Untitled Document
PORTAL UNICAMP
4
AGENDA UNICAMP
3
VERSÃO PDF
2
EDIÇÕES ANTERIORES
1
 
Untitled Document
 


Do ‘call center’ ao laudo a distância

Pesquisa mostra que país vira rota da terceirização internacional

Funcionário em clínica especializada em diagnóstico por imagem: pesquisadora investigou segmento da telerradiologia no âmbito da divisão internacional do trabalho (Foto: Antoninho Perri) Uma nova onda de empregos está colocando o Brasil na rota preferencial da terceirização internacional (offshoring). Entre as razões que explicam o fenômeno, estão o baixo custo da mão de obra, a isenção de taxas e impostos, e o trabalho qualificado. Em vários nichos isso já vem acontecendo, segundo a socióloga da Unicamp Selma Venco. As novas atividades, afirma, são agilmente desenvolvidas a distância, conquistando maior espaço nos mercados de tecnologia da informação (TI) e de call center, ainda liderados pela Índia. Tal tendência foi observada quando a pesquisadora analisou a Divisão Internacional do Trabalho (DIT) baseada na tecnologia, em sua pesquisa de pós-doutorado, supervisionada pelo professor Ricardo Antunes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

Primeiramente, a socióloga investigou o trabalho dos desenvolvedores de software e seus respectivos produtos. Em seu processo de busca, verificou que gerentes vão até outros países e identificam as principais demandas de atividades. “Esta sistemática cresceu significativamente entre 2007 e 2009”, avalia. Mas o nicho que surpreendeu a pesquisadora foi a medicina. Ela centrou seu foco em um dos dois laboratórios brasileiros que promovem análises médicas que envolvam diagnóstico por imagem, cujo segmento é o de telerradiologia – utilização das tecnologias de informação e meios de comunicação para diagnóstico a distância ou emissão de uma segunda opinião através do envio digital de imagens. Os exames são feitos em Portugal e enviados pela internet aos médicos brasileiros, para que estes forneçam o laudo.

Selma Venco esteve em Portugal, onde entrevistou representantes da clínica contratante do laboratório brasileiro, para saber o porquê de tal decisão, e em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde ouviu a parte contratada. Conforme apurou, a medicina em Portugal é estatal, mas a clínica é essencialmente privada, mantendo convênio com o Estado em exames como os de raios-X, tomografia e ultrassom.

Na clínica portuguesa, a resposta foi que faltavam radiologistas portugueses para dar conta de uma medicina cada vez mais fundamentada em exames. Os entrevistados esclareceram que a maioria das universidades também são controladas pelo Estado, as quais, segundo a gerência, cedem à pressão do lobby dos médicos radiologistas para não ampliar o número de vagas para esta especialização, por se tratar de “uma reserva de mercado”.

Ainda conforme a gerência, após experiências que não lograram êxito com a Índia e a Bulgária, a clínica portuguesa optou pelo Brasil. A socióloga crê que isso decorreu de uma conjunção de fatores: a escolha de um conceituado laboratório brasileiro, o fuso horário que admite contatos durante o dia, ao mesmo tempo em que se imprime agilidade ao resultado, e a redução de custos das operações.

Idioma

Criação de postos de trabalho ou intensificação do trabalho? As tentativas de terceirização internacional com a Índia e a Bulgária contavam com o baixo custo da mão de obra. Por outro lado, muitos foram os obstáculos em termos de linguagem. Na operação com o Brasil, a implantação foi mais simples, tanto pelo fato de ter tecnologia avançada para receber imagem de boa qualidade transmitida de Portugal quanto por falar o mesmo idioma. No Brasil, o laboratório não precisou ampliar sua equipe para atender a demanda portuguesa. Entretanto, o que poderia ser uma vantagem – a ampliação de postos, expõe Selma Venco, por enquanto trata-se de intensificação do trabalho.

