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exemplo do ano anterior, a Unicamp reuniu em livro 30 redações do Vestibular/2001. Às vésperas de mais um exame de seleção, o Jornal da Unicamp publica quatro delas, que receberam nota máxima nos formatos de dissertação, narrativa e carta, e que poderão oferecer parâmetros para os novos candidatos. As redações foram escolhidas pela Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest), que optou por contemplar os alunos vindos da rede pública de ensino. Os textos estão na íntegra, logicamente sem revisão.


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DISSETAÇÃO

O desafio da última fronteira

IVAN NICOLAU FALSETTI*

sistemático avanço do conhecimento humano no século XX, principalmente na área de tecnologia, trouxe, como resultado concreto, a eliminação das fronteiras que diretamente interferiam nos processos de aquisição e de utilização dessas novas técnicas. Eliminar fronteiras significou garantir ao poder econômico o máximo em meios de produção, além de garantir enormes mercados consumidores. A conseqüência mais evidente foi, porém, o crescimento das desigualdades sociais e o acirramento de velhas disputas étnicas culturais, muitas vezes dentro de um mesmo país, ele próprio fruto dessa montagem de interesses econômicos. Essas desigualdades e disputas se mostram, às portas do século XXI, expressas nas barbáries que se observam, principalmente, no mundo “civilizado”, com elevado padrão tecnológico.

A barbárie, mais do que se referir às atrocidades cometidas por grupos sociais ao longo da história, remete a um ponto difícil: expor o que foge às regras determinadas por um grupo social frente a modelos não conhecidos. Conhecer novos modelos de organização social faz o homem questionar suas raízes, reafirmar valores, ou colocar em dúvida modelos tidos até então como inabaláveis, mas que se mostram na realidade injustos. Se amplia horizontes, fortalece dúvidas, expondo a fragilidade de conceitos muitas vezes veiculados com o objetivo explícito de manter, por parte dos grupos dominantes, um status quo político, social e econômico.

Hoje, a tecnologia gerada pela força econômica interfere em padrões culturais dos mais diversos países, para que a classe dirigente deles, “maravilhada” pelas possibilidades de uso dessa tecnologia, sinta-se inserida no mundo globalizado, “evoluído”. No caso do Brasil, as elites e os governos, atentos ao “maravilhoso” mundo globalizado, repetem o mesmo modelo social e econômico que durante séculos fez, da maioria dos brasileiros, excluídos. É tradição negar ao povo participação nas “conquistas” sociais e econômicas. Mesmo porque elas seriam inviáveis, como modelo, se no povo fosse pensado.

A atual queda de fronteiras tomou um rumo pretendido: facilitar o crescimento do poder econômico tecnológico, o que não era possível com a ordem econômica e política herdada da época do motor a vapor e do uso da eletricidade convencional. Não houve, e não há, interesse em eliminar fronteiras que afastam os grupos sociais que detêm essa tecnologia dos grupos sociais que estão excluídos deste mercado tecnológico, como consumidores, mas que permanecem como mão-de-obra baratíssima para sustentá-lo.

Conversar por e-mail dentro de casas ou de escritórios em zonas físicas privilegiadas, cercadas de outros confortos tecnológicos, pode fazer o homem não enxergar a realidade social à sua volta. E o que não é visto pode não existir, e pode não ser pensado, porque não é sentido. É preciso que esse sentir seja reavivado. Se o homem julga pelo que conhece e toma por modelo, deve conhecer todas as realidades possíveis, e senti-las, antes de julgar.
Não há padrão para um novo modelo social no século XXI, mas há premissas básicas para que essa fronteira de identidades culturais e étnicas comece a ser vencida: a tolerância às diferenças sociais e culturais e o respeito à dignidade do ser humano. E ambos não são produtos tecnológicos.

