Nacional. Depois, em plena Constituinte, o governo federal extinguiu o Incra. Em 1988, com o apoio do Centrão e da UDR, a proposta de reforma agrária foi derrotada na Constituinte. A pá de cal deu-se em janeiro de 89, quando o Ministério da Reforma Agrária também foi extinto.

As políticas de habitação, saneamento básico e transporte público já atravessavam grave crise financeira no final do regime militar. Com a extinção abrupta do BNH, à crise financeira se sobrepôs uma crise institucional sem precedentes, uma paralisia decisória que se arrastou ao longo dos anos 90. Também na saúde houve contramarchas, quando as lideranças do movimento sanitário foram afastadas e a presidência do Inamps foi entregue ao médico particular de Sarney. Na educação, o continuísmo das práticas da ditadura era nítido, com a pasta sempre ocupada pelas maiores lideranças do PFL.

ANOS HOSTIS

Os anos 90 foram totalmente hostis à Constituição de 88. Desgraçadamente, ela chegou na contramão do que acontecia no mundo. No plano internacional, já havia ocorrido a ruptura com os compromissos dos “30 Anos de Ouro” (o pacto keynesiano do pleno emprego, o Walfare State), fruto da terceira revolução industrial, da reestruturação produtiva e do fim da guerra fria. No plano ideológico prevalecia o neoliberalismo. E, com a crise da dívida dos países subdesenvolvidos em 1982, esta agenda neoliberal passou a ser imposta ao terceiro mundo durante o processo de negociação com agências multilaterais como FMI e Banco Mundial. No plano interno, o Brasil sofria com restrições econômicas nada desprezíveis. A crise de 82 levou ao esgotamento do Estado Nacional Desenvolvimentista, que das décadas de 30 a 80 cumpriu a tarefa de industrialização tardia. Do ponto de vista político, assiste-se, a partir do Governo Collor, uma nova reorganização das forças conservadoras.

No que interessa para meu estudo, a política social, neste contexto internacional e interno adverso, são dois os focos do contra-reformismo neoliberal. Um deles é o mercado de trabalho, porque a legislação seria muito rígida e impediria a competitividade internacional, devendo-se suprimir os direitos trabalhistas – ou a idéia da flexibilização do mercado, que é a mesma coisa. O outro foco é o Estado do Bem-Estar Social, tido por esses ideólogos como a razão da crise fiscal nos países capitalistas centrais, devido ao excesso de intervenção do Estado.

Assim, se a Constituição de 88 enaltece os direitos sociais, a agenda neoliberal prega o assistencialismo. Ao invés de políticas universais, políticas focalizadas. Ao invés da seguridade social, que é a idéia de que todos estão dispostos a pagar para que todos tenham um mínimo, a agenda fala em seguro social, direito apenas de quem contribui. Ao invés do Estado interventor, o Estado regulador e a privatização dos serviços públicos. Ao invés do Estado do Bem-Estar Social, o Estado “mínimo”. Enfim, aos olhos das elites, a “Constituição Cidadã” virou “Constituição vilã”.

A revisão constitucional marcada para 1993 era o momento esperado pelas elites para enterrar a Constituição. Enquanto esperava, Collor promovia distorções na tramitação da regulamentação complementar. Por exemplo, na saúde, ele vetou 25 artigos, a espinha dorsal do financiamento; vetou integralmente a Lei Orgânica da Assistência Social; modificou também a Lei de Diretrizes e Bases da Previdência Social, incorporando inconstitucionalidades praticadas por Sarney. Acontece que, na hora de liquidar o jogo, veio o impeachment de Collor e todo um quadro de instabilidade política que impediu a revisão constitucional. De forma que a “modernização” da Carta de 1988 foi adiada e implementada em pequenas doses, em sucessivas contra-reformas e por leis tópicas, eficazes e bem-sucedidas, entre 1993 e 2002.

PLANO REAL

Uma medida importante tomada ainda no mandato-tampão de Itamar Franco, em 93, preparatória do Plano Real, foi a criação do Fundo Social de Emergência (atual Desvinculação das Receitas da União-DRU), permitindo que a União fique com 20% dos recursos vinculados (seguridade social, educação) e com 20% dos fundos de participação dos Estados e municípios. Era uma das muitas faces de um processo de recentralização fiscal, que afetaria diretamente as fontes de financiamento da política social.

A partir desse momento colocou-se em prática o Plano Real, uma estratégia macroeconômica absolutamente incompatível com o desenvolvimento social, por dois motivos: porque amplia a exclusão social e, simultaneamente, fragiliza a capacidade de intervenção do Estado em geral, e na área social em particular. A estagnação da economia estanca a mobilidade social. A regressão social é evidente.

O impacto sobre o mercado de trabalho é devastador, percebido, sobretudo, pela queda na renda e no aumento do desemprego e da informalidade. Em 1990, 60% do trabalho era com carteira assinada; em 2002, caiu para 40%. Sabemos que a carteira assinada é um divisor de águas entre a cidadania e a exclusão: possui direitos, quem tem emprego formal. É brutal a quantidade de pessoas que passaram a ser cidadãs de segunda classe. A queda da mobilidade social e a desestruturação do mercado de trabalho estão na base da chaga social que estamos vivenciando nos últimos anos, como a violência, o tráfico de droga, a prostituição infantil, a desestruturação das famílias etc.

De outro lado, essa estratégia macroeconômica provocou um estreitamento dramático das possibilidades de financiamento do setor público. Isso porque a necessidade de manter a taxa de juros elevada aumentou excessivamente a dívida pública. A dívida líquida total que era de 152 bilhões de reais em 94 (30% do PIB), passou para 881 bilhões em 2002 (55% do PIB) , em que pese a venda pelo Estado de mais de 90 bilhões em patrimônio. A resultante disso é o brutal crescimento do montante de juros pagos pelo setor público e a conseqüente imposição do ajuste fiscal permanente, com metas de superávit primário superiores a 4,5%do PIB.

