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Acadêmicos tiram o samba do rodapé

Pesquisadores, professores e compositores participam durante três dias de seminário que colocou o gênero musical no centro do debate

ANTÔNIO ROBERTO FAVA

O samba popular deixa o morro carioca, onde nasceu há pouco mais de 80 anos, ganha a avenida e chega à universidade. O mesmo samba a princípio executado na caixa de fósforos, com violão, pandeiro e cavaquinho, é hoje tema de teses e assunto obrigatório nas universidades. Gênero musical muito apreciado no Brasil, o samba foi, de 21 a 23 de outubro, o assunto principal do seminário Samba em Debate, no auditório do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Foram mais de 14 horas de debates com professores, pesquisadores e especialistas das principais universidades brasileiras, além de quase duas horas de música com o cantor, compositor e violonista Jorge Simas.

Segundo o professor José Roberto Zan, idealizador do seminário, há um vazio na academia com relação a estudos mais acurados sobre o samba, sempre visto com o rabo-de-olho e certo preconceito. "Todavia, não se trata de um gênero menor, como freqüentemente se ouve até mesmo dentro da própria universidade. Creio que é papel da Unicamp discutir também assuntos considerados por parte da crítica como um gênero menor, mas igualmente importantes quando investigados sob o aspecto científico", diz.

O professor José Roberto Zan, idealizador do seminário: estudos sobre o samba precisam ser aprofundadosZan explica que o tema já foi motivo de reflexão de simpósios realizados por outras instituições brasileiras. Lembra que a Unicamp foi a primeira universidade a criar uma modalidade do ensino da música popular. No entanto, observa que "há constantes lutas dentro das instituições acadêmicas de modo geral em busca da consagração ou de legitimidade com relação a determinadas temáticas estudadas em algumas escolas", diz o professor.

Para a diretora do Instituto de Artes, Helena Jank, a Unicamp, assim como a própria sociedade, via a arte como um simples objeto de lazer. "Havia certa dificuldade em perceber a arte como um objeto de pesquisa científica". E mais: "Como musicista erudita, posso dizer, por experiência, que ainda há certo preconceito por parte dos próprios músicos e estudantes de dentro e de fora da universidade, com relação àqueles que fazem uma música diferente, que não a clássica ou erudita. Muitas vezes rotulam a música popular de "subproduto, enquanto pesquisa acadêmica, o que não ocorre quando é tratada sob o ponto de vista artístico".

Uma roda de samba animou o encerramento do Samba em Debate, na tarde do dia 23, no Instituto de Artes (IA). Foram quase duas horas de samba da melhor qualidade, na interpretação de grupos musicais – cavaquinho, violão, surdo, pandeiro e cuíca – formados por alunos e ex-alunos do IA – Cupinzeiro e Quarteto de Cordas Vocais, que executaram obras consagradas de João Nogueira, Noel Rosa, Assis Valente, Geraldo Filme, Walter Alfaiate, Monarco, Nelson Sargento e Ney Lopes, entre outros.  Refletindo sobre a música popular em termos mais amplos, não especificamente o samba, verifica-se que de uns anos para cá o gênero começou a ser objeto de uma análise mais consistente - e séria. "Antes, dava-se muito mais valor à música erudita, à composição e à regência", opina Zan.

A partir do momento em que música popular foi reconhecida como fenômeno complexo e, por isso mesmo, encarada como objeto de investigação acadêmica, a universidade passou então a criar cursos na área de música popular. Segundo Zan, isso tem um propósito. "Formar músicos, instrumentistas, compositores e arranjadores que vão atuar na área. E é essa geração que pode interferir de maneira a modificar o rumo da indústria cultural brasileira. Mesmo porque a música popular de hoje não é mais aquela que se fazia antes, numa caixa de fósforos, numa roda de cerveja, numa mesa de botequim".

Dançar

Para o professor Dilmar Santos Miranda, da Universidade Federal do Ceará, a sobrevivência do negro, desde a escravidão, deve-se a múltiplas estratégicas e inúmeras formas sutis de tenaz resistência, que o manteve permanentemente em estado de negociação, destacando-se o que mais sabia fazer à maneira dele: a música. Dilmar deduz que diversas formas musicais que se fixaram a partir das três últimas décadas do século 19, até os primeiros decênios do século 20, são testemunhos vivos de estratégias de sobrevivência cultural, diante da nova ordem que se instaurou no país, assinalando múltiplas táticas de conduta do povo.

Dentre tais formas, destaca-se o samba, que sofre, no decorrer das primeiras décadas do século 20, uma importante modificação rítmica. Inicialmente, ele guarda uma levada próxima à do maxixe. "Era bom para dançar, mas ruim para caminhar", explica.

