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A diretora, pesquisadora e professora Alice K. funde
oriente e ocidente em montagens teatrais premiadas

Severinô

LUIZ SUGIMOTO

Cena de Morte e Vida Severina, espetáculo que acumula prêmios Brasil afora: elementos do drama clássico japonês (Fotos: Divulgação/Antônio Scarpinetti)A atriz, diretora, pesquisadora e professora de artes cênicas, Alice Kiyomi Yagyu desenvolveu a faculdade de dividir os campos do cérebro, pensando ora em japonês, ora em português. Da mesma forma, ela dirige dois olhares para o mundo, um oriental e outro ocidental, graças não apenas à convivência com as duas culturas, mas sobretudo ao aprendizado com os dois teatros. “Minha forma de encarar a vida é assim”.

Linguagem adotada
foge do lugar comum

Alice K. – como ficou conhecida nos palcos – chegou à Unicamp em 2003, mesmo ano em que um grupo de alunos do Instituto de Artes criou a Caos Companhia de Teatro. Em 2005, convidada pelo grupo a dirigir uma montagem como parte da grade curricular, a professora propôs uma linguagem que fugisse do lugar comum, incorporando elementos do teatro tradicional japonês.

A primeira peça, Qioguem?!, inspirada em narrativas Kyogen (comédia clássica japonesa do século 14), arrebatou seis dos nove prêmios do 20º Festival Universitário de Teatro de Blumenau, incluindo os de melhor diretor e melhor espetáculo. Foi premiado também no 10º Festival Nacional de Teatro de Americana em cinco categorias.

As alunas Carla Massa, Paula Serra, Marina Milito e Carla Oranges em ensaio da peça A Pérola, baseada em conto de Yukio Mishima, cuja estréia será no próximo dia 28  (Fotos: Divulgação/Antônio Scarpinetti)Agora, uma adaptação de Morte e Vida Severina, com elementos do teatro Nô (drama clássico), também vem surpreendendo júri, público e crítica em festivais pelo país. Conquistou prêmios em Blumenau (melhor atriz, revelação e melhor conjunto de atores) e em Patos (melhor grupo e um especial pela concepção sonora e iluminação), além de participar do Festival de Teatro de Presidente Prudente de 2007.

Nô significa a arte de exibir talento. O gênero remonta ao século 14 e conserva uma estética cênica rigorosa, que busca o máximo de significação com o mínimo de expressão. Impõe-se pela majestade estática, refinamento e simbolismo. O universo do Nô é habitado por deuses e fantasmas de guerreiros e de mulheres enlouquecidas, às voltas com os mistérios do espírito.

Kyogen significa, literalmente, palavras insensatas. É constituído de comédias curtas e leves, onde as personagens apresentam mais humanidade e as narrativas estão mais próximas do cotidiano das pessoas. Se o Nô expõe as virtudes, o Kyogen revela os defeitos do ser humano, com temas como conflitos entre marido e mulher ou entre patrão e empregado, além de pequenas farsas e fábulas.

Tradicionalmente, as peças do Nô, que duram cerca de 50 minutos, são intercaladas por esquetes do Kyogen, que descontraem o público com o riso, oferecendo um contraponto ao drama clássico. “À parte as diferenças na estética cênica, podemos dizer que essas apresentações equivalem à tragédia grega do ocidente, que é entremeada por dramas satíricos”, explica Alice K.

Um aspecto contrastante do teatro clássico japonês é o fato de sua arte ser transmitida para as gerações seguintes através do corpo do ator, fazendo com que a essência dela perdure por séculos. “É uma transmissão de pai para filho, uma missão artística e de vida”.

Sem fazer juízo de valor, Alice K. observa que no Ocidente as formas cênicas vão superando as anteriores e passando por transformações, a ponto de ter-se perdido a idéia, por exemplo, de como era feita originalmente a tragédia grega. “Mesmo em relação ao teatro de Shakespeare, possuímos registros escritos (literatura dramática) ou em pinturas, mas sobre o trabalho deste ator, acabamos caindo em especulações”.

O protagonista de uma peça Nô é geralmente um espírito errante, que não cumpriu sua missão em vida, esclarece a professora. “O espírito só vai repousar através do relato de seu infortúnio, ouvido por um mortal, geralmente um monge ou um pescador. É o elemento espiritual do Nô, que no início tinha aspectos ritualísticos, vindo a adquirir qualidades teatrais mais vigorosas no decorrer do tempo”.

