Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 273 - de 16 a 21 de novembro de 2004
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Bernardo Beiguelman
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Bernardo Beiguelman
Dos primeiros passos da genética médica ao largo horizonte da neurobiologia

ÁLVARO KASSAB


Bernardo Beiguelman recebe do reitor Brito Cruz o título de professor emérito (destaque), em cerimônia que lotou o salão do Conselho Universitário no último dia 30 de outubro

Ter sua Vemaguet atolada no lamaçal naquela que é hoje a avenida Ralph Tórtima, único acesso ao campus da Unicamp nos tempos de sua implantação em Barão Geraldo, no final da década de 60, era café pequeno para o professor e geneticista Bernardo Beiguelman. Poucos anos antes, as coisas eram bem piores.

Descontado o diretor da Faculdade de Ciências Médicas, Antônio Augusto Almeida, pode-se dizer que Beiguelman foi o segundo professor da Unicamp – o primeiro, Walter August Hadler, chegara pouco antes de Ribeirão Preto para chefiar o Departamento de Histologia da FCM, implantada provisoriamente, em 1963, no prédio da Maternidade de Campinas, no centro da cidade.

De tão inovadora para a época, a missão de Beiguelman chegou a causar incredulidade: criar o primeiro Departamento de Genética Médica da América Latina. Uma tarefa que os cronistas da época classificariam de hercúlea, por conta das adversidades: laboratórios improvisados, livros escritos a toque de caixa, falta crônica de dinheiro e, por trás de tudo, escaramuças políticas. Beiguelman passa uma parte da história a limpo. “O governador à época, Adhemar de Barros, não queria investir numa universidade implantada por Carvalho Pinto ”.

O geneticista lembra que os professores Almeida e Hadler procuraram em vão por um terreno para instalar a Universidade. Foram à Escola Preparatória de Cadetes, à Fazenda Taquaral, que pertencia ao Instituto Brasileiro do Café, tentaram o prédio do Senai. Deram com a cara na porta. “Ninguém queria ceder nada”, testemunha.

Acima o Departamento
de Genética Médica hoje e, abaixo,
nos tempos de fundação da
FCM: pioneirismo

A entrada em cena de Zeferino Vaz, idealizador do que é hoje a Unicamp, deixaria para trás os tempos de penúria. “O sofrimento predominava antes de Zeferino; depois, com ele, veio o sofrimento com a perspectiva de futuro, embora, na sua gestão, ninguém pudesse mais dizer que fosse heroísmo produzir ciência. Agora, é o pão-de-ló”, resume Beiguelman.

Um “pão-de-ló” que só saiu do forno depois de muita massa ser sovada. O “agora” a que se refere embute uma trajetória de três décadas e meia na Unicamp, percurso que fez de Beiguelman depositário legítimo de linhas de pesquisas seminais. Foi na Universidade, por exemplo, que desenvolveu estudos pioneiros no mundo sobre a resistência e suscetibilidade hereditária à hanseníase, além de levar adiante pesquisas sobre genética antropológica e reprodução humana. Formou dezenas de mestres, doutores e discípulos que ganharam o mundo.

Na instituição que o acolheu, foi o responsável pela implantação do Ambulatório de Genética Clínica (1969), e um dos mentores da criação do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG), quando exerceu o cargo de pró-reitor de Pós-Graduação na gestão do reitor Paulo Renato Costa e Souza (1986-1990).

No último dia 30 de outubro, Beiguelman recebeu, por sugestão da professora e geneticista Carmen Sílvia Bertuzzo, o título de professor emérito da Unicamp, em cerimônia que lotou a sala do Conselho Universitário. O pesquisador, incluído recentemente por seus pares na lista dos cem cientistas e instituições que mais contribuíram para o progresso do país, destacou, em seu discurso, a importância da Unicamp no conjunto de sua obra (leia texto na página 7) – , que reúne 447 trabalhos científicos, entre livros, teses, capítulos de livros e publicações variadas.

