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exemplo do ano anterior, a Unicamp reuniu em livro 30 redações do Vestibular/2001. Às vésperas de mais um exame de seleção, o Jornal da Unicamp publica quatro delas, que receberam nota máxima nos formatos de dissertação, narrativa e carta, e que poderão oferecer parâmetros para os novos candidatos. As redações foram escolhidas pela Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest), que optou por contemplar os alunos vindos da rede pública de ensino. Os textos estão na íntegra, logicamente sem revisão.


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CARTA

PAULO BEARZOTI FILHO*

Cárdenas, outubro do ano 2000

om dia, Elián!

(Desculpe-me se não for dia. Mas, na idéia que faço do momento em que você estiver lendo essa carta, o sol brilha, intenso, numa límpida manhã em Cárdenas ou Havana.)

Será que estou vivo? Estou a seu lado? Somos amigos? Você me ama e é cubano? Ou de novo se atirou ao mar da busca que não cessa e cerra fileiras com os aflitos e ansiosos que não têm casa?

De qualquer modo eu o amo. Aqui, quando escrevo, e aí, quando você lê, eu o amo.

Essa certeza tenho, e a de que agi com correção nos tristes episódios que nos envolveram e nos fizeram comentados em todo o mundo. Mas não posso ter certeza de como você sentiu tudo. Por isso lhe escrevo. Para que o moço de 21 anos leia o que não pôde ouvir o mesmo de seis.

Elián, você deveria ter ficado nos Estados Unidos? Quando você sorria com os parentes, em Miami, era sincero? Quando me viu e ficou retraído, quando gritou de horror, no armário, em braços refugiados, ante a arma do policial estadunidense — eram estes índices de que você não queria voltar para Cuba?

Aos seis anos, você, Elián, já havia vivido o que a maioria de nós não viverá nunca. Fugiu em um barco precário, embalado por ondas perigosas e pela fantasia de sua mãe, viu todos morrerem e — metáfora cubana — salvou-se sobreviveu, com coragem e força, contra todas as probabilidades.

Depois, a CNN, a justiça, Fidel Castro, a comunidade cubana de Miami, o modo americano de vida, os jogadores de beisebol, todos se voltando para Elián, não mais um nome próprio, um Gonzáles, mas um signo que o transcendia.
Tudo isso deve tê-lo amadurecido. E como!
Mas para mim, Elián, nada disso o fez tornar-se um adulto. E talvez somente eu tenha sido capaz de entender essa verdade tão simples.

Eu acredito na Revolução, Elián. Acredito em meu povo e em meu país. Acredito que se é feliz no Terceiro Mundo, que nosso modo de vida é belo, porque é simples e autêntico. Aprecio a cor azul-safira do mar que nos banha a costa. Emociono-me com as aves e os filhotes de gato. Levanto o rosto quando caem os primeiros pingos das chuvas de verão. Mas, acima de tudo, Elián, acima das ideologias e das decisões que tomei sobre minha vida, eu acredito que um menino precisa de seu pai.

Na televisão, em Miami, naqueles terríveis dias que tanto custaram a passar, o jornalista me inquiriu se a vida que você levaria nos EUA, com dinheiro e eletrodomésticos, não seria melhor que em Cuba. Respondi-lhe que em Cuba não havia crimes, que as crianças não matavam colegas e professores na escola. Isso dizia o espírito. O coração, porém, cantava doce rumba cubana, tirava longas baforadas dos charutos que em Miami se proíbe.

O homem vive em casa. Somente aí ele é são. É gente e não coisa. Respira ar e não ideologia. Fora de casa andamos loucos, surrados pelo incompreensível. Em casa, na família e na aldeia, sabemos que o ar e as plantas, o mar e a lua, as canções e os beijos, as fugas e as voltas, o naufrágio e o salvamento existem porque nós existimos, pois se fazem da mesma matéria que nós, pois de nós se fazem.

E é por isso, meu filho, que lutei para tê-lo para tê-lo comigo.
Bom dia, Elián! O sol se abre grandioso e a manhã é límpida em Cárdenas e Havana.

Seu pai,

J. M. G.
*Paulo Bearzoti Filho, de Curitiba (PR),
candidatou-se a Lingüística

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NARRATIVA

Seja feita a tua vontade

CÁSSIO H. D. C. LORATO*

h! Vocês sim, meus anjos, vocês podem saber a pior ou melhor história da minha vida. Para vocês, eu posso confessar o meu maior pecado, que nem é um pecado meu. Sim, saibam o que é o amor que não se importa com barreiras, o amor que não tive, o amor que morre para renascer e renasce sem ter morrido, tornando-se eterno. Vocês também vão saber, meus santos, de tudo que até hoje não pude contar e, por invejar, chorei tantas vezes...

