| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 325 - 29 de maio a 4 de junho de 2006
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6-7



No auge da
repressão, Zeferino
volta aos porões da ditadura

CAPÍTULO 26

De como a Unicamp abriga cinco alunos expulsos do ITA, um estudante de ciências sociais é preso e torturado e Zeferino resgata do Doi-Codi um professor de história

EUSTÁQUIO GOMES


Estrelas do seminário internacional de 1975. Da esquerda para a direita: Arno Mayer, Eric Hobsbawm, Rudolph Bell, Guillermo O’Donnell, Rudolph de Jong, Kenneth Ericsson e Juan José Linz (Fotos: Acervo Histórico do Arquivo Central (Siarq))NO FINAL DE 1975, Zeferino alarmou-se quando soube por João Manuel que um de seus jovens pupilos do Departamento de Economia, Luiz Gonzaga Belluzzo, fora obrigado a tomar um avião às pressas para Londres para escapar à voz de prisão. Belluzzo, um discreto militante do PCB, estava incumbido de distribuir no campus o jornal Voz Operária, órgão oficial do partido. Sobressaltou-se quando descobriu que fazia parte de uma lista de “marcados para morrer”, onde constavam, além dele, o físico César Lattes, a escritora Hilda Hilst e os médicos Sérgio Arouca e David Capistrano.

Dias antes, dois alunos do Instituto de Economia haviam sido apanhados pelo Dops e, sob tortura, mencionaram os nomes de Belluzzo e de Waldir Quadros, um estudante de economia da USP que mais tarde seria contratado pela Unicamp. Waldir foi preso de imediato, mas Belluzzo teve a sorte de contar com a proteção de um delegado do Dops, Emiliano Cardoso de Mello, tio de João Manuel e pai de Zélia Cardoso de Mello, futura ministra da Economia de um presidente da República ainda distante no tempo, Fernando Collor de Mello. Emiliano simplesmente mandou Belluzzo “dar no pé”. Foi o que ele fez, só retornando ao país quando a poeira baixou com a destituição do general Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército. Enquanto isso, ficou dois meses perambulando entre Londres e Roma, dormindo em hotéis baratos e buscando desesperadamente notícias do Brasil.

Nessa atmosfera inquinada, era surpreendente que Zeferino bancasse a realização no campus, naquele mesmo ano, de um seminário que trouxe a Campinas estrelas da esquerda intelectual como o historiador anglo-egípcio Eric Hobsbawm, o cientista político argentino Guillermo O’Donnell e outros. Era o primeiro grande evento internacional promovido pelo grupo de cientistas sociais do IFCH e por trás de sua organização estava Paulo Sérgio Pinheiro, um jovem sociólogo que começava a projetar-se na área de direitos humanos. A repercussão foi grande ao ponto de a revista Veja, na época já se firmando como o principal semanário do país, dedicar-lhe uma capa com um título – “Preste atenção em Campinas” – que soava como um toque de clarins. Para além dos resultados científicos e dos engenhos da tecnologia que era possível desenvolver no terceiro mundo, Zeferino compreendeu que podia tirar bom partido da circulação de idéias heterodoxas dentro de um ecumenismo matizado pelos muros da academia, até porque essa tradição estava se perdendo desde o golpe de 1964. Prezava seus pupilos à esquerda e, diante de Hobsbawm, num rapapé na reitoria, apontou para alguns deles e fez um comentário que deixou o inglês com um sorriso nos olhos míopes:

— Está vendo esses rapazes aí? São todos comunistas, mas vou dizer uma coisa a você: sabem trabalhar.

Zeferino Vaz é homenageado por seus pares, na reitoria da Unicamp, em abril de 1975Fossem comunistas ou não, ele estaria contente com seus pupilos desde que engordassem a biografia da universidade com feitos acadêmicos capazes de aumentar seu poder de fogo. A Unicamp ainda precisava justificar sua existência autônoma e Zeferino queria a todo custo evitar que se repetisse em Campinas o efeito deletério da intolerância de que fora vítima a Universidade de Brasília nos anos seguintes ao golpe militar. No sinistro ano político de 1975, a pluralidade de pensamento marcava uma vitória na ilha de liberalidade que eram as ciências humanas da Unicamp. Para mantê-la, ele contava com aliados como o ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, e o ministro da Indústria e Comércio, Severo Gomes, além de sua relação de amizade com o ministro da Educação, Jarbas Passarinho. Severo era um estimulador dos seminários interdisciplinares promovidos por Paulo Sérgio Pinheiro – nos quais se discutia livremente a situação do país – e, vez por outra, baixava em Campinas para “ouvir o grupo da Unicamp” sobre as políticas que desejava implementar. Velloso mantinha ligações estreitas com Zeferino e sobretudo com o físico Sérgio Porto, a ponto de, em 1978, comparecer à posse deste como coordenador dos Institutos.

