| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 307 - 24 de outubro a 5 de novembro de 2005
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Professor da FEA considerada insuficientes medidas emergenciais adotadas pelo governo federal

FEBRE AFTOSA

Especialista sugere implantação de agência federal de inspeção

CLAYTON LEVY



Veterinários observam gado com aftosa recém-abatido para posterior incineração, em município de Eldorado, Mato Grosso do Sul: prejuízos nas exportações (Ademir Almeida/DiárioMS)O Brasil tem de aproveitar a crise provocada pelos focos de febre aftosa no Mato Grosso do Sul (MS) e criar imediatamente uma agência federal para inspecionar a qualidade na produção de alimentos de origem animal, avalia o pesquisador Pedro Eduardo de Felício, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp. Segundo ele, as medidas emergenciais que o governo federal tomou estão corretas, mas são insuficientes para evitar que novos episódios voltem a abalar o agronegócio. Considerado um dos maiores especialistas brasileiros em carnes, ele defende uma ampla reformulação de todo o sistema de qualidade, envolvendo o poder público, a agroindústria e as universidades.

A criação da agência, segundo Felício, poderia seguir o modelo canadense. Em 1997, diante de um caso de doença da vaca louca, o governo daquele país decidiu criar a Canadian Food Inspection Agency (CFIA). A agência interage com quatro áreas do governo: agropecuária, pesca, saúde e indústria e comércio. Sua missão é inspecionar todos os programas federais voltados para produção de alimentos, segurança alimentar e saúde. “Na agência há um corpo altamente científico que participa ativamente de todas as atividades e acompanha a produção de alimentos no mundo”.

Modelo adotado no Canadá é paradigma

Para o professor Felício, a Defesa Sanitária Animal e a Inspeção Sanitária Animal, atividades fundamentais no controle de qualidade na produção de carne, não deveriam estar subordinadas ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. “É preciso que o trabalho seja feito por um setor separado”, afirma. “O Ministério da Agricultura acaba de fazer uma reforma administrativa bastante intensa, e nem de leve aparece algo como uma agência para cuidar da parte que realmente interessa ao consumidor”, completa.

Além de responder pela defesa e inspeção sanitária, a agência, segundo Felício, também ficaria encarregada de prestar todas as informações relativas a doenças animais. “Não é papel do ministro fazer isso”, opina. Segundo Felício, a agência canadense, por exemplo, conta com um comitê científico especialmente criado para esse fim. E, nos Estados Unidos, há a figura do veterinário chefe, que desempenha o mesmo papel junto ao governo. “Quem é o veterinário chefe no governo brasileiro?”, questiona. Sem a presença de um comitê científico ou de um veterinário chefe, o desgaste pela crise, segundo o professor, recai totalmente sobre o ministro.

O professor diz que no início do governo Lula chegou a sugerir que o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), extinto em janeiro de 2004, passasse a gerir o controle de alimentos no país. “Teria sido uma grande demonstração para o mundo de que o Brasil está preocupado em garantir a qualidade dos alimentos produzidos, o que daria uma credibilidade enorme para nossas exportações”, pondera. “O ministério não deveria existir apenas para levar comida às pessoas, mas também para garantir que os produtos cheguem saudáveis, sem risco de causar doenças”, completa. A situação, porém, continuou inalterada mesmo depois que as funções do ex-MESA foram incorporadas ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).

Falta mão-de-obra especializada

Pedro Eduardo de Felício, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos: sistema de qualidade precisa ser reformulado (Foto: Antoninho Perri)Embora concorde com a versão de que a falta de recursos federais teria sido um dos fatores para o surgimento do foco de aftosa no Mato Grosso do Sul (MS), o professor Felício pondera que, com ou sem a verba do governo, havia o risco de a doença eclodir, porque muito provavelmente o gado atingido não foi vacinado. “Não posso provar isso, mas para o rebanho ter uma virose dessa intensidade a principal hipótese é que ele não foi vacinado”, explica. “Se foi vacinado mas não ficou imunizado, provavelmente é porque a vacina sofreu algum processo de deterioração devido às condições de conservação”, completa. Todas estas hipóteses, segundo ele, terão de ser investigadas.

O que é certo, de acordo com o professor, é que se trata de um vírus comum (aftovirus), do tipo “O”, sem nada de excepcional. No Brasil, além do vírus tipo “O”, também já foram identificados, em outros episódios, o “A” e o “C”. Raramente o microorganismo atinge o homem, que tem defesas próprias. A possibilidade de o agente ter sofrido alguma mutação capaz de torná-lo mais resistente à vacina também já foi descartada. A entrada de animais doentes vindos do Paraguai, através da fronteira com o MS, segundo Felício, não pode ser descartada, já que não há fiscalização no local. Mas o professor diz que é cedo para jogar a culpa no país vizinho. “Até agora, não há nenhum indício de que há animais doentes do outro lado da fronteira”.

