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Química na aldeia

Docente do IQ integra programa que habilita professores indígenas

LUIZ SUGIMOTO

O professor José de Alencar Simoni (Foto: Antoninho Perri)O Proesi (Programa de Educação Superior Indígena Intercultural), criado pelo governo do Estado de Mato Grosso, vem oferecendo os primeiros cursos de licenciatura para formação e habilitação de professores indígenas que atuam em suas aldeias. Iniciado em 2001, o programa já diplomou 186 acadêmicos indígenas em 2006 e mais 140 estão frequentando outras duas turmas abertas em 2005 e 2008. O Proesi tem o apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio) e é executado pela Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso), que buscou parcerias com docentes de instituições de todo o Brasil, inclusive da Unicamp.

“Trata-se de experiência inédita no país e bastante rica para nós docentes. Entretanto, é bastante complicado fazer com que alguém da cultura indígena, que possui sua própria ciência, aprenda e ensine biologia, química, física, matemática ou fundamentos da computação. A dificuldade veio já no primeiro tema das ciências, o Genesis: na física, foi preciso abordar do Big Bang à formação dos primeiros átomos; na química, dos primeiros átomos às moléculas; na biologia, das primeiras moléculas aos organismos vivos”, pondera José de Alencar Simoni, conhecido por todos como professor Cajá, do Instituto de Química (IQ). 

O professor José de Alencar Simoni durante aula em aldeia e em sua sala no IQ (acima): ensinando e aprendendo no Mato Grosso (Foto: Divulgação)Observando que a Teoria da Evolução contradiz a crença religiosa e a formação da maioria dos povos indígenas, o professor Cajá – que foi levado ao projeto pelos professores Carlos Argüello e sua esposa Zoraide, já falecida (ambos do Instituto de Física) – ressalta a importância de uma comunicação diferenciada para colher frutos no projeto. “Sempre tomamos o cuidado de esclarecer que levávamos a versão da nossa ciência; que ela não é única, mas explica muita coisa”.

Já na aula inicial de química, o docente trouxe embalagens de filmes fotográficos contendo farinha, arroz, feijão, areia, água – e saturou os alunos com perguntas sobre o peso e o barulho dos potinhos para que descobrissem os conteúdos. Também pingou tintura de iodo no sal e na farinha, ambos brancos, sendo que apenas o segundo se tornava azul. “Quis mostrar como a nossa ciência funciona: formula-se uma hipótese e tenta-se comprová-la; quando não funciona, criam-se novas hipóteses, e assim por diante. Apenas olhando o sal e a farinha, não vemos diferenças em suas propriedades”.    

Como atividade de casa, Cajá propôs aos acadêmicos indígenas o experimento em que um ovo é colocado em copo de água, submergindo, e depois em solução salina, flutuando. Não foram poucos os acadêmicos que quebraram o ovo antes de mergulhá-lo na água. “É outro exemplo de falha na comunicação: como pedi para ‘colocar’ o ovo, eles simplesmente repetiram o que fazem no dia-a-dia ao prepará-lo. O erro foi meu, que não comuniquei direito a tarefa – o que certamente ocorre também com meus alunos na Unicamp”.

Estrutura
Os cursos do Proesi abrangem três áreas: línguas, artes e literaturas; ciências sociais; e ciências matemáticas e da natureza. Eles duram cinco anos, sendo que os três primeiros são básicos, com conteúdos comuns às três licenciaturas, e os dois últimos com conteúdos específicos da área escolhida pelo acadêmico. Há dez etapas de estudos presenciais (e intensivos), dez etapas intermediárias de estudos nas aldeias, estágio curricular e trabalho de conclusão de curso.

Para a primeira turma foram oferecidas 200 vagas, sendo 180 para o Mato Grosso e 20 para outros estados. Somente do Mato Grosso, frequentaram os cursos professores indígenas de quase 150 aldeias situadas em 35 municípios, representando 32 etnias – sobretudo a xavante, seguida de bororo, bakairi, paresi, tapirapé, umutina, rikbaktsa e terena. De outros dez estados, vieram acadêmicos de 14 etnias. 