Em 1980, discursando no aniversário da Intentona Comunista a convite do II Exército, em São Paulo, Zeferino negou ser de direita e definiu-se como um socialista moderado, “irmão de idéias de meu amigo Paulo Duarte”, de quem invejava o amor pelo vinho, e de Antonio Candido de Mello e Souza, cuja consciência intelectual e moral constituía para ele uma espécie de padrão-ouro do labor acadêmico.

Quando Paulo Duarte foi obrigado a se exilar, em 1967, após ter entrado em choque com a direita uspiana, Zeferino apressou-se em ajudá-lo comprando sua biblioteca e tornando-a um importante acervo bibliográfico da Unicamp. Esse gênero de troca de sinais ideológico não era incomum até mesmo na época mais dura do regime, quando muitos dirigentes, inclusive estrelados, reivindicavam para si a condição de “socialistas autênticos” por supostamente criarem condições para uma pretensa socialização futura graças à riqueza que estariam gerando com sua política desenvolvimentista. As recaídas conservadoras, entretanto, logo desmentiam esses artifícios de retórica política. Em junho de 1977, Zeferino criticou asperamente os estudantes que foram levar a Rosalyn Carter, primeira-dama americana então em visita ao Brasil, um memorando em que se denunciava “o desrespeito aos direitos humanos no país”. Não achou ocasião melhor para difundir sua diatribe do que uma palestra na Escola Superior de Guerra:

— O gesto do estudantes deveria ser ventilado em todas as escolas como um exemplo típico de deformação educacional e de traição ao ideal da pátria, disse.

Aproveitou para voltar suas baterias contra a ala progressista da Igreja – um dos poucos redutos de resistência ao governo militar –, visando acertar especificamente o arcebispo de Olinda, Dom Hélder Câmara:

— Devo lamentar sinceramente que esses estudantes tenham aprendido uma vergonhosa lição que lhes foi ensinada por bispos brasileiros que não se pejam de ir ao exterior denegrir a nação brasileira.

Pergunto a esses estudantes e bispos se algum americano veio ao Brasil para condenar a polícia de Chicago, que no mesmo momento espancou brutalmente porto-riquenhos concentrados em praça pública por lutar pela independência de seu país.

Capa da edição 352 da revista Veja, que chamava a atenção para a emergência cultural da Unicamp no cenário brasileiroDias antes, diante do próprio presidente Geisel, denunciara a existência de “estudantes profissionais que agiam como agitadores” (o reitor da Universidade de Brasília, José Carlos Azevedo, calculava em 10% o número desses estudantes nas universidades públicas brasileiras) e usavam o artifício de protelar a conclusão de seus cursos ou de matricular-se seguidamente em cursos distintos, impedindo com isso – aduziam os dois reitores – o acesso de novos estudantes aos cursos de graduação. A impaciência com o movimento estudantil colaborou certamente para que alguns meses antes Zeferino não tomasse conhecimento (e não há provas de que tivesse sido informado a respeito) do sumiço de um de seus estudantes de ciências sociais, João Aidar, que nas férias de dezembro de 1976 foi preso e torturado nas três unidades militares pelas quais transitou. Um relato do que sucedeu a Aidar, publicado anos depois num jornal de Campinas, mostra o grau de violência e arbitrariedade que era permitido a qualquer oficial do Exército naquela altura do período militar.

Nas férias de dezembro de 1976, João Aidar atirou sua mochila às costas e foi fazer uma viagem pela Amazônia. Sua verdadeira aventura começou quando comprou uns livros de capa vermelha em Lima, Peru. Um deles era o Livro Vermelho de Mao. João botou os livros na mochila e viajou 21 dias de barco. Em Benjamin Constant, primeira cidade do lado de cá da fronteira, pegou uma carona num avião Catalina do Correio Aéreo.