Tamanha produção passa ao largo do cientificismo. “Nunca fui de colocar viseira”. Não por acaso, em seu discurso, Beiguelman escreveu que, “nos lares bem constituídos, a casa paterna é o centro geométrico do mundo”. Foi em Santos, onde nasceu em 1932 num bairro operário, que o pesquisador diz ter aprendido com os pais, Rafael (“grande agitador cultural, leitor voraz da literatura universal”) e Cecília Beiguelman, “a exigência da manutenção de uma postura ética, quaisquer que fossem as circunstâncias”.

Destacou, ainda, a contribuição da irmã, a professora emérita da USP e cientista política Paula Beiguelman, “meu modelo de luta pelos valores mais elevados da condição humana”. A professora, vale registrar, foi perseguida pela ditadura militar. “A primeira coisa que ensinava aos meus alunos era os caminhos da tolerância”, ensina Beiguelman. Ao ser indagado, na entrevista que segue, sobre o que pensava da clonagem humana, o pesquisador traduziu sua aversão à idiotia da boiada. “Mais do que a improvável homogeneidade genética, devemos temer o ambiente homogêneo dos regimes totalitários, que conduzem ao fanatismo e ao ódio”. Mais tarde, informalmente, disse ao repórter. “O mundo não vai ficar obcecado pela clonagem. É muito mais divertido fazer filho pela maneira clássica”. Um chiste típico de humanista.

Jornal da Unicamp – Como foram os primeiros tempos da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp?

Bernardo Beiguelman – O começo, em 1963, foi difícil. A Faculdade funcionava provisoriamente na atual Maternidade de Campinas, que na época estava em construção na Avenida Orosimbo Maia. Os laboratórios eram improvisados nas futuras copas e em cantos de corredores. A precariedade era muito grande. Os dois andares alugados à Universidade eram revestidos com piso de massa grossa, o que causava acúmulo de poeira. Nesse ano inicial, as aulas práticas de genética médica foram ministradas à noite, no Instituto Penido Burnier, no laboratório de análises clínicas do médico José Monteiro Salles, que, além de nos ceder o seu espaço de trabalho, depois de encerrado seu expediente, participava voluntariamente das aulas, e doava reagentes e anti-soros para determinação de grupos sangüíneos. A situação começou a melhorar no ano seguinte, quando foram criadas as condições para que as aulas práticas fossem ministradas na Maternidade, ao mesmo tempo que improvisamos uma câmara para cultura de células num canto de corredor, com paredes de tábua, entrada de ar coberta com tela metálica, uma lâmpada ultra-violeta, uma mesa, duas cadeiras e um bico de Bunsen. Entretanto, é bom que se saliente, esse laboratório de pesquisas, apesar de improvisado, foi muito eficiente e com poucos riscos de contaminação, porque trabalhávamos com as culturas usando máscaras cirúrgicas e fazendo as manipulações atrás da chama do bico de Bunsen.

JU – As primeiras pesquisas foram desenvolvidas nessa fase?

Bernardo Beiguelman – Sim. Foi nessa época que implantamos uma unidade de citogenética humana e estudamos o comportamento dos macrófagos na hanseníase, sendo importante assinalar que, devido à falta de recursos para importação de meios de cultura, eles eram fabricados no próprio laboratório. Por outro lado, toda a vidraria era adaptada, graças à colaboração de vidreiros amigos da USP.

JU – Que tipo de experiência com a Genética o senhor havia tido antes?

Bernardo Beiguelman – Em 1959 eu tinha criado a Disciplina de Genética Humana do curso de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, um Instituto Isolado de Ensino Superior que, mais tarde, passou a fazer parte da Unesp. Nessa época eu trabalhava na área de genética antropológica. Estudava os japoneses e seus descendentes, em Marília, entre os quais, naqueles anos, eram raros os casamentos inter-raciais. Eu queria demonstrar que, apesar disso, eles estavam quebrando o “isolado genético”, pois, os casais aqui constituídos eram formados por indivíduos oriundos de locais distantes entre si no Japão. Assim, havia casais em que um cônjuge era oriundo de uma ilha do sul, por exemplo, Shikoku, e o outro era oriundo da grande ilha do norte, Hokaido. No Japão, dificilmente eles casariam entre si, o que acabava acontecendo em Marília. Em outras palavras, esses pares, apesar de identificados como japoneses ou seus descendentes não miscigenados, eram compostos por pessoas procedentes de “isolados” genéticos diferentes.

