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Raça, nação e o ‘altar do esquecimento’

Joaquim Nabuco no Hotel Saint Petersburg, na cidade francesa de Nice, onde se instalou em 1904 para trabalhar na questão da Guiana Inglesa  (Foto: Fundação Joaquim Nabuco) Tese de doutorado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp pelo sociólogo Henrique Antonio Ré contribui para uma releitura do pensamento e das ações antiescravistas de Joaquim Nabuco. No estudo Progresso e utopia no pensamento antiescravista de Joaquim Nabuco: influências da economia política francesa e das teorias racialistas, orientado pelo professor Fernando Antonio Lourenço, Henrique procurou mostrar que a questão racial nas obras de Nabuco não aparece apenas como deslize terminológico ou como algo sem importância. Ao contrário, ela constitui um dos pontos principais de seu projeto de país.

Segundo o autor, a partir dessa análise é possível mostrar como as posições de Nabuco dos anos 1880 são totalmente compatíveis com suas obras mais tardias. Mais que isso, ressalta o sociólogo: em suas obras posteriores à abolição é possível encontrar uma fidelidade inacreditável em relação às suas propostas daquele período. O grande exemplo disso, ressalta Henrique, foi sua preocupação em relegar ao “altar do esquecimento” todas as disputas, desavenças e desentendimentos surgidos durante a campanha abolicionista.

“Quem lê os textos de Nabuco posteriores à abolição e não conhece a história brasileira fica com a impressão de que o fim da escravidão foi obra dos próprios escravistas ou então que os libertos seriam eternamente agradecidos aos seus senhores pela graça que lhes foi concedida. É nesse sentido que se pode afirmar que há um único Nabuco: o primeiro, que queria uma abolição pacífica, sem grandes alterações da estrutura social; o segundo, que fazia um esforço tremendo para convencer seus ouvintes e leitores que a abolição foi uma confraternização de interesses, tanto de escravos quanto de senhores”, enfatiza o pesquisador.

‘Mais capaz’

Em segundo lugar, salienta Henrique, ao se dar a devida atenção ao lugar que a questão racial ocupava no pensamento de Nabuco, percebe-se que seu projeto de país só podia ser implementado com o “embranquecimento” da população – fato defendido claramente por ele.

“E aqui está um dos motivos pelos quais os negros não poderiam participar das decisões do país: eles seriam substituídos aos poucos por uma raça de homens mais capaz”, observa o autor do trabalho apresentado ao Departamento de Sociologia do IFCH.

O cuidado em fazer do fim da escravidão um movimento que ultrapassasse a extinção do trabalho escravo pode ser identificado de imediato nas obras de Joaquim Nabuco, acentua Henrique em seu estudo. Em vários momentos ele deixou claro que seu abolicionismo deveria ser entendido como obra de estadistas, não de filantropos.

“A clareza sobre esse ponto é fundamental para a compreensão de seu pensamento, pois Nabuco nunca raciocinou sobre a questão escravista isoladamente, como se ela se consti­tuí­s­se num fim em si mesma. Qualquer palavra ou proposta sua sobre a forma de se encaminhar o fim da escravidão esteve sempre relacionada, em última instância, a uma preocupação com a estabilidade e o futuro do país. Ele jamais apresentou uma proposta ou chancelou alguma medida sem antes estar convicto de que ela tinha condições de ser absorvida pela sociedade ou então de que ela não desestruturaria as instâncias políticas e econômicas do país”, observa na tese. “Embora se comovesse com a sorte dos escravos, sua principal preo­cupação era com o destino do país.”

Fortuna crítica

Mas estudar Joaquim Nabuco significa também considerar a sua fortuna crítica, ou seja, significa avaliar inúmeros trabalhos que analisaram suas obras e constituem hoje um ramo historiográfico altamente especializado, pondera Henrique.

“Provavelmente, ele foi o representante do século XIX brasileiro mais estudado e sobre quem há o maior número de relatos biográficos. Tal fato foi responsável pela edificação e a sedimentação de um personagem histórico, cuja imagem é tão ou mais difundida que a própria representação construída por Nabuco em suas obras.”

De acordo com o autor da tese, as diversas interpretações de Nabuco muito se devem ao momento histórico em que foram produzidas.

“Essa é uma questão central, pois, segundo meu ponto de vista, os autores do início do século XX souberam muito bem utilizar as obras de Nabuco com a finalidade de apaziguar os ânimos daqueles que ainda estavam descontentes com a abolição”, aponta. “Do mesmo modo, os autores dos anos 1960 também formularam suas interpretações atendendo aos anseios do momento em que viviam”, constata ele, numa referência à vertente interpretativa do pensamento do estadista formada a partir do final dos anos 1950 e início dos anos 1960 e constituída por meio de um conjunto de trabalhos, em sua maior parte realizados por acadêmicos vinculados à Universidade de São Paulo (USP).

Preconceitos à sombra

Num primeiro momento, explica Henrique em sua tese, nenhum desses trabalhos esteve particularmente voltado para o estudo do pensamento e das ações de Nabuco. Como o grande assunto em pauta naqueles anos e que de certo modo “convocava” a intelectualidade brasileira a formular explicações era o desenvolvimento nacional, surgiu um grande interesse em compreender a passagem do sistema escravista para o trabalho livre. O que estava em questão era explicar por que, nessa passagem, a maior parte da população brasileira não foi incorporada ao mercado de trabalho nem passou a contar com representação política. Dentre os principais autores que se agruparam ao redor dessa análise, pode-se destacar Paula Beiguelman, Fernando Henrique Cardoso, Antonio Candido e Emilia Viotti da Costa. Mais recentemente Luiz Felipe de Alencastro e Marco Aurélio Nogueira.

Essa perspectiva analítica reconheceu o limbo social e econômico ao qual os ex-escravos foram condenados. Porém, os estudos que surgiram estavam mais preocupados em apontar os motivos que impediram os escravos brasileiros de se tornarem proletários à maneira do ocorrido com o fim da escravidão nos Estados Unidos ou com o fim da servidão na Europa. Ao privilegiar o caráter econômico que ditava a forma da modernização brasileira, tais estudos, entretanto, deixaram à sombra muitos dos preconceitos, especialmente raciais, que caracterizavam as medidas políticas e econômicas em implantação no final do século XIX.

“A principal questão naquela época era explicar o atraso ou a dependência do Brasil. E Nabuco, na visão desses autores, foi o primeiro a formular uma resposta a essa pergunta ao apontar a escravidão como a principal responsável pelos males do país. Só que essa interpretação não aceitava que o homem responsável por explicar o atraso brasileiro através das formas materiais de vida também adotasse posições racialistas em suas ações e ao formular sua visão de nação”, argumenta Henrique. Ele observa ainda: é necessário lembrar que os estudos da década de 1960 sobre Nabuco faziam parte da vanguarda intelectual daquele período e até hoje são considerados como o ponto alto do pensamento social brasileiro.

Visão hegemônica

Para ele, o propósito daqueles que se debruçaram sobre as obras do político não era apenas o de apresentar Nabuco como um mito.

“Penso que tais trabalhos, apesar de serem laudatórios, tinham objetivos muito mais altos que o de lisonjear Nabuco. No fundo, se tratava de uma disputa ideológica e da formulação de uma visão hegemônica sobre determinado assunto, e as obras de Nabuco se prestavam muito bem a esse serviço”, destaca. Ele completa: “O que há, em minha opinião, é a divulgação reiterada de uma determinada leitura de Nabuco e o desprestígio de outras”.

Embora não tivesse se surpreendido com as divergências entre as interpretações anteriores de Nabuco e as novas, admirou-se, todavia, com a facilidade com que grandes estudiosos, de honestidade intelectual irretocável, acataram algumas afirmações de Nabuco sem questioná-las, sem cotejá-las com outras afirmações suas.

“Esse é um ponto intrigante e me levou a pensar se a adesão dos intelectuais brasileiros às posições de Nabuco não representavam, ainda que inconscientemente, uma identificação com a forma com que os integrantes das camadas dominantes entendiam as relações políticas e sociais do país.”

Portas fechadas

A produção da tese consumiu praticamente cinco anos de estudos, sendo três deles financiados pela Fapesp. Em relação aos documentos, Henrique não pesquisou arquivos, pois não buscava aquilo que Nabuco conversara em cartas com amigos ou seus documentos pessoais.

“O que me interessava eram as suas obras publicadas, pois foi a partir delas que se formaram as várias interpretações de seu pensamento e de suas ações”, justifica.

Já em relação à obtenção da bibliografia, ele assegura ter encontrado enormes dificuldades nas bibliotecas brasileiras para acessar o material do século XIX.

“Sempre me foi mais fácil obter as obras de economia política dos séculos XVIII e XIX através das bibliotecas digitais da França, em especial da Gallica, e do books Google, que as obras editadas no Brasil à disposição nas bibliotecas brasileiras”, conta Henrique.

A motivação para estudar Joaquim Nabuco surgiu durante o mestrado: “Ironicamente, tive primeiro contato, justamente em razão das leituras do mestrado, com os intérpretes de Nabuco, notadamente os autores que nomeei como pertencendo à corrente de sociologia uspiana.”

Mais tarde, ao ler Nabuco, surpreendeu-se por não conseguir reconhecer em suas obras a “radicalidade” ou mesmo o caráter revolucionário de suas ações e de seu pensamento.

“Também não consegui ver dois Nabucos, como se houvesse um Nabuco da campanha abolicionista, radical, empenhado em transformar seu país, e um outro Nabuco, já homem maduro, mais voltado para seus recatos aristocráticos e empenhado em negar suas posições de juventude. A partir daí comecei a pesquisar outros trabalhos sobre o assunto e descobri que estava em formulação uma nova corrente interpretativa”, explica.

“Meu trabalho, portanto, deve muito a todos esses estudos e, em especial, aos trabalhos das professoras Izabel Andrade Marson, Celia M.M. de Azevedo e do professor Antonio Penalves Rocha. Penso não cometer injustiças ao afirmar que eles foram os primeiros a perceber que era possível rever os conhecimentos históricos a respeito de Nabuco.”


Leia mais sobre Joaquim Nabuco nas páginas 6, 7 e 8

 

 
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