O avião deixou-o em Cruzeiro do Sul, no Acre, onde pediu abrigo no campus avançado que a Unicamp mantinha lá, na época. Perto do campus havia um quartel de infantaria da selva. João reparou que da entrada do quartel um oficial o observava atentamente. Não deu importância, jantou e foi deitar cedo, pois estava cansado. Nem tinham se passado duas horas quando bateram na porta de seu quarto.

— Querem falar com você no quartel.

— Agora?

— Sim. Os homens estão aí.

Os homens eram dois sargentos. Um deles já estava com a mochila de João passada no ombro. No quartel, foi interrogado. Não, não era militante político. Não tinha partido. Em Campinas, morava numa república da Vila Industrial. Quando não estava na faculdade, estudava, ouvia música, escrevia poemas. Gostava muito de livros. Nas férias, virava mochileiro, viajava.

Foi trancado numa sala que não era cela, mas cujas cadeiras tinham os pés dianteiros mais curtos que os traseiros. Difícil sentar. Exceto o soldado que lhe trazia comida, não entrava mais ninguém. Quando pediu para se comunicar com a família, o soldado disse que isso era impossível. Depois, geralmente à noite, começaram a vir outras pessoas. Obrigavam João a rastejar e a enfiar a cabeça num buraco. Às vezes, sentado à força numa das cadeiras inclinadas, nu em pêlo, via entrarem uns soldados fortes, vestidos só de sunga, que passavam a levantar alteres diante dele.

Inchado por causa das picadas de mosquitos, seu aspecto não era dos melhores. Os rins começaram a se ressentir de medicamentos que havia tomado. Foi transferido para Manaus. Ali, policiais militares armados de metralhadoras o retiraram do avião. Atravessou a cidade deitado no assoalho do carro, os olhos vendados. Ficou uma semana, tendo por companheiro um argentino preso por tráfico de drogas.

Quando o mandaram de volta a São Paulo, pensou que finalmente tudo se esclareceria. Mas não. Seu destino foram os porões da rua Tutóia, onde funcionava o Doi-Codi, a polícia de repressão do regime. Ali apanhou de verdade.

— Confessa.

— Confessar o quê?

Tapões e rasteiras no canto da cela. Um mês e meio nisso. Pensou que não o soltariam mais. Um dia, vendado, zanzaram com ele pela cidade. Vão me matar, pensou. Fizeram João descer da perua.
— Sua mochila está atrás de você. Deixe ela aí e comece a andar.

— Quanto devo andar?

— Cem metros está bom. Depois pode tirar a venda.

João começou a andar. Quando notou, pelo silêncio, que eles tinham ido embora, tirou a venda e viu a rua. Um bairro de periferia. O sol lhe bateu na cara. Mais dois passos e teria dado com o nariz num muro. Gritou. Foi ajudado por moradores do lugar. Estava livre.**

Estudante de ciências sociais se esforça por registrar debate no seminário Mais ou menos na mesma época, cinco estudantes de engenharia passaram por experiência semelhante, embora muito mais longa e não menos traumática. Numa tarde de setembro de 1976, dois agentes do Dops entraram no campus com mandado de prisão contra os alunos Clóvis Goldemberg, Marcelo Moreira Ganzarolli, Osvair Vidal Trevisan, Sérgio Salazar e Waldir Luiz Ribeiro Gallo. Zeferino não estava e Rogério Cerqueira Leite, que nessa época era coordenador das Faculdades, teve trabalho para dissuadi-los. Os cinco estudantes tinham sido expulsos do ITA um ano antes por encabeçarem um movimento contra o processo de militarização da escola. Na época foram presos, torturados e depois soltos, mas nos três anos seguintes tiveram de responder a um tortuoso inquérito policial militar. Após a expulsão, todas as escolas de engenharia procuradas por eles rejeitaram seus pedidos de transferência, exceto a Unicamp, que aceitou sem discussão a inscrição deles num exame de preenchimento de vagas remanescentes. Foram aprovados e matriculados. Naquela tarde de setembro de 1976, entretanto, os dois agentes só se deixaram convencer quando Antonio César Aliandro, um funcionário da reitoria, teve a idéia de telefonar ao comandante da Guarnição Militar de Campinas, general Moraes Rego, que tinha o reitor em muito boa conta. Moraes Rego despachou os dois por telefone.***