Para o professor da FEA, o problema não é pontual e sim estrutural. Tanto a ineficácia no processo de vacinação, quanto a livre circulação de animais na zona de fronteira resultam, segundo ele, de uma significativa deficiência de recursos humanos. Nos últimos 30 anos, o crescimento da indústria de abates se deu de maneira grandiosa, enquanto minguavam os investimentos governamentais para contratação e treinamento de veterinários e auxiliares técnicos para a defesa ou inspeção.

Para se ter uma idéia, houve no Brasil um crescimento médio do agronegócio da carne bovina de 30% ao ano, nos últimos dez anos. Já as contratações de inspetores só ocorreram nos últimos cinco anos e, segundo o professor Felício, em números muito aquém das necessidades. Na falta de inspetores contratados como fiscais federais agropecuárias, muitas empresas tiveram que recorrer a profissionais contratados pelas prefeituras municipais e cedidos ao Ministério da Agricultura. “Estes profissionais não receberam qualquer tipo de aperfeiçoamento para o trabalho que devem executar”, afirma o docente.

Esse quadro, segundo Felício, evidencia um abissal descompasso entre a responsabilidade que tem o país de se mostrar à altura dos novos desafios e a estrutura, os números, e os níveis de capacitação dos recursos humanos que possui o Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (DIPOA). “E a situação não é diferente na Defesa Sanitária, onde é enorme a carência de fiscais federais com algum grau de especialização após o curso médio ou de graduação”.

De acordo com o professor, as próprias faculdades de veterinária não conseguem mais despertar interesse para a defesa e inspeção sanitária porque os alunos sabem que ninguém os contratará. “O contratador é o governo; se o governo não contrata, por que formar estes profissionais?”, provoca. Felício conta que há algum tempo atrás o governo do Pará precisou de um especialista para coordenar um esforço preventivo contra a aftosa. “Foi preciso deslocar um profissional de Santa Catarina porque não havia gente disponível na própria região e nos estados vizinhos”.

Especialistas em saúde animal, segundo Felício, deveriam estar próximos ao ministro da Agricultura para assessorá-lo. “Isso não acontece porque não se investe, por exemplo, da mesma maneira que se investe na Embrapa, onde há muitos doutores e mestres que estudaram no exterior”, diz o docente. “Fora da Embrapa não há salários nem um plano de carreira que compensem o trabalho de pessoal mais qualificado”, completa. Segundo Felício, quando alguém passa num concurso, entra num sistema precário de contratação, com prazos de dois anos, o que desestimula o profissional. “Além disso, depois de contratados não recebem o treinamento que deveriam receber”.

Diplomático, o professor Felício evita a palavra “descaso”, mas confessa ter ficado surpreso ao ler nos jornais que o governo pretende criar um fundo nacional para atender emergências sanitárias, como o foco de febre aftosa detectado no MS. “Isso já deveria ter sido criado há muito tempo”, dispara. “Estão sacrificando o gado dos produtores sem garantia de indenização; o que o governo vai dizer? Que o produtor relaxou, não vacinou, e por isso vai ter de assumir esse prejuízo?”

Segundo Felício, esse tipo de postura governamental explica a razão pela qual muitos criadores que importaram gado da América do Norte não informam o governo que têm esse gado que pode vir a apresentar a doença da vaca louca. “Quando não servirem mais para a reprodução, esses animais teriam de ser incinerados, mas os criadores podem não comunicar a autoridade sanitária porque não acreditam que o governo vá indenizar”.

Indo mais longe, Felício chega a sugerir a formação de um organismo internacional para articular as ações de defesa sanitária animal na América Latina. Uma espécie de Mercosul contra a aftosa. Teoricamente, esse seria o papel do Centro Panamericano de Febre Aftosa, que este ano já recebeu R$ 2 milhões do governo brasileiro a título de contribuição. Mas o Centro, segundo Felício, está longe de cumprir o seu papel.

“São necessárias medidas que dependem dos governos abrirem mão de sua soberania interna no combate à doença”, alerta o professor. Ele reconhece, porém, que articular uma ação conjunta e organizada entre os países latino-americanos será uma tarefa quase impossível. “Por causa do subdesenvolvimento, ninguém confia em ninguém”, analisa.

Cauteloso ao medir o grau de responsabilidade do governo federal no episódio atual, Felício pondera que as campanhas de vacinação foram realizadas e as vacinas disponibilizadas. “Alguma coisa saiu fora do controle”, destaca. “O país terá de investigar o caso e tirar uma lição para mudar o sistema todo”, completa. Mas o pesquisador adverte que as medidas têm de ser rápidas, porque, segundo ele, o vírus da febre aftosa não se deixa intimidar por explicações. “São necessárias ações”, conclui.

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