Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 270 - de 18 a 24 de outubro de 2004
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Dissertação de mestrado faz inventário das indústrias Matarazzo no interior paulista

O império muda de ares


CARMO GALLO NETTO


Visita de Francisco Matarazzo: em Avaré (de chapéu na mão) na década de 30 (Fotos: Divulgação)"Você pensa que seu pai é o Matarazzo?” reage a mãe diante do pedido despropositado do filho. Francisco Matarazzo, o imigrante italiano que de modesto comerciante em Sorocaba transformara-se em rico industrial em São Paulo, constituía o paradigma do homem rico, que podia tudo e que se fizera com o próprio esforço. A partir dos anos 1920, seguindo a rota do algodão, suas indústrias, que dominavam a cidade de São Paulo, alastraram-se pelo interior do Estado.

Existem vários estudos sobre a presença das indústrias Matarazzo na capital, mas nada sobre elas no interior. Foi esta constatação que motivou a pesquisa de Henrique Telles Vichnewski, formado em arquitetura e urbanismo em Ribeirão Preto, sua terra natal. Seu trabalho de final de curso de graduação já havia sido sobre a indústria Matarazzo que existira no bairro periférico de Campos Elíseos. Na oportunidade realizou um estudo de intervenção na área ocupada pelo Matarazzo de l948 a 1981 e que hoje pertence ao Banco Itaú. Pretendia despertar a consciência para a preservação do patrimônio histórico e propor a transformação do local em centro cultural que pudesse atender aos moradores do entorno.

Foi esse trabalho que acabou dando origem a seu tema de mestrado, na Unicamp,Visita de Francisco Matarazzo: em Rancharia (1936) sobre a Matarazzo no interior do Estado de São Paulo, onde foram instaladas mais de 40 indústrias em 30 cidades. Definido o recorte cronológico, de l920 a 1960, o estudo ateve-se às principais indústrias ligadas à produção de algodão. Mesmo com esse recorte, foram selecionadas 17 cidades onde se instalaram 24 fábricas das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM), como se denominavam, sendo 14 beneficiadoras de algodão, cinco tecelagens e cinco produtoras de óleo de algodão. Partiu inicialmente apenas das informações disponíveis no livro patrocinado pela Matarazzo em comemoração aos cem anos da chegada de Francisco Matarazzo ao Brasil, uma vez que não conseguiu apoio da Matarazzo, envolvida hoje em uma montanha de processos. A partir daí, em cada cidade, visitou arquivos de jornais e revistas, arquivos históricos, museus, bibliotecas, procurou plantas das indústrias nas prefeituras, falou com pessoas que detinham informações e até documentos da época.

Visita de Francisco Matarazzo: em Ribeirão Preto (anos 30)Com que objetivo? “A dissertação teve como objetivo principal a catalogação das indústrias de algodão Matarazzo instaladas no interior do Estado de São Paulo no período mais significativo (de 1920 a 1960). O estudo, além de sua importância como registro de um patrimônio industrial que corre o risco de desaparecer, classifica essa indústria dentro do padrão tecnológico da época e analisa sua morfologia e sua arquitetura. Essa reconstrução histórica tem a finalidade de compreender, explicar e registrar pelo menos parte da industrialização ocorrida no interior do Estado de São Paulo”, afirma Vichnewski.

Nessas pesquisas, conseguiu registros de inaugurações de fábricas, de passagens doHenrique Telles Vichnewski e a orientadora Cristina Meneguello: trabalho inédito (Foto: Neldo Cantanti) conde Francisco Matarazzo pelas cidades, de doações para instituições, teve acesso a comprovantes de impostos e de contas de força e luz e de consumo de água que, cotejados com os consumos de residências, evidenciam o caráter particular do estabelecimento. Localizou bairros operários construídos em função das indústrias, sempre instaladas próximas às linhas de trem que à época estabeleciam a separação entre o centro e a periferia das cidades. Constatou que em muitos casos os terrenos eram doados ou havia isenção de impostos. Descobriu que ocorria grande concorrência entre as prefeituras em atrair as Matarazzo e sucediam-se os convites para que o conde visitasse as cidades.

Segundo a orientadora do mestrado, professora Cristina Meneguello, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, o trabalho registra um patrimônio que até então vinha sendo ignorado, mostra o desbravamento do centro-oeste paulista e contribui para a classificação do patrimônio industrial brasileiro. A importância deste fato fica evidente quando se sabe que, das 24 indústrias selecionadas para estudo, apenas duas continuam com a mesma atividade inicial. Os prédios das demais ou têm outras ocupações ou estão abandonados. Alguns inclusive já foram demolidos.

Memória e identidade

Henrique Telles Vichnewski entende que “as indústrias Matarazzo compreendidas na dissertação definem um padrão de industrialização no interior de São Paulo cujas características foram determinadas pelo tipo de produção, tecnologia e construção”. A matéria-prima principal foi o algodão e seu aparato tecnológico e construtivo foi definido pelo tipo de força-motriz (energia elétrica ou a vapor) que juntamente com as máquinas a serem utilizadas definiram uma planta fabril adequada. E acrescenta: “A arquitetura dessas indústrias, de certa forma, foi um reflexo desse padrão industrial, cujas características se coadunam com o processo tecnológico e construtivo na época”.