Mas o acontecimento emblemático nesse período, no que concerne às relações de Zeferino com o estado militar, foi a prisão do professor de história Ademir Gebara na madrugada de 28 para 29 de outubro de 1975. A detenção de Gebara, como tantas outras no país naquela semana, viera na onda de retaliações que se seguiu aos manifestos de jornalistas e acadêmicos inconformados com a morte do jornalista Vladimir Herzog três dias antes no Doi-Codi paulista. Nessa noite, duas peruas Veraneio percorreram vários bairros de Campinas e recolheram, sem maior cerimônia, um magote de assustados operários, enfermeiros, funcionários públicos e estudantes universitários, entre os quais dois pós-graduandos da Unesp e um da Unicamp, o economista Gustavo Zimmermann. Na sede do Doi-Codi, Gebara soube que era acusado de tentar montar uma gráfica clandestina, quando nem máquina de escrever ele tinha na época. De nada valeu explicar que já não era militante político desde os tempos de estudante na PUC de Campinas: o interrogatório varou toda a noite e no dia seguinte ele começou a apanhar. Enfrentou sessões de choques elétricos, tapas no rosto e pontapés no traseiro. Certa ocasião levou uma saraivada de pancadas no nariz que o obrigaria, anos mais tarde, a uma cirurgia corretiva. Os presos dormiam em colchões estendidos no chão e acordavam ouvindo gritos dilacerantes nas salas vizinhas. Uma noite, viu serem impiedosamente torturados, durante horas, a mulher e um filho do líder portuário Emílio Bonfante. Do mundo exterior, nos primeiros doze dias, nenhuma informação entrou. E, da cela, nenhuma informação saiu.

Na Unicamp, os que acreditavam no relaxamento da prisão de Gebara, confiados em que tudo se esclareceria rapidamente, sentiram-se alarmados com o passar dos dias. Organizou-se uma assembléia para debater o assunto. Concluiu-se que o melhor a fazer era pedir a Zeferino que entrasse no caso. O reitor já devia saber do que se tratava quando viu entrar Manoel Berlinck, diretor das ciências humanas, seguido do economista Wilson Cano, dos lingüistas Carlos Vogt e Carlos Franchi, do historiador Ítalo Tronca, do educador Rubem Alves e do sociólogo André Vilallobos. De início, Zeferino mostrou cautela:

— Vocês dizem que ele não fez nada, mas se está preso é porque alguma coisa ele fez.

E teceu uma longa consideração sobre a função da universidade, a neutralidade do saber e a inconveniência de se praticar dentro dela o debate ideológico. Não que os professores, como cidadãos, devessem se abster de adotar a ideologia que lhes parecesse correta, ele próprio tinha a sua, mas tratava-se de não converter a sala de aula em palanque doutrinário. Os estudantes, indefesos diante da autoridade moral dos mestres, não estavam em condição de discernir e escolher. Berlinck adiantou-se:

— Gebara nunca fez proselitismo, reitor. No máximo é um simpatizante da esquerda.

— Vocês adoram falar mal do governo. Se esquecem que eu sou parte do governo.

— Por isso viemos pedir sua ajuda. O senhor tem o nosso respeito e o respeito das autoridades.

O governador Laudo Natel, ao lado de Zeferino, assina ata de lançamento da pedra Não estavam fugindo à verdade e incensá-lo era um ardil que sempre dava certo com ele. Conhecendo outra de suas fraquezas – o xodó que tinha pelos mensageiros mirins que ele buscava numa instituição da cidade, a maioria dos quais acabavam funcionários contratados – Vogt contou-lhe que alguns desses chamados “guardinhas” tinham levado cascudos dos agentes do Dops em pleno campus. Ao ouvir isso, Zeferino subiu nas tamancas. Se aquilo tinha acontecido de fato, era covardia e abuso de autoridade. Era grave. Levaria o assunto ao conhecimento do general Moraes Rego. Acima de tudo, tinha horror à idéia de intervenção policial na Unicamp, como ocorrera na USP e em várias universidades federais e até particulares. Graças a sua interlocução privilegiada em todos os estamentos, construíra para a Unicamp a imagem de uma instituição intocável. Se dava satisfação ao arbítrio, era para preservar o espaço da liberdade acadêmica. Tudo isso ia dizendo enquanto garantia aos professores que, sim, faria uma visita ao detento Gebara.