Chovia muito aquela noite. Eu estava para fechar a igreja, quando um ensopado e transtornado homem estendeu a mão pedindo ajuda. Era ele. Sim, o meu velho coroinha, o rapaz que ensinei a ser homem, o filho que não pude ter. O mesmo que um dia abandonou-me em troca de um novo Deus. Deusa, aliás. Ah! Ela era linda. Como a Virgem Maria. E ele se apaixonou. Lembro-me do seu desespero me pedindo conselhos. Lembro-me de quando os surpreendi na sacristia. Lembro-me do seu casamento, de quando combinaram o amor eterno. Lembro-me do parto. Lembro-me de quando ele chorava para que Deus salvasse sua amada. Lembro-me da criança. E da rejeição que o pai sentia. Era a mãe que ele amava e mais nada. Mas... o que ele queria agora? E por que chorava tanto? Então ele resolveu se confessar.

Contou-me tudo. Do começo da sua paixão (coisas que eu não sonhava em saber!) até este fatídico momento. Contou do seu pacto de amor até a morte. Quem morresse não iria sozinho. Contou do parto, quando ela quase morreu. Desabou quando disse que odiava sua filha, mas que ao mesmo tempo era tudo para ele. Era tudo, pois sua esposa já era parte dele, uma simbiose na alma. Mas agora tudo estava acabando de novo. Gritava, desesperado, queria saber onde estava Deus. O Deus que sempre foi seu companheiro e que ele jamais abandonara. Ela tinha câncer. Ela iria morrer. Estava de novo na linha crucial, jogada numa cama. Ele sentia-se mutilado. Ela iria morrer. Ela queria morrer. Mas, e nossa filha? gritava. Como vai ficar? Eu preciso ir junto dela, mas e nossa filha? Chorava e me abraçava. Até que ponto vai o amor? Sim, Deus, onde você está? Eu não sabia o que fazer. Ofereci-me para educá-la como eduquei a ele. Não, pai! Não! Ela vai junto com nós dois! Padre, Deus vai me perdoar, pois, se ele inventou o amor, que colha agora o resultado. Disse e saiu correndo.

Fui atrás tentando impedir esta loucura. Criei um monstro ou um anjo? Cheguei. Como era linda a criança. Lá no hospital, pobrezinha. Mas, agora, ela iria morrer. Seria justo uma morte sem sentido? Mas, por outro lado, o sentido dessa morte era o mais justo que eu já vira. Perguntei sobre sua mãe. Não respondeu. O pai chegou. Não tinha mais escolha. Sua virgem acabara de morrer. Deus, num instante, ruiu aos pés de um de seus fantoches mais bem feitos. E agora? Ele dizia que tudo estava acabado. Ele e sua filha iriam embarcar. Assim, os três, formando uma Sacratíssima Trindade, veriam aquele que fora o mentor de tudo. Fariam com que as manhãs não fossem tão cinzas e que o amor fosse eterno como eles. Do alto e puro céu, guardariam aqueles que se aventurassem. Os três, os dois, a criança, os três. Era agora. Mas não permiti, peguei a sua filha e fugi. Ele, impassível, não reagiu. Estava mutilado. Foi ao quarto, beijou sua alma, já fria. E dormiu.

Um mês se passou do enterro. A menina nada falava. Meu filho desaparecera. Até que um dia chegou. Calmo. Sereno. Acabado. Sorriu para a filha. Abraçou-a. Abraçou-me. Pegou na mão dela e foi até o altar. Lá, atravessou a última barreira que o impedia de ser um anjo. Ajoelhou-se e, com um punhal na mão, deitou sua filha sobre o mármore. Deu o último beijo. O último abraço. O último soluço. A filha disse: “Papai, eu amo você, e amo a mamãe também!” O punhal rasgou o peito da imaculada. “Eu também, filha, perdão!” respondeu. E eu ali, vendo tudo e nada fazendo. O sangue tingiu a palidez da capela. O céu pareceu se abrir. Desceu uma linda mulher com uma menina no colo. Meu filho olhou. Olhou para mim. Para Cristo na cruz. Para o corpo de sua filha. “Seja feita a Tua vontade!” E caiu. Passou da mediocridade amorosa, a fronteira do amor comum e fez o Amor Sublime. O sol mais lindo que Deus ousou fazer nascer sondou a igreja.

Ah! anjos e santos, saibam como me sinto por ter sido parte desta história. Quem dera eu pudesse amar assim...

Transgredir as regras, tentar ser Deus, sem esquecer a Deus, e reinventar a vida! É por isso que toda hora o sino badala mais três vezes. Pelo Pai, Filho e Espírito Santo. Pelo Amor, pela Superação, pela Vida. Por ele, ela, pelos dois. Por aquela criança. Quem me dera ter um amor assim... Ah! meus amigos, nesta vida, só nesta, resta uma coisa: “Seja feita apenas a Tua vontade, meu Deus!”

*Cássio Henrique Dyna Correa Lorato,
de Sorocaba (SP), candidatou-se a História

 


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