*Ivan Nicolau Falsetti, de Mogi Guaçu (SP),
candidatou-se a Medicina

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NARRATIVA

Um corpo que vaga

PATRÍCIA FRANCISCA MAGRI*

s tardes nunca mais foram tão amarelas e claras como aquela... sem dúvida foi um daqueles dias em que a natureza intervém para torná-lo ainda mais vivo e forte. Sinto minhas entranhas arderem de um frio que cala o silêncio das minhas noites, cada vez que invade minha mente o amarelo enegrecido daquela tarde.
Estávamos, Alberta e eu, já felizes por termos passado imunes pelo congestionamento habitual da Paulista, o qual sempre nos rouba nossas filhas, pobrezinhas, sempre tão agitadas: inglês, natação, roupas e brinquedos novos; fosse, talvez, o dia de chegarmos a tempo para dizer-lhes: “Boa noite”. Alberta acelerou, mas pude ver em seus olhos o brilho daquela felicidade se acinzentando de azuis, pretos, brancos metálicos lentamente se unindo, colorindo o horizonte numa triste e silenciosa vista do pôr-do-sol. O carro parou e também nós paramos... – Aposto que é um cachorro atropelado. – Foi esta a frase com que Alberta anunciou o final daquele brilho em seus olhos.
Fechar os vidros, travar as portas... Soltei a gravata enquanto Alberta mordia os cantos da boca... Odiava vê-la assim, deformava o rosto, mas ela não parou até que percebeu algo movendo as latas de lixo na calçada, fingiu não ter visto... Mas eu sabia que aquela visão a invadia, a vasculhada, adentrava teimosamente seu mundo... Arrancou até umas gotas de suor de sua fronte, as quais rapidamente enxugou – Fechou os vidros? Travou as portas? – As perguntas eram a prova da minha suspeita, ela estava sendo invadida pelo lixo. E ele continuava, impiedoso, movia-se, revirava-se, comia-se... – Será um cachorro? – Eu não respondi, as luzes do motel em frente revelaram e escondiam, piscando, a realidade – lixo, homem, lixo, homem, lixo. – Alberta quase sorria ao se apagarem as luzes, eu também as preferia apagadas, assim não me corroíam os vermes, nem os da morte, nem os da desigualdade, porque o lixo é morte, é podridão, e Alberta sabia disso, devia sentir dilacerar-lhe a alma a proximidade com aquela carne podre, carne como a sua que trazia muito limpa e cheirosa ... cada minuto que passava presa ali – pois estávamos presos nós três, por motivos e mundos diferentes, mas todos diante da mesma passividade e do mesmo tão comum individualismo dos seres humanos viventes em sociedade. É um paradoxo, é, pois, humano. – Torturava-lhe mais e mais a incapacidade de fazer algo por aquela coisa que tão semelhante, e por isso afrontante, lhe parecia.
Independentemente da sua decisão, o lixo continuava: gemia-se, revirava-se... Afrontava-nos o modo como vencia a morte tirando dela sua vida a cada dia... Fazia nos sentirmos imundos, a cada mordida a cada engolida daquilo de que Alberta e eu só aprendemos a fugir. Uma lágrima escapou dos seus olhos agora tristes... Era o anúncio do seu fracasso, da sua decisão, a ação lhe pareceu correta, “albertamente” correta... Ela não faria nada. – Eu sabia, imagine, que um dia estava eu sujo de terra, pois havia jogado futebol e ela passou por mim, na rua, fingindo não me reconhecer. – O lixo não sabia, mas pôs à prova a parte mais dura, a essência de Alberta, criada entre jóias e perfumes franceses... Não podia, o que diria sua mãe se a visse convidando um mendigo para o jantar? O que diria seu pai? Suas tias? Lutou a vida toda para se esquecer de que um dia ia apodrecer e chamou isso de viver bem. Como ia, agora, poder se aproximar de alguém que podia tirar vida daquilo que ela sempre chamou de morte? As fronteiras eram claras para ela!
“Ser ou não ser?” E Alberta não foi! Manteve sua alma enjaulada onde achou melhor a sociedade. Na verdade, quando o carro finalmente acelerou e o lixo foi ficando pequeno no retrovisor, senti pena, não do lixo, mas de Alberta que é uma pobre alma trancada dentro de um corpo que a mata um pouco por dia... Mais uma roupa que a esconde, mais um perfume que a sufoca, mais uma atitude mesquinha, ela já não tem força para simplesmente ser. Talvez já não seja nada, e por isso tantas jóias, tantos perfumes capazes de esconder o mal cheiro de alguém que apodrece ainda em vida.
Não pude nunca esquecer-me daquele dia, sei que Alberta também não se esquece, pois o lixo que ficava na cozinha foi mudado para o quintal, onde permaneceu longe de suas vistas. Novamente sacrificou sua alma em nome de sua “casca”.

*Patrícia Francisca Magri, de Americana (SP),
candidatou-se a medicina

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