191 - ANO XVII - 23 a 29 de setembro de 2002
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A economista Cristina Helena Almeida de Carvalho: "Os objetivos quantitativos da Reforma foram atingidos" Estudo avalia expansão
do ensino superior privado

Dissertação de mestrado radiografa a Reforma Universitária e analisa o crescimento dos estabelecimentos particulares durante o regime militar

ÁLVARO KASSAB

O ensino superior privado brasileiro expandiu-se à sombra da renúncia fiscal concedida pelo regime militar, cujos ideólogos dispunham de uma máquina eficiente e complexa de incentivos, entre eles a injunção do Conselho Federal de Educação. Esta é a conclusão do estudo feito por Cristina Helena Almeida de Carvalho, economista que tomou a Reforma Universitária implantada em 1968 pelos militares como ponto de partida para o trabalho.

A pesquisadora tencionava, no início de sua investigação, entender o processo de crescimento das instituições a partir do levantamento de dados a respeito da transferência direta orçamentária. Logo constatou que os mecanismos usados pelos governos foram bem mais sofisticados. "Fui ingênua. Achava que elas haviam crescido por conta da injeção de dinheiro do governo. Ao mergulhar no Balanço Geral da União do período, vi que a história a ser contada era outra", revela.

O mergulho de Cristina não ficou restrito ao universo das peças orçamentárias. Reforma Universitária e os Mecanismos de Incentivo à Expansão do Ensino Superior Privado no Brasil (1964-1984), dissertação de mestrado orientada pelo professor Francisco Luiz Caseiro Lopreato, passa um pente fino no cenário político da época analisada, devidamente inventariada nos âmbitos internos e externos.

Já na parte introdutória do estudo, Cristina delineia o pano de fundo teórico e o contexto histórico subjacentes à Reforma Universitária e à expansão do ensino privado. Nesse cenário, foi fundamental o papel do desenvolvimentismo autoritário, materializado a partir do golpe de 1964 e traduzido na Teoria dos Estágios do Desenvolvimento Econômico, de Rostow. Seu ideário pregava que, por meio do processo histórico linear, a industrialização era o caminho comum dos países aspirantes ao desenvolvimento econômico. Logo adotada pelos militares, essa teoria foi alvo de críticas de teóricos -- minoria -- que desconfiavam da eficácia de sua aplicabilidade em países periféricos.

Outra teoria em voga na época, a do Capital Humano, que propunha a ampliação das oportunidades e o acesso à educação formal, sobretudo ao ensino superior, colocando o assunto no centro da agenda econômica, também foi esquadrinhada pela economista. "A escolaridade transformou-se em investimento e passou a desempenhar papel de setor prioritário e fator propulsor do desenvolvimento econômico", afirma. Hegemônica, a Teoria do Capital Humano foi, na dissertação, questionada por alguns especialistas que não acreditavam que apenas a escola serviria de ponte para a mobilidade social e para a redução da desigualdade de rendimentos. De acordo com os críticos do modelo, a trajetória socioeconômica dos pais e a estrutura segmentada do mercado de trabalho seriam outros fatores a ser relevados no processo.

Os condicionantes internos e externos também foram esmiuçados na dissertação. No âmbito externo, a Guerra Fria e a revolução comunista em Cuba formaram o embrião da Aliança para o Progresso, tratado pelo qual ficou evidente a influência dos Estados Unidos na América Latina. No caso do Brasil, por exemplo, a política da boa vizinhança resultou numa série de acordos assinados com a agência norte-americana USAID em todas as instâncias do ensino.

Assimetria - Com o golpe militar de 1964, o sonho de ver o país como "grande potência" esbarrava na crescente assimetria entre a demanda e a oferta de vagas no nível superior. A chamada "crise dos excedentes" surgia como um problema insolúvel. "Diante da insatisfação da classe média, aliada do governo à época do golpe, que vislumbrava a escolaridade formal como veículo de ascensão social, das manifestações públicas do movimento estudantil, e da pressão externa por meio das "recomendações" explícitas da USAID, o governo federal foi impelido a promover a Reforma Universitária", conclui a pesquisadora.

A arquitetura da trama de interesses privatistas formada na órbita da Reforma Universitária toma boa parte do trabalho da economista. Este recurso metodológico é elucidativo para a compreensão da dinâmica política que engendrou os debates sobre a expansão privada, o financiamento do sistema e a gratuidade do ensino público.

Para Cristina, os burocratas do Ministério do Planejamento, com a assessoria de especialistas contratados para forjar o novo aparato institucional, conduziram o processo, relegando os representantes do MEC a um papel secundário na política educacional.

Foram importantes também as participações de representantes institucionais como o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) e o Conselho Federal de Educação (CFE), bem como as dos atores sociais, entre eles o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) – órgão constituído por empresários de São Paulo do Rio de Janeiro com participação ativa no golpe militar de 1964 –, e a União Nacional dos Estudantes (UNE). Os dois últimos exerceram fortes pressões sobre o Congresso Nacional e a opinião pública, cujo resultado foi a combinação entre a proliferação de vagas privadas (IPES) e a continuidade do ensino gratuito nos estabelecimentos oficiais (UNE).

A investigação da trajetória do processo de expansão privada e a compreensão dos fatores de estímulo e de sustentação ao longo dos governos militares - eixo central do estudo – foram tratados na parte final da dissertação. A renúncia fiscal foi o principal mecanismo indireto de financiamento, responsável pela explosão do número de vagas nos estabelecimentos de ensino privado.

No caso das instituições consideradas sem fins lucrativos, por exemplo, a legislação era benevolente quanto à não-incidência de impostos sobre a renda, o patrimônio e os serviços dos estabelecimentos de ensino. Isto representava não recolher aos cofres públicos o IPTU e o ISS, de competência municipal, e o Imposto de Renda, de competência da União.

O rombo era ainda maior no caso das instituições de ensino consideradas "filantrópicas", que ficavam desobrigadas, ainda, em recolher quaisquer encargos relacionados à Previdência Social, entre eles FGTS, cota sobre o 13º, salário-família, Incra, Funrural etc. "Isto representava, em média, cerca de 24% de incidência sobre a folha de pagamento", diz Cristina, cujos cálculos foram feitos com base na legislação da época.

Outro mecanismo de incentivo fundamental foi a atuação institucional do Conselho Federal de Educação, que autorizou a abertura indiscriminada de escolas particulares em todo o País. Isto permitiu o crescimento extensivo de vagas em estabelecimentos isolados privados.

"Os objetivos quantitativos da Reforma Universitária foram atingidos. O espetacular crescimento de matrículas e instituições, ao longo dos governos militares, permitiu controlar a demanda reprimida e a crise dos excedentes", conclui a economista