Além de demonstrar que, ao contrário do que eles pensavam, estavam quebrando o isolamento dentro do grande “isolado genético” que era a colônia japonesa de Marília, pude, ainda, demonstrar que disso resultaram alterações das características físicas. Foram resultados muito interessantes do ponto de vista genético-antropológico, mas, evidentemente, não estávamos dentro de um programa da genética médica.

JU – De Marília o senhor veio para Campinas?

Bernardo Beiguelman – Sim, tinha 31 anos. Era, portanto, muito jovem. Havia sido indicado pelo pesquisador Alcides de Carvalho, reconhecido mundialmente por seu trabalho de melhoramento genético do café, e pelo professor Pedro Henrique Saldanha, um pioneiro da genética humana no País. Concorria com outros candidatos, mas acabei sendo o escolhido pela comissão examinadora. Em seguida, criei e assumi a chefia do Departamento de Genética Médica, o primeiro do gênero da América Latina, sendo importante lembrar que a criação desse Departamento só foi possível graças à visão, à coragem e à obstinação do professor e oftalmologista Antônio Augusto Almeida, o primeiro diretor da Faculdade de Ciências Médicas.

JU – Como ele via a genética médica?

Bernardo Beiguelman – Os oftalmologistas sempre tiveram, ao contrário da maioria dos médicos de outras especialidades, uma boa formação em genética, já que a oftalmologia sempre lidou com numerosas doenças hereditárias. Além disso, em 1963, o professor Almeida antevia que a genética exerceria, no futuro das Ciências Biomédicas, o mesmo papel que a teoria atômica teve para a química e para a física. Nem os geneticistas tinham pensamento tão ousado. A USP, por exemplo, tinha criado em 1959 a disciplina de Genética na Faculdade de Medicina, mas ela era apenas uma disciplina dentro do Departamento de Bioquímica. Em Marília, era a disciplina de Genética Humana, que funcionava no Departamento de Biologia.

JU – Qual foi a reação de seus pares com a criação do Departamento na FCM?

Bernardo Beiguelman – Na realidade, estranharam. Os colegas diziam: “Disciplina ainda vai, mas Departamento?” Mas o professor Almeida insistiu na sua criação e disse que ele tinha de ficar dentro da FCM. Ele teve essa antevisão e tudo o que ele previu para a genética acabou se concretizando. Era uma coisa muito inovadora para época. Tanto que não tínhamos, por exemplo, livros em língua portuguesa para o curso. Tive que escrevê-los. Foi uma loucura. Estava, na época, no apogeu da minha produção científica. Não tinha fim de semana. O tempo integral daquela época era mais que integral, era o que o costumo chamar de “tempo fanático”. Todos trabalhavam além da conta, eram tempos de heroísmo.

JU – O que o levou à genética humana e médica ?

Bernardo Beiguelman – O professor Crodowaldo Pavan me estimulou muito. No final da década de 50, ele me abordou para dizer: “Você tem que se dedicar à genética humana, porque está nascendo a citogenética humana”. Naquela época, somente tínhamos, iniciando pesquisas em henética humana no Brasil, o professor Newton Freire Maia, já falecido, que trabalhava com casamentos consangüíneos, e Pedro Henrique Saldanha e Francisco Mauro Salzano, que trabalhavam em genética antropológica no Rio e no Rio Grande do Sul, respectivamente. Eu não tinha grande interesse por esse tipo de trabalho. Mas o professor Pavan insistiu: “Agora, com a citogenética humana, a genética médica tomará impulso.” E, realmente, peguei a fase em que a coisa explodiu. O professor Pavan falou comigo em 58 e, em 59, na França, descobriram a alteração cromossômica que causa a síndrome de Down. Foi o maior rebuliço. Logo em seguida, na Inglaterra, descobriram as alterações cromossômicas que causam a síndrome de Turner e a síndrome de Klinefelter. Aí, a coisa pegou fogo.