Miranda cita depoimento de Ismael Silva ao jornalista Sérgio Cabral, em que o sambista dizia que a alteração rítmica era necessária porque "a gente precisava de um samba para movimentar os braços para a frente e para trás durante o desfile". Assim, materializando a intenção dessa geração, agregada por volta de 1927 em torno do bairro do Estácio de Sá, no Rio, entra em cena o samba batucado, marchado da Deixa Falar, considerada a primeira escola de samba responsável por desgarrar o samba do maxixe, para adequá-lo à progressão dos préstitos, propiciando um andamento mais leve.

Ainda de acordo com Dilmar, conforme depoimento do compositor Babau da Mangueira, o novo gênero criado, mais adequado para ser dançado e cantado em cortejo, "era o samba de sambar". Para empurrar o samba, com um ritmo mais acelerado, introduziu-se o surdo de marcação, que fazia prevalecer a pancada forte no segundo tempo do compasso dois por quatro, em oposição ao movimento mais lento, em meneios, do lundu, ou, em volteios, do samba baiano próximo ao maxixe. Outros instrumentos médios e agudos de percussão executavam o contraponto, como o tamborim que, ao preencher os claros entre os tempos fortes do surdo, ajudavam a consolidar o novo padrão rítmico.


Ranchos

O pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia, Edson Farias, diz que quando fala em desfile de carnaval não se refere ao das escolas de samba, mas sim de um modelo desenvolvido pelas grandes sociedades. Esse modelo foi traduzido depois pelos desfiles dos ranchos (agremiações intermediárias entre os blocos pelo uso de instrumentos de sopro e pelas músicas no estilo marcha-rancho), que se afirma à medida que a cidade do Rio de Janeiro, com sua metropolização, ao mesmo tempo passa a se definir por novas instituições de entretenimento. "Com o incentivo forte da imprensa, o divertimento urbano cresce à medida que a industrialização cria oportunidades para o operariado, definindo as classes médias. O período áureo do carnaval do Rio coincidiu com o apogeu dos ranchos, matrizes das atuais escolas".

Foi neles que foram buscar o mestre-sala (que os ranchos chamavam de baliza), pelo refinamento artístico. O tema do desfile era sempre tirado da ópera, da literatura, da mitologia ou da história universal. Os nomes das agremiações eram de irresistível extração lírica: Ameno Resedá, Recreio das Flores, Mimosas Cravinas, entre outros.


Cadência

O pesquisador Carlos Sandroni: outro ritmo a partir da década de 1930.O músico e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco Carlos Sandroni lembra que a primeira música registrada como samba é Pelo Telefone (1917), criada por um grupo de boêmios que se reuniam próximos da Praça Onze, no Rio de Janeiro. Ali ficava a casa de Tia Ciata, baiana considerada "mãe" do gênero. Composta pelo cronista Mauro de Almeida (1882-1956), Sinhô (1888-1930) e Donga (1889-1974), faz alusão à perseguição policial aos jogos de azar.

O gênero espalha-se pelo Brasil e domina o carnaval. Sinhô e Ismael Silva (1905-1978) destacam-se com suas composições. Na década de 1930, o samba passa a ser difundido regularmente pelas rádios e faz sucesso o ano inteiro. Sandroni explica que o que realmente começou a onda do samba foi sem dúvida nenhuma Pelo Telefone. Quando se ouve esse samba e os gravados até a década de 1920, os sambas de Sinhô, como Jura e Gosto que me enrosco, por exemplo, "percebe-se que ambos têm um certo estilo, um acompanhamento rítmico que se faz de maneira específica. Quando se ouvem sambas a partir de 1930, nota-se claramente que há um outro estilo, cujo ritmo já não é o mesmo", explica Sandroni. Esses fenômenos coincidem com o aparecimento das escolas de samba, no início dos anos 30.

O primeiro desfile extra-oficial ocorreu em 1932, e o primeiro desfile de carnaval em 1935, na Praça Onze, onde durante muitos anos se concentravam os grupos nos dias de carnaval. A primeira escola que apareceu no Rio de Janeiro foi a Deixa Falar, fundada em 1928, no bairro do Estácio, zona Norte da cidade. A escola ficou bastante conhecida nos anais do samba. Sandroni acentua que o crítico Sérgio Cabral revelou que, à época do seu surgimento, Deixa Falar nunca fora classificada na verdade como escola de samba. Mas sim um bloco carnavalesco. "Mas foi um bloco que mudou o estilo e criou uma performance muito própria que se transformaria na primeira escola de samba. Com essa mudança de estilo, teve papel importante a introdução de novos instrumentos e a combinação desses instrumentos dentro de uma estrutura de batucada própria", diz.