Um coro e quatro instrumentistas sustentam a narrativa e o conflito é resolvido através da dança. O tempo de cena parece lento, mas Alice K. prefere defini-lo como um tempo dilatado. “É quase o tempo da meditação. O público é convidado a penetrar num tempo que possuímos, mas que o dia-a-dia não permite explorar”.

Estranhamento – “Mas é só isso?”, foi a pergunta dos alunos-atores da Caos quando leram as primeiras peças de Kyogen. “Expliquei que o texto é uma pequena parte da peça, o importante é o que os atores podem criar com ele, ter a noção das convenções e do jogo”.

Uma passarela, o palco, um pinheiro estilizado e poucos adereços, são os elementos que compõem o cenário Nô-Kyogen original. “O ator deve dispor de recursos para materializar objetos e jogar com as situações. Pedagogicamente, a cena Kyogen permite um exercício muito rico para os atores. Mais do que construir personagens, eles tratam de construir uma atmosfera”.

Se os alunos não viam muito nas leituras, aos poucos, Alice K. fez com que eles reaprendessem a olhar, a escutar, a compreender que seus corpos traçam linhas e curvas no espaço.

Desde o início, o objetivo da professora nunca foi reproduzir o teatro oriental, mas oferecer aos alunos os exercícios que ele permite. Assim, Qioguem?! promove um casamento das expressões oriental e ocidental, no qual o humor clássico japonês é acrescido do imaginário de atores.

Na montagem Morte e Vida Severina, as personagens são espíritos que refletem sobre seus conflitos em vida. É desta forma que o universo Nô acabou entrando na criação da peça inspirada no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto.

Depois da comédia e do drama, a professora orienta quatro alunas, desta vez baseada no conto A Pérola do escritor Yukio Mishima. Completa assim uma espécie de trilogia inspirada na estética japonesa. “O teatro japonês já faz parte do meu trabalho, no qual não é mais possível discernir o oriental do ocidental. Meu trabalho é teatro”.

Sobre uma semente japonesa que foi fecundada no Brasil

Alice K.: dois olhares para o mundo (Fotos: Divulgação/Antônio Scarpinetti)A Alice K. fazia dança desde muito nova, mas formou-se em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas. Acabou usando este conhecimento no teatro – “Sem organização, não acontece nada” – e contribuiu para viabilizar financeiramente a montagem Pássaro do Poente, do Grupo Ponkã, que marcou presença nas artes cênicas da cidade de São Paulo nos anos 1980.

“O Ponkã tinha descendentes e não-descendentes, era um grupo mestiço como a fruta, cuja semente veio do Japão, mas que fecundou no Brasil. A inspiração era o teatro japonês, pois a nossa condição de nisseis, sanseis e mestiços exigia uma forma distinta de expressão”, recorda a professora.

Trabalhando na linha de linguagem performática, o Ponkã montou espetáculos de repercussão como Tempestade em Copo d’Água e Aponkãlipse. O marco foi Pássaro do Poente, lenda japonesa transformada em texto dramático por Carlos Alberto Soffredini e dirigida por Marcio Aurélio. O espetáculo ganhou vários prêmios, com temporada de mais de dois anos e participações em festivais internacionais.

Ainda no Ponkã, Alice K. co-traduziu e co-roteirizou uma montagem livre baseada no Kyogen, contando apenas com o imaginário dos atores, visto que ninguém ainda tinha visto este espetáculo ao vivo. Tempos depois, durante o mestrado na Escola de Comunicações da USP, Alice recebeu uma bolsa para estudar em Tóquio. Aprenderia, então, com mestres atores sobre a essência do Nô e do Kyogen.

Alice K. passou a metade dos anos 90 fora do país, pesquisando, atuando como solista e participando de produções no Japão e na Alemanha. Numa delas, conheceu Anzu Furukawa, coreógrafa e bailarina do Butô, que vai merecer um estudo da professora da Unicamp.

A partir de 2000, Alice K. resolveu fincar raízes no Brasil, viajando apenas por curtos períodos. “Aos 30 de idade, queria estudar, me apresentar e aprender com outros atores, mestres e diretores. Depois dos 40, articulando as minhas idéias sobre a cena, senti a necessidade de transmitir o que aprendi e continuar experimentando essas idéias com jovens atores”.

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