JU – Como os profissionais reagiam à genética médica?

Bernardo Beiguelman – A genética médica era vista como um ramo esotérico da Medicina. A falta de indicação para os pedidos de exame laboratorial que, então, nos chegavam, indicavam, claramente, uma falha na atualização dos profissionais. Essa atualização nós conseguimos criar com os livros que nós, e depois, os professores Pedro Henrique Saldanha, Oswaldo Frota Pessoa e Willy Beçak, entre outros, começaram a escrever. Agora, felizmente, já são numerosos os livros de genética médica em português. Mas o interessante é que todas as faculdades de Medicina incluem a genética como disciplina e não como departamento. A exceção foi a Unicamp, o que é de se lamentar. É por isso, talvez, que a genética médica não tenha progredido tanto em outros lugares como progrediu na Unicamp. Temos áreas na Unicamp que podemos dizer que estão na vanguarda.

JU – O senhor poderia exemplificar?

Bernardo Beiguelman – Temos a área da neurogenética, sob a coordenação da professora Iscia Lopes-Sendes, além do grupo dedicado a estudos de causas genéticas da deficiência mental, coordenado pela professora Antonia Paula Marques de Faria, que foi minha orientada. É o futuro que antevejo para a genética médica. A genética é uma ciência tipicamente do século 20. Ela começa com a redescoberta das leis de Mendel, em 1900. Ela não teve, durante a primeira metade do século 20, nenhuma influência dentro da Medicina, que estava mais preocupada, então, em saber as causas de um grande número de doenças, procurando identificar os microrganismos causadores delas. Na segunda metade do século 20, com a descoberta das vitaminas, a ênfase da Medicina passou para as doenças carenciais. Somente depois de 1950 foi que a Medicina se deu conta da importância da genética porque, nos países desenvolvidos, a criançada não morria mais de uma série de doenças evitáveis, como as infecciosas e carenciais. Com isso, as doenças genéticas deixavam de ficar obscurecidas pela taxa de óbitos das outras.Desse modo, os males genéticos passaram a ocupar a ponta, para os quais era necessário buscar explicações, a fim de evitá-los.

JU - Quando esse processo foi desencadeado?

Observado por Beiguelman ( à direita), o jornalista José Reis fala durante aula inaugural da FCM em 1964

Bernardo Beiguelman – Primeiro, em 1956, com a visualização dos cromossomos humanos e, em seguida, em 1959, com a descoberta das cromossomopatias, sendo a primeira a síndrome de Down. Entretanto, esse processo nunca foi tão forte como o que ocorreu depois que se verificaram as possibilidades de estudo do DNA humano. Agora, entretanto, essas especialidades viraram rotina. Assim, por exemplo, a citogenética, que era uma novidade incrível quando fui para a Unicamp, hoje é rotina em numerosos laboratórios clínicos. O mesmo está acontecendo com o DNA, cuja vulgarização, inimaginável há pouco tempo, tem chegado até em programas de TV como o do Ratinho...

JU – Quais foram, na sua opinião, as maiores contribuições do Departamento de Genética Humana da FCM para a Medicina contemporânea?

