| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 307 - 24 de outubro a 5 de novembro de 2005
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O poeta e crítico uruguaio Eduardo Milán dá conferência e lê poemas no IEL

A arte de conjugar
vanguarda e mito

ALCIR PÉCORA
Especial para o Jornal da Unicamp

Eduardo Milán: "A obscuridade é necessária; a claridade é necessária" (Foto: Divulgação)O poeta e crítico uruguaio Eduardo Milán vai dar uma conferência no próximo dia 27 (quinta-feira), a partir das 14 horas, na Sala do Telão do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Participa na seqüência de mesa-redonda com os professores Márcio Seligmann-Silva e Pablo Gasparini, ambos do IEL. No mesmo dia, ao lado do poeta Regis Bonvicino e do professor e escritor Alcir Pécora, Milán lê poemas de sua autoria a partir das 10 horas no programa “Escuta Fina”, do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae), do IEL.

Radicado há muitos anos no México, onde exerce as atividades de professor e crítico, Milán é considerado um dos mais importantes poetas da América Latina. Nesta entrevista concedida a Alcir Pécora, o poeta fala de suas raízes brasileiras, da literatura latino-americana, do lugar (e da falta de) da crítica e de sua obra.


A sua mãe é brasileira e o seu pai é uruguaio. A sua poesia manteve contato sistemático com a poesia concreta brasileira, e você organizou e traduziu para o espanhol uma antologia poética de Haroldo de Campos1. Há uma raiz familiar e poética, então?

Eduardo Milán – Minha familiaridade com a cultura brasileira foi indispensável para minha formação poética. Se minha mãe não fosse brasileira, eu não teria ido a São Paulo, em 1976, conhecer Haroldo de Campos. Não teria conhecido Augusto, Décio, Régis Bonvicino, Riserio, Duda Machado. Desde menino estive familiarizado com a cultura brasileira pela leitura e pela música. Antes de Haroldo havia minhas tias que me presenteavam com livros e discos. O Brasil entrou pelos olhos e pelos ouvidos: uma questão sensorial. Literatura para mim não era uma questão crítica quando lia João Guimarães Rosa, quando adolescente. Era uma questão meio mítica, meio simbólica, que, além do mais, soava bem. Mas não vinculava uma questão crítica com o Brasil até ler A arte no horizonte do provável, de Haroldo.

A cultura brasileira não está internacionalmente vinculada, na sua apreciação, ao pensamento. E menos ainda ao pensamento crítico. Está vinculada ao aspecto sensorial. É um mal de grande parte da América Latina, com exceção –não agora, porém durante um longo período da história desses países – da Argentina e do Uruguai, talvez do Chile. Esse estar a cavalo entre a presença e a ausência do ponto de vista cultural, esse estágio permanente de cultura-desejante-que-não-logra-concretizar-seu-desejo explica, por exemplo, a necessidade de um boom narrativo latino-americano. Sejamos materialistas: a metáfora idealizada é uma maneira de aprofundar a dependência. O “real maravilhoso” é uma vergonha histórica visto retrospectivamente do lugar de onde se formula.

A América Latina não herda nada. Ou seja, sua única matéria disponível é o que se pode construir a partir desses recursos “no ato”. É preciso ter cuidado com essas vendas de produtos diferenciais quando se lhes nota a marca de nossa humilhação histórica. Nem Rulfo, nem Onetti – nem Guimarães Rosa, por razões óbvias de língua – entraram no boom. O boom é um fenômeno de leitor médio. Agora sabemos o que é um leitor médio. O diagnóstico de “humanidade analfabeta, bárbara, proto-humana” é falso em parte. O problema é a miséria, sem dúvida. Mas também a administração da riqueza. Se quem pode ler lê Pérez Reverte, estamos perdidos. Se quem pode ler lesse Nicanor Parra e Lezama Lima talvez continuássemos perdidos. Mas não por insuficiência cultural.

Você, segundo o ouvi dizer, se sente um poeta latino-americano. Como se define para você essa singularidade latino-americana?