A socióloga Selma Venco, autora da pesquisa e do livro As engrenagens do telemarketing: vida e trabalho na contemporaneidade: “jogo de xadrez” (Foto: Antoninho Perri)À época da pesquisa, o Brasil “exportava” cerca de 40 laudos por dia. E o trabalho não parava por aí. Os portugueses exigiam adaptações linguísticas para os “brasileirismos”. No fundo, salienta a pesquisadora, os portugueses encontraram na terceirização internacional a chance de usarem o marketing a seu favor, declarando que os exames tinham maior qualidade pois contavam com duas opiniões médicas, dadas as exigências da Comunidade Europeia na assinatura dos laudos emitidos por médicos formados na Europa.

Os médicos brasileiros desconheciam a procedência daqueles exames quando começavam a avaliá-los, pois todos eles, indistintamente, “iam para a pilha”, jargão da área. “Contudo, ali já ocorria uma cadeia internacional de terceirização. Portugal captava exames também de Angola, uma vez que lá não tinham médicos nesta área, e depois os encaminhava para o Brasil”, testemunha.

Algumas restrições brasileiras à sistemática foram postas pelos médicos, embora reconhecendo a possibilidade de lançar os laudos graças à tecnologia Dicom (Digital Imaging Communications in Medicine) – software que permite a troca de imagens médicas e informações associadas entre equipamentos de diagnóstico geradores de imagens, computadores e hospitais – e ao histórico do paciente. Um dos argumentos foi que em Angola existem doenças diferentes da Europa e do Brasil, o mesmo valendo para Portugal. Outro argumento apelava para a ética médica: “se estou em Portugal, procuro uma clínica na certeza de que ela fornecerá o meu laudo. Agora qual seria a reação do cliente se soubesse que o exame foi feito no Brasil?”.

O dono da clínica portuguesa, de acordo com a socióloga, rebateu a necessidade de o cliente conhecer o local de realização do exame. “Se foi escolhida nossa clínica, é porque nos responsabilizamos por ele.” E de fato Selma Venco notou que os portugueses foram bem criteriosos na escolha do laboratório, um dos mais renomados do Brasil. “No entanto, esse trabalho envolve uma questão ética: a relação médico-paciente é afetada e todo o cuidado é pouco”, aconselha. “A Divisão Internacional do Trabalho não é um fenômeno novo. O que é inédito, neste caso, é uma DIT baseada totalmente na tecnologia”, esclarece.

Flexibilidade

Selma Venco avalia as centrais de atendimento e o telemarketing desde a década de 90. Os call centers na Índia encabeçam as tarefas para os Estados Unidos. Eles se esmeram no trabalho e fazem até exercícios de impostação de voz para perderem o sotaque. Na França, onde parte desta pesquisa foi feita, foram analisadas as centrais de atendimento instaladas no Marrocos. “A Divisão Internacional do Trabalho atua de modo diferente. Uma empresa, por exemplo, colocava filiais em outros países na década de 30. Agora, contrata os serviços lá no Marrocos”, compara. “É a ‘flexibilidade’ que há mais de uma década integra o mercado de trabalho, buscando situações para ampliar a acumulação.”

Para se ter uma ideia, uma empresa de Campinas atende os clientes em inglês e espanhol, e conta com operadores trilíngues. Esta rede está em várias frentes. Em uma outra operação eram resolvidos problemas com passagens e bagagem extraviada para uma companhia aérea. Em São Paulo, atendiam-se veterinários mexicanos para esclarecimento de medicamentos. No período estudado, estiveram em ascensão a administração e o processamento de faturas de cartões de créditos. Grandes empresas americanas mantinham instaladas, no Brasil, centrais de atendimento. “Há um jogo de xadrez no planeta”, constata a pesquisadora. Um executivo de uma empresa norte-americana queria instalar um call center e tinha dúvidas se em Araraquara ou na Argentina. “É uma peça a ser movida em poucos minutos”, refere.