Bernardo Beiguelman – O Brasil não reverencia seus pesquisadores científicos; você só é reverenciado lá fora. Fui a um congresso, em Bombaim, na Índia, sobre os defeitos dos macrófagos, no começo da década de 80, e me deram a posição de “chairman” por ter sido o primeiro a estudar a herança da reação de Mitsuda e demonstrar, assim, que a resistência e a suscetibilidade à lepra lepromatosa, que se chama agora hanseníase virchowiana, era geneticamente determinada. Mas falemos das contribuições. Ninguém estudava a suscetibilidade e resistência genética a doenças infecciosas. Na década de 60, numa época em que ninguém falava em epidemiologia genética, eu já estava trabalhando nessa área e criando métodos que não existiam, porque a genética só tinha metodologia para as doenças constitucionais e degenerativas. Tive, pois, que ir tateando até encontrar um caminho. Essa, creio, foi uma contribuição importante do Departamento de Genética Médica. Essa linha de pesquisa de herança da resistência e suscetibilidade a doenças infecciosas foi inaugurada em Campinas, na Unicamp. Tive a felicidade de, dentro da hanseníase, ter encontrado o caminho certo estudando a reação de Mitsuda, que mostra se o indivíduo tem resistência à lepra lepromatosa. Se tiver uma reação positiva, a pessoa nunca a manifestará. Se ela for repetidamente negativa ou histologicamente negativa, esse indivíduo está sob risco de contágio. Outras áreas em que o Departamento deu grandes contribuições foram epidemiologia de anomalias congênitas e baixo peso de recém-nascidos; métodos de estudos de caracteres quantitativos em gêmeos; métodos para o diagnóstico de zigosidade; epidemiologia de nascimentos gemelares; hemoglobinopatias; venenos mitóticos; fatores que influenciam a transformação blástica in vitro; deficiência de desidrogenase de 6-fosfato de glicose; acetilação da isoniazida em pacientes tuberculosos; deficiência de pseudocolinesterase; deficiência de antitripsina alfa1; deficiência de NADH-redutase de metemoglobina; síndrome de Gilbert; hipolactasia do adulto; causas genéticas de deficiência mental; e fatores que influenciam o peso de recém-nascidos normais, entre outros temas relevantes.

JU – O senhor permaneceu quanto tempo no departamento?

Bernardo Beiguelman – De 1963 a 1997, ano em que me aposentei. Hoje, me cederam uma sala na USP onde toco algumas pesquisas sobre hanseníase, malária e hepatite, com base em estudos feitos em Rondônia. Sou suspeito, para falar sobre as contribuições do Departamento, mas elas foram muitas, especialmente no que diz respeito à formação de material humano. Um caso emblemático foi a formação do mais importante geneticista clínico que temos no País, o professor Walter Pinto Júnior. Ele foi meu monitor de genética desde o primeiro ano que entrou na faculdade. Teve a formação mais completa que poderia ser dada a um geneticista clínico, que não existia àquela época. Eu brincava, dizia que ele era biônico – estava sendo “fabricado” para ser geneticista clínico. Sua formação começou aqui na Unicamp, onde se formou em 1969, e depois, em Syracuse, NY, com Lytt Gardner, nos Estados Unidos, com bolsa norte-americana, ganha em concurso.

JU – O que mudou no campo do diagnóstico?

Bernardo Beiguelman – A possibilidade de fazer previsões. Antigamente, a genética se utilizava basicamente dos cálculos de probabilidade para fazer previsões a respeito da manifestação de heredopatias. Atualmente, porém, ainda no primeiro trimestre de gestação já é possível saber se o feto apresenta alguma anomalia cromossômica, sendo possível determinar, previamente, se um indivíduo está sob risco de manifestar numerosas doenças hereditárias, ou de apresentar reações adversas a determinados medicamentos ou anestésicos. A genética, que era a rainha das probabilidades, acabou ficando a rainha dos diagnósticos de certeza, porque ao verificar as alterações do DNA ou o efeito primário dos genes, acaba obtendo o sinal patognomônico das doenças.

JU – Na linha evolutiva da Medicina, o que isso significa?

Bernardo Beiguelman – Não sei se vai melhorar muito a vida das pessoas ou se vai servir para neurotizar um sem-número delas (risos)... Porque, se o indivíduo sabe que está sob risco, passa a ter um determinado comportamento; do contrário, age de outra forma. Não deixa de ser, porém, uma linha evolutiva, principalmente quando é possível a adoção de medidas preventivas, após o diagnóstico de risco.