O estabelecimento da indústria, além de configurar o espaço à sua volta, com suas casas para operários e outros equipamentos, produzia também em sua área envoltória transformações no uso e ocupação do solo. Era comum a subdivisão de quadras em lotes pequenos, geralmente estreitos e compridos, formando as conhecidas vielas e travessas, bem características de bairros industriais, o que tornava os lotes de baixo custo e acessíveis aos operários.

Segundo o autor, o levantamento das indústrias Matarazzo resgata a sua importância histórica para a memória e para a formação da identidade das populações dessas cidades, cujo registro, além de histórico e fotográfico, inclui as principais características tipológicas e construtivas da arquitetura fabril dessas indústrias, que poderão servir de base metodológica em futuros projetos de restauro ou requalificação.


Preservação ganha impulso

O autor considera que “o patrimônio industrial é representado por todos os vestígios relacionados à indústria, sejam eles bens móveis ou imóveis, como máquinas, produtos industriais, força motriz, arquivos de empresas, arquitetura fabril e todos os elementos que condicionam a atividade industrial”. Destaca que, embora a preservação do patrimônio industrial no Brasil ainda seja incipiente, observa-se sua progressiva valorização, o que determina um avanço na compreensão e desses bens.

A professora Cristina Maneguelo lembra que, no âmbito internacional, foi criado em l978 o The Internacional Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (TICCIH), que é uma organização que fomenta a proteção, investigação, documentação e formação do patrimônio industrial e se encarrega em promover a cooperação internacional. Desde os anos 80, o TICCIH tenta articular representantes do Brasil. Enfim, neste ano de 2004, filiou-se a ele o recém criado Comitê Brasileiro de Preservação do Patrimônio Industrial, formado por diversos profissionais das áreas de sociologia, história, arquitetura, entre outras. A professora Cristina, membro-fundador do Comitê, considera que há no Brasil, tanto no campo acadêmico quanto na comunidade em geral, um crescente interesse no estudo e preservação do patrimônio industrial.

Imagens de uma época


Pavilhões da tecelagem Matarazzo, Bauru, em julho de 2002Na década de 1930, a crise de 1929 levou Bauru e outras cidades da região a se dedicar ao plantio de algodão, desinteressadas pela monocultura do café. Nessa época a Matarazzo implantou-se na cidade, como mostra “O Correio da Noroeste”, de Bauru, em 23/04/36:

“Conforme noticiamos, chegou hontem a Bauru o conde Francisco Matarazzo, que, estando em excursão pelo interior em visita ás suas industrias, veio até esta cidade afim de inspecionar a usina de feneficiamento de algodão de propriedade da sua empresa.

A recepção do grande industrial foi muito carinhosa, vendo-se entre as pessoas que o foram esperar, as figuras mais destacadas da colônia italiana de Bauru, e varias autoridades, alêm de elementos do commercio e industria da cidade”.

Quase todas as cidades do interior paulista com indústrias Matarazzo receberam a visita do conde Francisco Matarazzo, o que constituía importante evento para a comunidade, como se lê em “A Notícia”, de Ribeirão Preto, em 09/05/36:

“Em Ribeirão Preto, onde esteve antehontem, foi o conde Matarazzo recebido com honras de hospede official.

Os commerciantes italianos fecharam suas casas ás 4 horas, embandeirando-as, em homenagem ao grande industrial.

A visita do conde Matarazzo a Ribeirão Preto foi um facto marcante na vida daquella cidade. É que o espírito dynamico e progressista do líder da nossa industria já se fez sentir em Ribeirão Preto, onde a organização Matarazzo, incrementando o progresso local, dá trabalho a varias centenas de operários.”

Os municípios aspiravam aumentar o seu desenvolvimento econômico com a instalação de uma indústria Matarazzo, o que, por outro lado, casava perfeitamente com os planos das IRFM que dispunham no interior paulista de matéria-prima abundante, ferrovia e desvios férreos, terrenos de baixo custo, mão-de-obra barata e contavam com benefícios das prefeituras. É o que diz “A Folha”, de Rio Preto, nome antigo da cidade de São José do Rio Preto, em 26/07/36:.

(...) É assim que, segundo conseguimos apurar, os primeiros passos decisivos, foram dados nesse sentido. As Indústrias Matarazzo resolveram adquirir em Rio Preto, nas proximidades da estação, um terreno destinado a um estabelecimento industrial e um desvio para uso desse estabelecimento. Sabemos que já foi até fixado o preço de acquisição do terreno e que, graças á mediação da Prefeitura, a pretensão do conde Matarazzo encontrou a melhor boa vontade e as mais amplas facilidades da parte dos proprietários dos terrenos.

A resolução das indústrias Matarazzo é, conquanto merecida, uma honrosa distincção conferida a Rio Preto, de que justamente podermos envaidecer-nos. Ella será o marco inicial para a instalação da grande indústria entre nós.”

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