Milán – Lamentavelmente, a “marca latino-americana” é o que se possa fazer com o fato real de haver nascido e vivido na América Latina. E estar escrevendo aqui. Não tem a ver com nenhuma singularidade especial – não é o seguimento de uma antropofagia cultural consciente, nem é a prática de estratégias de resistência, muito menos agora. É atuar a partir de uma overdose de consciência, para exagerar um pouco. E da consciência de uma insuficiência que se transforma criticamente em negatividade: não há, e não somos. É o passo número um. O segundo é virar do avesso o esquema identitário: o “apesar de”. O terceiro é entrar no “jogo do mundo” com a consciência de sua força, de sua limitação. Se trata de uma sobrevivência cultural cercada por contradições. Talvez a América Latina volte a ser o projeto bolivariano. No momento, como continente, é um lugar em luta pela sua sobrevivência. Isso não tem a ver com a qualidade ou com o valor intrínseco de uma cultura nessas condições.

A poesia latino-americana não é pior – mas seguramente, na atualidade, não é melhor – que outras. É distinta. E se exerce em condições adversas, em geral. Os poetas norte-americanos, por exemplo, respeitam mais sua tradição, são mais conscientes de sua realidade poética. Eles são um país (não “como todos”): nós somos um continente. Um poeta como Pound pode escrever Pátria minha ou considerar necessário fazer um pacto com Walt Whitman. Há consideração de um legado e, sobretudo, representa uma ausência de temor. Nós, os poetas latino-americanos, tememos demais o que possam dizer de nós os outros poetas e críticos latino-americanos. É a província da língua. O que pense um chinês, um tailandês ou um norte-americano não nos interessa. Nosso lugar está enquadrado num imaginário limitado por uma realidade penosa. Quando a transborda nem sempre é por consciência: é por mitomania.

Você acredita que a poesia concretista ainda tem interesse contemporâneo ou é apenas história?

Milán – Não sei se se pode escrever poesia concreta hoje em dia. Eu nunca escrevi poesia concreta. No meu caso, o reconhecimento do fenômeno poético não implicou uma cumplicidade de escritura. O que escrevo não tem a ver com a poesia concreta, mas tampouco a “esquece”. Considero a poesia concreta dentro do mais importante patrimônio cultural latino-americano. A consideração restritiva do poema como fenômeno de linguagem é uma re-alocação. Não existe, a rigor – aqui não interessa a língua – um fenômeno assim em todo o século XX, uma perturbação desse alcance em nossas letras. Parodiando Pound: “a época exigia” um fenômeno como a poesia concreta. De uma perspectiva mais ampla que a crítica ao autoritarismo concreto em sua época de guerra, a crítica que conheço da poesia concreta é absolutamente insuficiente. E creio que há maior dificuldade de localização da poesia concreta no Brasil que no resto da América Latina. É um movimento pouco simpático em geral. Mas a simpatia não era sua expectativa.

Posteriormente ao concretismo, a sua poesia estabelece um vínculo com o chamado movimento neo-barroco.

Milán – Perlongher me incluiu em Caribe Transplatino; Echavarren, Kozer e Sefamí em Medusario; recentemente Cláudio Daniel em Jardim de camaleões. Antes, escrevi uma coluna mensal de crítica poética na revista Vuelta, do México, entre 1987 e 1991, onde publiquei alguns poetas “neo-barrosos”2, como gostava de dizer Perlongher. Em 2004 publiquei Justificación material. Ensayos sobre poesía latinoamericana que incluiu um texto, o mais detalhado, no qual procuro explicar os “neo-barrosos”. Apesar dessas circunstâncias, não me considero um poeta neo-barroso nem muito menos neo-barroco. Respeito muito o neo-barroso porque respeito muito Perlongher, que critica no batismo mesmo o conceito de neo-barroco. Posso tentar abstrair certas noções poéticas e vê-las à contraluz do neo-barroco: é reconhecimento, interesse pelo que existe.

Há uma certa indefinição neo-barroca que não me agrada. Me interessa a tentativa de conjugar vanguarda e mito. Porém é uma coisa teórica. Não se pode ir muito longe no jogo de palavras, nem tampouco na densificação da linguagem. A obscuridade é necessária; a claridade é necessária. Não se trata de ser eclético mas de entender a necessidade. A necessidade do momento. Isso me interessa. O “movimento neo-barroco” é tão “político”, tão “político” num sentido amplo, que termina sendo a-político num sentido estrito.

Você parece entender como uma condição própria do poema a de que ele termina por acidente e não por necessidade. O acontecimento efetuado pelo poema nada pode contra a contingência na qual se inscreve?