Ritmo

O compositor Jorge Simas: "Tudo é decidido por meia dúzia de pessoas""Podemos ver que hoje, não apenas o samba, mas praticamente a arte como um todo, está passando por um momento de extrema submissão à mídia e ao mercado de consumo". A afirmação é do cantor, compositor e instrumentista Jorge Simas, durante seu bate-papo com estudantes no Seminário Samba em Debate. E denuncia: "o que se está tocando no rádio e aparecendo na televisão é decidido por meia dúzia de pessoas ligadas às gravadoras e aos meios de comunicação".

Cantor, compositor e instrumentista, Simas tem músicas gravadas pelos mais importantes sambistas brasileiros, entre eles João Nogueira, Zeca Pagodinho e Beth Carvalho. Ele diz que se Chico Buarque - "provavelmente o maior compositor depois de Noel Rosa" - estivesse começando hoje, quando impera o consumo da música sertaneja e do pagode, com certeza não teria o mínimo espaço para fazer o seu trabalho. "Certamente, em termos de música, estaria fadado ao fracasso", revela.

Esse esquema é feito pelas grandes redes de televisão e rádio que executam determinadas músicas de maneira maciça, que acabam se transformando num sucesso imposto. "Não é como antigamente quando a música nascia do compositor, que a oferecia a determinado intérprete na gravadora, que gostava da música e a lançava. Hoje em dia a proposta é decidida numa sala de gravadora, com dois ou três camaradas que nem se conhecem. Forma-se ali um grupo e acabam assinando um contrato faraônico. Aí a garotada cai naquela esparrela, gravando coisas que às vezes não têm nada a ver com o estilo e a identidade deles", diz.

Um exemplo disso são os grupos de pagode que surgiram na década de 1990, Só Para Contrariar, Grupo Soweto, entre outros. "Na verdade, são garotos que gostam do samba de boa qualidade. Entretanto, tiveram que se render a uma imposição da mídia e do mercado".

Verifica-se que esse processo, em busca do sucesso fácil acabou provocando um empobrecimento absurdo e nivelando, por baixo, o samba de qualidade em termos de letra, harmonia e melodia. "Exemplo disso é o sertanejo, que se transformou num gênero de baixa qualidade. É um tipo de música que tem momentos que parecem versões de baladas americanas sem valor artístico", opina o músico.

Da instrumentação do samba de qualidade, que não puderam exterminar, ficou apenas o som do surdo, do pandeiro, como elemento de sustentação nas gravações. "Se formos analisar a melodia, a temática se transformou num negócio extremamente meloso, de um tipo de explanação de amor de uma forma muito rasteira, sem a picardia do samba que compositores consagrados usavam", lembra.

Até mesmo as grandes cantoras - Gal Costa e Maria Bethânia - acabaram por se render às imposições das gravadoras. Às vezes ouve-se delas que não há compositor produzindo boas músicas. "Coisa absurda, porque o que mais há no Brasil é compositor de talento, produzindo coisas boas", diz. Em qualquer barzinho que se vá, em São Paulo ou no Rio, há alguém cantando uma música nova. "A gente que anda por aí vê talentos de sobra".


Sociedades carnavalescas

Para a professora Olga von Simson, da Faculdade de Educação da Unicamp (FE), o carnaval praticamente começou a partir de 1855, com o surgimento de uma nova maneira de festejar os dias de Momo. Imitando costumes europeus (franceses e italianos), homens de camadas mais abastadas, principalmente estudantes universitários, profissionais liberais e ricos comerciantes, fundaram as Sociedades Carnavalescas, associações destinadas a promover grandes cortejos pelas ruas e praças dos centros urbanos e bailes luxuosos em hotéis e teatros.

Tudo isso com um único objetivo: divertir o povo. O curioso é que, segundo a professora Olga, tanto durante os desfiles formados por grandes carros alegóricos, animados por bandas e músicos, como nos bailes de máscaras, as mulheres de família não podiam tomar parte ativa, ficando apenas como espectadoras da folia.

"Postadas nas janelas dos grandes sobrados ou nos camarotes dos teatros para "assistir ao carnaval", recebiam flores, doces, confeites, homenagens e bilhetinhos. Mas não podiam participar ativamente da folia", explica a professora.

Permaneciam então como que para embelezar o cenário, como ainda é hoje, "um foco de endeusamento por parte do universo masculino das associações". No entanto, nota-se que as grandes folionas do carnaval daquela época eram as "mundanas" - prostitutas e artistas de teatro, principalmente as de origem estrangeira que, tendo algum conhecimento desse tipo de folguedo em seus países de origem, funcionaram como "professoras da folia".

Segundo a pesquisadora, elas eram "ricamente fantasiadas, adornavam os carros alegóricos nos préstitos carnavalescos e mais tarde dançavam e ceavam com os integrantes das sociedades carnavalescas nos bailes dos teatros ou dos hotéis de luxo". Elas eram carinhosamente chamadas de "diletas filhas do amor".