VELHOS DE RUA

O ajuste fiscal foi o motor, por exemplo, da reforma na previdência social, que visou reduzir o que os contra-reformistas chamam incorretamente de “déficit da previdência”. Isso se fez substituindo os 35 anos de trabalho pelos 35 anos de contribuição, e estipulando 65 anos de idade para o homem e 60 anos para a mulher. A pergunta: com 60% do mercado de trabalho informal, quem vai poder comprovar o tempo para aposentadoria? Além disso, 65 anos de idade e 35 anos de contribuição é um padrão de países com um PIB per capita dez vezes maior e uma estrutura social e demográfica completamente distinta do Brasil. Armaram uma bomba de efeito retardado contra as próximas gerações, que estarão desprotegidas na velhice. Hoje, 90% dos idosos têm a previdência como única fonte de renda, e isso faz com que a linha de pobreza caia mais de 12 pontos. O que acontecerá no futuro?

O ajuste fiscal também levou à negligência com as políticas urbanas. Para se ter uma idéia, em habitação popular foram gastos, em média, cerca de 800 milhões de reais por ano, ou um total de 8 ou 10 bilhões entre 1993 e 2002. Enquanto isso, em decorrência do Plano Real, paga-se hoje cerca de R$ 500 milhões de juros por dia. Ou seja: vinte dias de juros equivalem a dez anos de investimentos em habitação popular. As cifras para o saneamento básico são as mesmas.

PARADOXO

Saúde, educação fundamental e assistência social foram marcadas por um paradoxo no período 1993-2002. Por um lado, há um inequívoco avanço institucional com o SUS (descentralização da gestão, vinculação de recursos, programas de médico de família e de agentes comunitários, o Piso da Atenção Básica, etc). Na educação fundamental, inaugurou-se uma nova postura, que avança no sentido de romper com a longa vigência do perfil tradicional de intervenção do Estado nesse setor, herdado da ditadura. Na assistência social, a lei orgânica foi aprovada e implementada a partir de 1993, extinguindo-se antigas estruturas (como Funabem e LBA) e implantando-se uma mudança institucional semelhante à da saúde.

O paradoxo nesses setores é que existe um avanço institucional, mas as restrições econômicas colocam em risco tais avanços. Para citar um único exemplo, observe-se que, corretamente, as três políticas foram assumidas pelos municípios e pelos governos estaduais. Ocorre que depois de alguns anos de profunda irresponsabilidade cambial, fiscal e da política monetária, que endividou e fragilizou as finanças dos municípios e estados, o Governo Federal impõe a “responsabilidade fiscal”, através de uma lei restritiva que, entre outras coisas, limita o gasto com pessoal em 50% do orçamento. Pergunta-se: basicamente, onde se localizam os gastos da educação fundamental e da saúde, se não com pessoal?

Um último aspecto da política social do período, absolutamente em acordo com a agenda neoliberal, é o progressivo crescimento da importância dos chamados programas de transferência de renda, os programas focalizados. É preciso esclarecer que, no primeiro mandato de FHC, o Programa Comunidade Solidária não tinha, rigorosamente, esse perfil. Ao contrário, procurava coordenar as ações voltadas para os setores mais vulneráveis no âmbito das políticas de corte universal. Todavia, no segundo mandato há uma clara inflexão, crescendo a importância dentro do governo das posições defendidas pelo FMI e Banco Mundial, amparadas pela área econômica do governo, que preconizam as políticas de focalização puras financiadas pelo desmonte das políticas universais.

Nesse contexto, há todo um discurso equivocado e mal-intencionado no sentido de iludir a opinião pública, sugerindo que as políticas universais atendem os “ricos”, considerando “rico” o sujeito que tem carteira assinada. Ou ainda aquele que está entre os 10% de maior renda, omitindo que a faixa inicial desse extrato de renda começa com cerca de 1,7 mil reais. Pergunto: um sujeito que ganha R$ 1.700,00 pode pagar hemodiálise, ter filho na escola privada? A proposta no segundo mandato de FHC é clara: acabar com os programas universais e transferir os recursos diretamente aos “mais pobres dentre os pobres” por meio de programas focalizados. Em suma, desde 1990, progressivamente, a focalização passa a ser vista pela direita como a política social possível nesses novos tempos de distribuição de migalhas.

COM LULA

Na tese, não analiso o Governo Lula. Mas é possível perceber a política social do PT numa perspectiva histórica e estrutural. O espectro do desmonte do sistema de proteção social de caráter universal e igualitário em favor do Estado “mínimo”, marcado pela crescente importância de programas de transferência de renda, continua a rondar os bastidores do poder no Brasil. Essa percepção apóia-se na constatação do contínuo e dramático estreitamento das possibilidades de financiamento do gasto social; no formidável poder, por vezes inacreditável, que as instituições internacionais de fomento continuam detendo na definição dos destinos da nação; no conservadorismo das nossas elites políticas e econômicas, retrógradas e predatórias, sempre vivo e sempre renovado; na persistente tentação pelo caminho fácil do assistencialismo e seu uso clientelista e eleitoral, revigorado na atual conjuntura de fragilização política do governo; e, por último, no retrocesso do movimento social organizado.

Esses fatos, somados ao atual contexto de fortalecimento da direita, não deixam dúvidas de que o que restou da proteção social conquistada em 1988 está sob forte fogo cruzado. As recentes propostas de “déficit nominal zero” ou de reforma constitucional são apenas algumas das frentes do ataque conservador revigorado. Esse jogo foi reiniciado e será travado no futuro imediato.

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