JU – Dá para especular sobre o que está por vir?

Bernardo Beiguelman – Acho que campos como a citogenética humana e estudos do DNA estão esgotados e servem, nas pesquisas, apenas como aplicações tecnológicas. Há muito pouca coisa a ser descoberta nesses campos; apenas enfeites. Descoberta para valer nessas áreas não tem mais. Como já disse, acho que o campo mais promissor é a neurobiologia, que inclui a neurogenética e a genética das doenças mentais, havendo muito a pesquisar a respeito do comportamento humano. Não estou sozinho nessa hipótese. Estou com Arthur Kornberg, que foi prêmio Nobel em 1959, com Severo Ochoa.

JU – Falando em novas áreas, o que o senhor acha dos campos das células-tronco e da clonagem?

Bernardo Beiguelman – Trata-se de um campo fantástico o das células-tronco, embora fuja do campo da Genética. Por outro lado, em breve, a preocupação não vai ser tanto em como encontrar as células-tronco e aplicá-las, mas sim em como dominar a capacidade de fazer uma célula diferenciada voltar a ficar indiferenciada. Não tem diretamente a ver com a genética, mas é claro que pode acontecer de muitos geneticistas que trabalham com culturas de tecidos, começarem, por aproximação, a trabalhar nisso. As ciências biológicas estão criando tantas áreas de contato, se interpenetrando tanto, que fica difícil a pessoa definir seu campo de atuação.

JU – E quanto à clonagem?

Bernardo Beiguelman –Já tive oportunidade de me manifestar a respeito para o Labjor, informando que, ao contrário da maioria de meus colegas, sou a favor da clonagem reprodutiva, desde que haja maior domínio dessa técnica. Chamei a atenção para o fato de que a identidade genética dos clones não significa identidade na aparência física ou psicológica, porque todo o ser vivo é o resultado da interação da sua constituição genética com o ambiente e é por isso que os gêmeos monozigóticos, que são os verdadeiros clones naturais humanos, têm aparência física semelhante, mas não são fisicamente idênticos, além do que apresentam individualidade psicológica. Insisti nesse detalhe porque, lamentavelmente, existe uma tendência generalizada de enfatizar apenas a importância da constituição genética das pessoas e de menosprezar o efeito do ambiente, como se o ser humano não fosse mais do que o seu genótipo! Impedir o emprego da técnica de clonagem reprodutiva na espécie humana por causa do risco remotíssimo de sua utilização para a criação de uma sociedade homogênea, facilmente manipulável, não faz o menor sentido.

JU – Por quê?

Bernardo Beiguelman –Já foi demonstrado à saciedade que a manipulação de populações humanas não exige identidade genética. Mais do que a improvável homogeneidade genética, devemos temer o ambiente homogêneo dos regimes totalitários, que conduzem ao fanatismo e ao ódio.

‘Nenhuma homenagem me é tão cara e tocante’

“De todas as homenagens que tenho recebido ultimamente, nenhuma me é tão cara e tão profundamente tocante quanto o título de professor emérito com o qual sou agraciado agora, não só porque ele me foi conferido por meus pares, mas por ter sido proposto pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, à qual dediquei os melhores 35 anos de minha vida em regime de dedicação integral à docência e à pesquisa, e nela tive a oportunidade de organizar o primeiro Departamento de Genética Médica da América Latina. Mais de 80% de minha produção científica e, praticamente, todos os livros e capítulos de livros que publiquei foram escritos nesse período, deles constando sempre a Unicamp como meu único endereço profissional. Foi nesta universidade que formei numerosos discípulos, mestres, doutores e especialistas, dispersos por este vasto País e alguns no exterior. Creio, pois, que, com essas contribuições, retribuí à Unicamp, à altura, as condições de trabalho que ela me possibilitou”.

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Trecho do discurso proferido pelo professor Bernardo Beiguelman na cerimônia de entrega do título de professor emérito.

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