Milán – O “acidente” poético é o que altera a contingência. E não identificaria contingência como matéria poética, no sentido do que se trabalha ou molda. Inclusive a palavra “acidente” me parece excessiva para determinar um sentido de composição. O que me interessa pôr em jogo é a concepção de obra de arte transcendente. Não estamos considerando o tema da obra de arte salvo como reminiscência. Prefiro tratar o tema da “resolução contingente” do poema como a teorização desse outro dado de fato para Valéry que era a suspensão dos poemas como uma entidade que “é abandonada”. O poema se suspende, o poema se posterga, efeitos ambos da composição: resta-lhe tragédia ao final, e resta-lhe crítica à postergação. Nem por isso incorremos numa razão teleológica. Mas sim, talvez, numa sustentabilidade. Não temos porque crer que já saímos da época em que a poesia sobrevive com base em seus próprios recursos.

Você disse certa vez: “Nossa própria mentalidade colonizada diante dos objetos culturais torna o ato crítico negativo uma espécie de agressão para quem os recebe. A tendência é levar para o lado pessoal”. A sua observação, como sabe, vale inteiramente para o Brasil. O que acha que perdemos com isso?

Milán – Falo em geral, caiba a quem couber. A literatura que se nega à crítica insiste em sustentar-se como figura aurática. É a grande proteção, o grande escudo, o não criticável. Não há maior invulnerabilidade que a ausência. A liberação da literatura da escritura sobre a literatura assinalaria o fim da modernidade literária: estaríamos falando de outra coisa. O ato crítico como prática desalienante – é a única maneira de conceber esta coisa em termos honestos – em geral está ausente das literaturas latino-americanas. Se se pensa bem, na América Latina, não pode ser diferente. Ou injúria ou brinde, não há terceiro. É uma prática de poder.
Se crítica é pôr em jogo a crise, esta crise tem dois séculos. O que já não há é este exercício de reconhecer a crise, como se a acusação ao intelecto fosse a de complicar mais as coisas, “que já estão bastante complicadas”. É preciso recordar ao senso comum que fala assim que as coisas sempre podem piorar e que uma das tarefas da crítica neste século – penso em Kraus ou na Escola de Frankfurt, em Deleuze, em Foucault – foi advertir que as coisas podiam piorar. Talvez o signo do trágico que recebemos, os que temos algo a ver com isto, é que pioramos sabendo.
Não pode haver uma crítica literária militante em termos de mídia. Curioso: sim o há em nível político. Houve. Eu participei de uma. Isso não quer dizer que não haja críticos de qualidade. O que não há é lugar: é o já quase eterno problema de lugar na América Latina. Além do mais, há culturas onde a prática crítica, quer dizer, intelectual, está internalizada socialmente. Houve cotidianidades críticas na Argentina e no Uruguai que podiam ser inclusive saturantes. Não é o caso do México.
Pessoalmente creio que cada obra implica uma consideração de escritura especial, um andamento particular, uma “cortesia” no sentido de um cortejo. Mas me parece difícil não equivocar-se quanto ao equilíbrio requerido, de uma escritura estrita, idônea. Se isto sucede é um ato feliz. O problema é pôr a dialogar essa obra com outras.

Me impressiona a quantidade de jovens escritores que pensa a sua atividade como mais uma entre outras quaisquer. Não há nessa “modéstia” um ato de desistência?

Milán – Se é modéstia é como a modéstia de Borges: soberba. E se é soberba é má-fé. Para ninguém a prática literária ou poética pode significar “uma coisa a mais”. Significaria o reconhecimento normal de uma certa dose de delírio para a qual não sei se estamos preparados.

Quais os autores que mais tem lido ultimamente, sejam poetas, críticos ou outros?

Milán - Zizek, Laclau, Negri. Em poesia, por razões de trabalho estou lendo Novo, Gorostiza, Bañuelos, Gerardo Deniz, este último um poeta hispano-mexicano fundamental para entender a poesia mexicana dos últimos 20 anos.

Um poema inédito


Título do poema
O olho se retraiu
com esforço – séculos
que se voltam a ver –, sulco,
fendas estreitas, feridas, flor da ferida.

Ver, ver-se
a si mesmo,
ver, ferir-se de ver.

Enquanto a vista avistava o mar
retirado na retina águas adentro.


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