O professor Cajá recorda que durante as etapas presenciais na cidade de Barra do Bugres (MT), onde todos ficam em instalações e alojamentos cedidos pela prefeitura, as classes eram normalmente de 40 alunos, com jornadas de 8 horas de aulas, durante 15 dias. “Eu falo alto e tenho problemas de garganta. Havia dois professores em cada sala, mas também levava como ajudante a minha filha, Déborah, que também se tornou docente depois do seu mestrado aqui no Instituto de Química”.

Os acadêmicos indígenas enfrentavam muitos problemas com português e matemática, o que obrigava a interrupção frequente das atividades para ensinar-lhes o básico, recorda o professor da Unicamp. “Os coordenadores decidiram suspender o curso da primeira turma por um ano, a fim de reforçar o estudo dessas duas matérias. Nas aldeias, as aulas para as crianças são parte em português e parte em suas línguas, mas até então os professores (acadêmicos) estavam pouco capacitados a produzir livros ou apostilas. Agora, capacitados, já podem formar a bibliografia na sua língua”.

Diversidade
A presença de tantas etnias diferentes tornou maior o desafio à capacidade de comunicação do docente do IQ. Por exemplo, diante da necessidade de responder quatro vezes a uma mesma pergunta, ainda que os quatro acadêmicos estivessem lado a lado. “Para o indígena, sua dúvida é particular. Quando o grupo é da mesma etnia, cabe ao membro mais alto na hierarquia, como o mais velho, explicar o que entendeu aos demais. Temos que nos adaptar a esta forma diferente de educação, pois o trabalho é feito para eles e não para torná-los iguais a nós”.

A adaptação diante do inesperado foi providencial quando Cajá, no intuito de demonstrar a concepção do modelo atômico, recorreu a bolas feitas de barro que os acadêmicos deveriam dividir, refazer e medir até atingir o menor tamanho possível. “Algumas etnias não manuseiam o barro por considerá-lo impuro; para outras, o barro é reservado à confecção de objetos sagrados. A solução foi improvisar a massa com farinha de trigo. O professor Carlos Argüello, ao utilizar flautas para reproduzir a escala de sons, sabia que as mulheres de algumas etnias não podiam tocá-las, ainda que fossem de PVC”.   

Por outro lado, eventos do cotidiano das aldeias serviram para explicar conceitos de química, como o tempo de transformação de elementos da natureza, através da defumação do peixe e da salga da carne; ou da preservação do teto de palha da oca graças à fogueira acesa diariamente em seu interior, cujo calor estabiliza a temperatura interior enquanto a fumaça diminui a umidade. “Os indígenas também nos oferecem exemplos, como a extração de sal com a queima de certas palmeiras: sobre a cinza colocada na lata furada, eles jogam água para arrastar parte do cloreto de potássio, o chamado ‘sal de índio’. Igualmente, obtêm soda para o sabão”.      

Artifícios
De acordo com Cajá, a experiência que os docentes da área de ciências vêm acumulando no Proesi ainda não permitiu a elaboração de um método de ensino, propriamente, mas de artifícios para a transmissão de conteúdos aos acadêmicos indígenas. “Um dos artifícios que desenvolvi é um jogo de bingo para que entendessem os símbolos dos elementos químicos. A tabela periódica virou a cartela de jogo e os prêmios são colares e pulseiras feitas de miçangas representando fórmulas como a da água”.

A constatação do docente da Unicamp é que a transmissão de conhecimento deve depender menos de aulas teóricas e mais de artifícios lúdicos e experimentais. “Por outro lado, trabalhando com um grupo tão diferenciado de acadêmicos, acabamos por perceber que parte dos problemas que enfrentamos com nossos alunos da Universidade é oriunda da comunicação – se uma aula não foi boa, é porque informação não chegou ao interlocutor. Hoje me sinto melhor capacitado nesse sentido. Em relação aos indígenas, venho aprendendo muito mais do que ensinando”.