O serviço de mala direta tem se mostrado igualmente em crescimento. No Paraná, uma empresa faz este trabalho para a América Latina. O arquivo é enviado para cá, onde se imprimem, se etiquetam, se envelopam e se postam as cartas. “O valor da mão de obra e o correio saem mais baratos”, garante a socióloga. “Os executivos foram unânimes quanto ao melhor destino para este trabalho: o Brasil. O nosso país é a ‘bola da vez’”.

Porém, o raciocínio para o contrato certamente passou pelo eixo dos países integrantes do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China. Na avaliação deles, a Rússia foi eliminada porque não possui boa capacitação para o atendimento e a China por ter como maior característica a manufatura, e não um perfil para atender o setor de serviços. No caso da Índia, alegaram, existe um centro de computação, o call center e a alta tecnologia. “Só que este núcleo é restrito e, a 20 km dali, não há água tratada, esgoto e moradia. A capacidade de atendimento pode se esgotar em mais alguns anos”, interpreta a socióloga.

Uma das qualidades do Brasil é, para os entrevistados, a sua força de trabalho, fato que transpareceu no setor de desenvolvimento de software. Os empresários dos vários setores alegaram que a vantagem brasileira está na criatividade e nas soluções. “Na verdade o Brasil tem uma população econômica ativa (PEA) muita ampla, com disponibilidade de força de trabalho, além de ausência de fenômenos naturais de magnitude, e tem estabilidade política, fatores que endossam a ideia de que o país é um bom prestador de serviços na concepção estrangeira.”

Conclusões

Quanto à criação de postos de trabalho, a pesquisadora entende que deva ser considerada também a qualidade. Qual é a base desta divisão internacional do trabalho? Existe a DIT, como sempre houve na história, todavia sempre numa perspectiva de manter a desigualdade entre países. Vão continuar detendo a tecnologia, comenta a socióloga, e tratarão de repassar ao Brasil os serviços de baixa complexidade.

A segunda conclusão é que não há um segmento privilegiado. As atividades mais taylorizadas, mais padronizadas, virão em maior número para o Brasil. Esta projeção foi a de todos os entrevistados. “Trabalhos como a telerradiologia tenderão a se proliferar. Já com relação aos serviços de call center e mala direta, eles ainda serão superiores quantitativamente”, estima Selma Venco.

A terceira conclusão, bastante impactante, advém da força do trabalho feminino. O que saltou à vista da pesquisadora foi que, quanto mais a medicina perde o status do passado, a profissão torna-se mais feminina. “A radiologia e a patologia são invisíveis nas especialidades médicas. Esta invisibilidade e este papel quase secundário são delegados mais às mulheres”, verifica a socióloga. Não é necessário ir tão longe. No caso da patologia, ela já é mais exercida por mulheres. Isso traz à luz o lugar da mulher no mercado de trabalho. “Cresce o seu papel? Sim. Onde? Na medicina, com predominância nos call centers, onde as operações nacionais são 85% atendidas por mulheres.”

Livros
VENCO, Selma. As engrenagens do telemarketing: vida e trabalho na contemporaneidade. Campinas: Arte escrita, 2009.
VENCO, Selma. Cyberimmigrant: une nouvelle immigration est possible?
In: Revue Immigration et Sociétés. Paris (no prelo).

Capítulos de livro
VENCO, Selma. Novos contornos da divisão internacional do trabalho. In: ANTUNES, Ricardo. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, vol II. São Paulo: Boitempo (no prelo).
VENCO, Selma. La division internationale du travail dans les services médicaux. Le cas Brésil-Portugal. In: TANGUY, Lucie e SEGNINI, Liliana (orgs.). Le sens social du travail (título provisório). Publicação simultânea França e Brasil.

Publicação: Tese de pós-doutorado “O sentido social da modernização do trabalho: a divisão internacional do trabalho”

Autora: Selma Venco

Supervisão: Ricardo Antunes

Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Departamento de sociologia

Financiamentos: Fapesp e Capes

 

 

 
Untitled Document
 
Untitled Document
Jornal da Unicamp - Universidade Estadual de Campinas / ASCOM - Assessoria de Comunicação e Imprensa
e-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP