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Consumo dita transição do
Brasil arcaico ao moderno
Tese demonstra como pesquisas de opinião detectaram
mudanças comportamentais na década de 1950

ISABEL GARDENAL

Os anos de 1950 foram de transição no Brasil, de uma sociedade rural, agroexportadora e arcaica para uma urbana, industrial e moderna. Os seus valores eram fundamentados na sociedade tradicional, confrontando-se com as novas propostas trazidas pela indústria que aqui se estabelecia, incutidas pelos meios de comunicação de massa. Estas são algumas das constatações da tese de doutorado de Silvia Rosana Modena Martini, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). A socióloga, graduada pela Unicamp e funcionária há 14 anos de um dos mais destacados arquivos que abriga parte da história do movimento operário e do Brasil republicano – o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) – fez uso de uma documentação inédita do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope). Apesar de vários trabalhos terem resultado de pesquisas efetuadas a partir deste acervo, nenhum havia abordado a opinião pública pela vertente do consumo (tanto material como simbólico), ainda mais refletindo essa década, segundo a sua autora.

Orientada pelo docente do IFCH Marcelo Siqueira Ridenti, Silvia escolheu estudar a década de 1950 por anteceder a formação da sociedade de consumo de massa, consolidada durante as décadas de 1960 e 1970. Seu objetivo foi compreender a emergência desta sociedade, a formação de um mercado de consumo, de um público consumidor atento às novidades da indústria e da formação dos novos hábitos, preferências e comportamentos dos moradores dos principais centros urbanos do país. O estudo foi desenvolvido no âmbito da linha de pesquisa Trabalho, Cultura e Ambiente, do Departamento de Sociologia.

Segundo a doutoranda, as pesquisas de opinião pública corroboram a ideia de que os anos de 1950 foram cruciais para o desenvolvimento posterior dessa sociedade. O panorama fornecido pelos documentos confirma um forte processo de urbanização e de industrialização no país. Silvia conta que era possível ver algumas indústrias dominando o mercado já nestes anos, como a Aymoré no ramo alimentício, a Wallita no de aparelhos de uso doméstico e a Avon, no fim da década, no quesito produtos de beleza.

A doutoranda contextualiza que as agências de propagandas e de publicidade acabaram se firmando nos anos estudados e, através do rádio e depois da televisão, sugeriram novos hábitos de vida de acordo com esta nova sociedade emergente.

Quando a socióloga fala da formação da sociedade de consumo na década de 1950, ela o faz referindo-se ao Rio de Janeiro e a São Paulo. Com base em levantamento do Ibope e escorada em referências bibliográficas sobre a década estudada, ela percebeu que o próprio carioca via São Paulo como detentor do futuro da nação. São Paulo perdia o ar acanhado das primeiras décadas do século XX e passava a se apresentar como polo da industrialização, ocupando lugar destacado como centro da cultura do país, até então desempenhado pelo Rio de Janeiro. São Paulo construiu a imagem de desenvolvimento, graças à colaboração dos imigrantes que ali optaram por viver; à forte industrialização; ao êxodo rural; e as grandes indústrias, que já estavam conferindo à cidade esse status.

O que para Silvia foi inesperado foi saber que o consumo nem sempre era ascendente. Não era. Acreditava-se que a crescente oferta de produtos aumentaria a demanda. Não, também. Para os produtos investigados – desde alimentícios aos de toucador –, a demanda atuava em vaivém, alguns até com certo refluxo de consumo. Tanto isso acontecia que o Ibope arriscou algumas conjecturas para explicar essa tendência: o não consumo se devia a razões culturais (falta de hábito), tecnológicas (o caso das transmissões de rádio e TV que apresentavam problemas), econômicas (o custo dos produtos industriais) e pessoais (gosto, preferências, etc.).

As pessoas ainda não tinham o hábito de consumir determinados produtos, como as perfumarias ou os enlatados/engarrafados, como a Coca-Cola, por exemplo, que figurava como o quinto refrigerante de um ranking de consumo da cidade de São Paulo de 1960. Muitos achavam ruim o seu gosto, sem dizer que grande parte da população não tinha poder de compra. “O guaraná Antarctica dominava o mercado, vindo a seguir o guaraná Brahma, mas era maior o índice dos que não consumiam este tipo de produto”, descreve Silvia.

A socióloga afirma que os consumidores tinham inclusive horários fixos para beber refrigerante, normalmente por volta da hora do almoço, com exceção da zona sul carioca, cujo costume era o de misturá-lo a bebidas alcoólicas. A pesquisadora notou, em particular, que nessa década houve formação dos gostos e preferências dos ‘citadinos’ quando o assunto eram os produtos industrializados e que a aceitação destes era fonte de tensão e conflito. Nesses anos, surgiram os primeiros supermercados. Contudo, ainda prosseguia a preferência das mulheres pelas feiras livres, empórios e vendas.

Cultura
O Ibope surgiu de maneira inusitada em 1942 com Auricélio Penteado. Ele fazia uma pesquisa de opinião para conhecer a audiência de sua rádio e concluiu que o veículo não tinha grande expressão. Foi o que faltava para mudar de campo. Abriu uma agência de pesquisa de opinião pública no Brasil – o Ibope – e passou a oferecer às classes dirigentes da nação este serviço como um empreendimento necessário à vida moderna.

Desde o início, informa Silvia, tal instituto encontrou entraves, como encontram atualmente as pesquisas de opinião pública. “Em geral, argumenta-se que tais levantamentos não auferem a realidade (pelo fato de a sociedade estar em movimento), que as amostras não são representativas e que os questionários são artificiais.” Para a socióloga, essa justificativa não é válida. “Apesar da segurança das técnicas de amostragem e das pesquisas de opinião refletirem uma demanda social, vimos que, quando são estudados hábitos, comportamentos e valores, estas mudanças somente são perceptíveis ao longo do tempo, e as pesquisas de opinião realizadas durante uma década conseguem captá-las.” Foi o que a socióloga procurou fazer com a documentação do Ibope.

O AEL tem esse material sob sua guarda desde 1989. O acervo abrange os anos de 1942 a 2003, boa parte já microfilmado. O pesquisador não precisa mais fotocopiar textos. Hoje ele utiliza as copiadoras digitalizadoras disponíveis na sala de pesquisa do AEL, gravando os registros em CDs e fazendo a investigação em casa, expõe Silvia.

O acervo Ibope possui várias séries, denominação arquivística, que reúnem os boletins do período avaliado. A pesquisadora comenta que analisou o Boletim das Classes Dirigentes, publicação seletiva, destinada às classes dirigentes do país. Silvia garante que resgatou pesquisas valiosas, desde a formação dos hábitos até as mudanças de comportamento de consumo de cariocas e paulistanos. “Apenas consegui realizar esse meu trabalho graças ao apoio da Unicamp, através da direção acadêmica do AEL e do IFCH.”

Além dos Boletins das Classes Dirigentes, Silvia estudou os boletins Pesquisas Especiais, Serviço de Pesquisa entre Consumidores e Serviço X Nacional. Estes dois últimos retratam mais o desenvolvimento e a inserção de novos produtos para o mercado do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Verificou-se por essas pesquisas que o mercado foi se diversificando e os seus contratantes buscavam mais informações sobre o seu consumidor. Se no início da década o Ibope pesquisava junto aos consumidores marcas e tipos de inseticida em pó, dentifrício e cera em pasta, talco e sabão comum, no fim da década constava na lista a ser pesquisada as suas variantes: líquido, em flocos, infantil, masculino, feminino, entre outros. Com isso, a pesquisadora constatou que os gostos e preferências foram se consolidando e abrindo um novo leque de opções para a indústria.

“Diferentemente dos produtos de beleza e farmacêuticos, alguns aparelhos de uso doméstico tornaram-se objeto de desejo”, relata a doutoranda. Ela diz que o consumo de televisão, geladeira e colchão de molas, por exemplo, aumentou significativamente nesses anos. Para ele crescer, contou com o modus operandi do rádio, da televisão e das facilidades de crédito então atraentes.

Um fato curioso averiguado pela socióloga foi a moda. Na década de 1950, o algodão passou a ser preferido pelas mulheres no lugar da seda. Os zíperes não eram aceitos nas calças de corte masculinas, tanto por paulistanos quanto por cariocas. A alegação era múltipla: eram incômodos, indecentes, não ofereciam segurança, podiam machucar e integravam a indumentária feminina. Os próprios alfaiates desaprovavam a substituição de botões por zíperes nesta peça.

As roupas eram preferencialmente feitas em casa pelas costureiras, salienta a doutoranda, e a maioria dos homens recorria aos alfaiates. A verdade é que a roupa pronta era mais bem aceita em São Paulo, compreensível, uma vez que, por se tratar do maior parque industrial do Brasil, tinha mais apelo de oferta.

Na questão dos valores, embora as revistas femininas desde 1920 já pregassem que a mulher precisava de autonomia, trabalhar fora, ter uma boa educação, a pesquisa do Ibope sinalizava que ainda havia fortes restrições ao trabalho fora de casa. Ademais, a educação dos filhos e das filhas era totalmente diferente. “Os pais não permitiam que as filhas tivessem as mesmas atitudes e oportunidades dos filhos”, realça Silvia.

Por outro lado, ela percebeu que as casas de prostituição eram toleradas, uma vez que se acreditava que o fechamento destas poderia ocasionar outros problemas sociais: promiscuidade nos lares, em decorrência da perseguição às serviçais, por parte dos jovens, privados da regularidade do ato sexual; alastramento do homossexualismo; recrudescimento dos atos de violência sexual e agressão às famílias que transitavam nas ruas. O beijo em praça pública igualmente era condenado por homens e mulheres, assim como o uso de biquínis nas praias. Todavia, já era aceito o divórcio. Foram anos de transição, expõe a socióloga, de um mundo que se prometia urbano, moderno, porém que ainda estava sedimentado nos valores de uma sociedade rural e arcaica.

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Publicação
Tese de doutorado:
“O Ibope, a opinião pública e o senso comum dos anos 1950: hábitos, preferências, comportamentos e valores dos moradores dos grandes centros urbanos (Rio de Janeiro e São Paulo)”
Autora: Silvia Rosana Modena Martini
Orientador: Marcelo Siqueira Ridenti
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
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