Ruídos na comunicação

A professora Déborah Simoni, filha de Cajá: pedido de namoro (Foto: Divulgação)  O professor José de Alencar Simoni cometeu um deslize de comunicação justamente na sua apresentação à primeira turma do Proesi – nada menos que duas centenas de acadêmicos indígenas, quase todos amorenados e com seus cabelos pretos e lisos. Para fugir do discurso tradicional, Cajá optou por preparar uma demonstração química que comprovaria suas “qualidades” como professor da matéria.  

Na caixa de papelão, ele colocou uma garrafa de água limpa, outra de água azulada com azul de metileno e uma terceira contendo uma solução que se torna azul apenas quando agitada. Na encenação – que incluiu até reza – pegou a garrafa de água, chacoalhou, repôs na caixa e retirou a garrafa com água azulada (as posições eram visivelmente diferentes, o que provocou vaias da platéia); em seguida, chacoalhou a garrafa azul, colocou na caixa e retirou a de água (sob novos apupos).

O ápice da apresentação, obviamente, estaria em só então apanhar a garrafa contendo a solução e agitá-la aos olhos da platéia. A infelicidade do professor foi acatar o conselho de um mágico e convidar alguém da platéia como coadjuvante para dar mais veracidade à mágica. “Quem se levantou de pronto foi um rapaz com a pele mais clara do que a minha. Retruquei que queria um indígena. E ele era, embora de terceira geração e do Rio Grande do Norte, onde os holandeses deixaram suas marcas”. 

Cajá dobrou-se em desculpas aos indígenas e se penitenciaria por dias antes das aulas, ainda que o índio potiguar, sem mágoas pelo deslize, tenha cumprido o combinado – quando a água azulou, veio a ovação. No entanto, outro imprevisto acometeria o docente da Unicamp, quando um indígena pediu de presente a garrafa mágica. Sua justificativa: “Na cerimônia da dança, derramo a água em mim, chacoalho o corpo... e fico azul. Todas as moças vão querer namorar comigo”.

Receitas secretas
Num trabalho para a etapa intermediária (a não-presencial) do Proesi, Cajá pediu aos acadêmicos que trouxessem por escrito receitas de remédios e de pratos típicos de suas aldeias. Queria abstrair elementos que pudesse usar em sala de aula e ilustrar os conceitos químicos que haviam por trás dos escritos.

Todos trouxeram receitas de comidas. Quanto às de remédios, havia receitas com dizeres do tipo: “pega um pedaço de pau da árvore que não posso falar o nome, deixa ferver e depois coloca uma coisa que não posso falar o nome”. “Havia sempre ingredientes secretos. Devido ao certo isolamento, os indígenas têm como verdadeiro tudo o que é dito por alguém em quem confiam. É bem provável que alguém de confiança tenha dito que o branco rouba receitas para ganhar muito dinheiro, o que explicaria esta grande prevenção contra a biopirataria”, comenta o professor.

Balança de armazém
A respeito desta desconfiança para com o branco, Cajá lembra a admiração dos acadêmicos indígenas frente a uma balança de armazém utilizada em aula, a ponto de vários deles se recusarem a participar de outras atividades. “Tanto interesse em aprender a lidar com a balança é para que não sejam ludibriados pelos comerciantes na compra de mantimentos. Mesmo que seja um equipamento antigo, no qual o peso corre na haste que eles tomam como régua: no início, alguns liam 200 gramas como 2 centímetros”.

Pedido de casamento
Se a preocupação do professor Caja é com o estabelecimento de uma comunicação diferenciada com os acadêmicos indígenas, estes não poderiam ser mais diretos, como o xavante que quis “namorar” sua filha. Demonstrando perfeito domínio da linguagem sugerida pelo pai, Déborah Simoni foi sutil e definitiva: então, eles teriam que se casar e vir morar na cidade.

 
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