Cumpriu a promessa no dia seguinte, o décimo-segundo da prisão do professor de história. Na tarde de 10 de novembro, um carcereiro mandou Gebara aprontar-se. Ele trocou o uniforme da prisão (um macacão do Exército) pela roupa amassada que ainda estava guardada num saco. Cinco quilos mais magro, barba por fazer e venda passada nos olhos, acomodou-se numa Variant que o conduziu interminavelmente pelas ruas de São Paulo. Quando foi autorizado a tirar a venda, viu que estava sob a mira de uma metralhadora. Soube que estava no QG do II Exército e um oficial ordenou ao agente que portava a arma:

— Guarda isso.

Ao prisioneiro, o oficial perguntou por que não tinha feito a barba. Antes que pudesse responder, Gebara viu Zeferino surgir por um corredor, vindo de uma das salas do Comando. Estabeleceu-se entre os dois um diálogo difícil, pois Gebara não o tinha visto senão fortuitamente e o reitor a bem dizer não o conhecia.

— Que houve?

— Fui preso sem ter feito militância política.

— Nunca fez militância?

— Quando estudante, sim, mas isso já faz tempo.

Afável, Zeferino contou-lhe que estivera com sua família e que estava fazendo gestões para a sua soltura. Quis saber se estava sendo bem tratado. Com um coronel relações públicas por perto, Gebara não se atreveu a falar dos maus-tratos. Zeferino percebeu seu constrangimento e passou a lhe fazer perguntas alusivas.

— Lhe falta alguma coisa?

— Cigarro, respondeu Gebara.

A conversa ganhou um tom surrealista, com Zeferino achando um absurdo que faltassem cigarros para os presos e o coronel RP dando-se ao trabalho de explicar que, como o comandante Ednardo D’Ávila não fumava, viu-se ali um excelente pretexto para que ninguém fumasse.

— Falta café também, acrescentou Gebara.

Zeferino estrilou:

— Como? Não tem café?

E ensaiou uma descompostura no coronel RP: — Não tem café, não tem cigarro, os presos não fazem barba, andam por aí de roupa amassada... Muito bonito, hein, coronel!

O coronel RP ouviu calado e Zeferino deu a visita por encerrada. No entender de Gebara, Zeferino mostrara sagacidade ao apanhar os sinais que estavam mais em evidência – o desalinho, a barba, a falta de conforto – para deixar claro que havia estabelecido um juízo crítico da situação e, mais importante ainda, que decretava a quebra da incomunicabilidade do prisioneiro. Seus companheiros de cela foram afetados positivamente por aquele visitante inesperado, que de algum modo agora sabia da existência deles. Mas, ironia: depois do encontro com Zeferino, Gebara passou a apanhar mais. É verdade que, a partir de então, um funcionário do SNI fora colocado ali para evitar que durante os interrogatórios os agentes passassem dos limites, mas sua ocasional (ou intencional?) ausência era o suficiente para acordar o sadismo dos interrogantes. Praticavam então um tipo de pancadaria técnica que não deixava marcas e se destinava, sobretudo, a aplacar a própria raiva.
Duas semanas após a visita de Zeferino, Gebara foi libertado.



* Para o seminário de 1975 vieram ainda os historiadores Arno Mayer (Princeton), Rudolph Bell (Rutgers) e Rudolph de Jong (Amsterdam), o antropólogo Kenneth Ericsson (Kansas) e o cientista político Juan José Linz (Yale).

** Eustáquio Gomes, “A história de João Aidar”, revista Metrópole, Correio Popular, Campinas, 9/4/2000.

*** Condenados pelo Supremo Tribunal Militar em 23 de setembro de 1976 e com ordem de captura no Dops, os cinco ex-alunos do ITA permaneceram foragidos até março do ano seguinte, quando resolveram se entregar à Auditoria Militar de São Paulo. Libertados em setembro do mesmo ano, retomaram seus cursos no ponto em que os tinham abandonado. Em fevereiro de 1979, numa reviravolta, o STM os absolveu. Em março de 2004, quase trinta anos depois do famigerado expurgo de alunos, o ITA fez justiça a 21 deles que estavam prestes a se formar na época, entre os quais Sérgio Salazar e Osvair Trevisan. Dos cinco ex-alunos do ITA abrigados pela Unicamp em 1976, Trevisan, Gallo e Ganzarolli são hoje professores da universidade.


Continua na próxima edição.

 

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