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6-7



O mandarim dirige
com mão de ferro uma
reunião do Conselho

CAPÍTULO 22

Zeferino mobiliza seus aliados, desqualifica um parecer e joga duro contra seus contestadores

EUSTÁQUIO GOMES


Zeferino profere a aula inaugural de 1971 tendo ao fundo o plano diretor da Unicamp. A aula ocorreu no Cine Ouro Verde, no Centro de Campinas, pois a universidade ainda não contava com salão adequado para isso (Fotos: Acervo Histórico do Arquivo Central (Siarq))A SALA DO CONSELHO era acanhada e seus quatro janelões davam para um pátio de estacionamento. Os 26 assentos dos conselheiros acompanhavam uma mesa em forma de U, com um renque de cadeiras sobressalentes de cada lado onde se acantonavam o procurador, a secretária geral e funcionárias que tomavam nota todo o tempo, além dos conselheiros suplentes que por vezes apareciam ao sabor dos assuntos em pauta. No centro desse cenário, Zeferino presidia as sessões em geral tediosas do alto de um estrado, encarapitado numa cadeira também alta, mandada fazer sob medida num marceneiro de Campinas. Não fosse a toalha que cobria o vão da mesa de alto a baixo, os conselheiros poderiam ver os pés do reitor repousados sobre a trava intermediária da cadeira, as meias finas emergindo dos sapatos pretos guarnecidos de uma grossa palmilha interna. A altura nunca fora um obstáculo a sua autoridade moral, mas ele tomava alguns cuidados.

Neste dia, 28 de março de 1972, Zeferino chegou cedo. Às sete horas, mandou chamar alguns conselheiros e orientou-os: se Damy pedisse a palavra logo de início, como supunha, que ninguém dissesse nada. Ele, reitor, responderia. Depois, certamente entrariam em cena os demais “contrariados”: Pinotti, Parada e talvez Hadler. No momento conveniente, se necessário, passaria a palavra a seus conselheiros de confiança, não muitos – dois bastariam. Escalou para isso o advogado Camilo Geraldo de Souza Coelho, representante do governo do Estado no Conselho, e o engenheiro agrônomo André Tosello, diretor da Faculdade de Engenharia de Alimentos e Agrícola.

A reunião começou às três da tarde, com atraso de uma hora e clima de tribunal. Zeferino foi direto ao assunto. Começou relacionando os “delitos” cometidos por Fausto Castilho nos últimos anos: “perseguição” a professores do Departamento de Planejamento Econômico e Social, extinção do curso de Administração sem autorização do Conselho, “negativa de colaboração” com o governo do Estado, “bloqueio” dos cursos de assessoria à pequena e média empresa “por descabido e rançoso prurido aristocrático” e, por último, “uso da imprensa” para difundir e amplificar problemas internos através de “apoios espúrios e estranhos à universidade”. Mas havia uma última acusação que, segundo Zeferino, era a mais grave:

Além dos motivos assinalados, puramente administrativos e funcionais, qualquer deles, isoladamente, suficiente para contra-indicar a renovação do contrato, devo aduzir que, como se tornou público e notório, o professor Castilho arvorou-se em destituidor do reitor propondo nomes de uma lista tríplice para sua substituição, conforme ficou demonstrado com o testemunho de professores. Criou assim o professor Castilho clima de absoluta incompatibilidade administrativa e funcional e, por essa forma, a permanência do professor Castilho na Unicamp constitui flagrante infringência da ética e da autoridade do reitor.*

Não foi Damy quem primeiro pediu a palavra para tentar abrir uma via de escape no caminho traçado até o cadafalso de Castilho. Foi Parada. Manifestou sua estranheza com o fato de que não haviam sido distribuídos previamente, como de hábito, os pareceres exarados do processo a ser examinado e votado. Sem conhecimento do assunto como um todo, argumentou Parada, os conselheiros não estavam preparados para analisar tão importante questão, quanto mais decidir sobre ela. E, quando menos para ganhar tempo, pediu vista do processo.

Mas Zeferino não estava disposto a protelar coisa alguma. Meses a fio, com imenso desgaste seu, a universidade vinha assistindo àquela queda de braço. Tinha chegado o momento de resolvê-la. “Todos aqui estão conscientes de que é decisivo que este problema seja resolvido de qualquer forma”, disse. De outro lado, afirmava, a exposição que havia feito sobre a conduta de Castilho “nada tem a ver com as razões da Comissão de Ensino e não são elas que estão em jogo”. Os pareceres não vinham ao caso, pois.

— O que se discute aqui agora são motivos de ordem funcional, administrativa, de ética e de hierarquia. Não vejo portanto razão para conceder vista do processo e de pareceres que não estão em causa.

O Conselho era assim informado de que o objeto de discussão passava a ser outro. Houvera um deslocamento do ponto de interesse. Já não estava em causa a produtividade acadêmica do acusado, mas sua conduta “ética, administrativa, funcional e hierárquica”. O plenário sentia-se confundido e Damy já havia compreendido com que obstinação Zeferino tocaria aquele julgamento. Tentou reverter a situação. Reiterou que a maioria dos conselheiros presentes desconhecia o assunto na sua complexidade e que via fundamento na solicitação do professor Parada. Argumentou que cada conselheiro deveria votar com inteiro conhecimento dos fatos para que não lhes pesasse na consciência, mais tarde, o não terem agido na certeza de suas convicções. Coisa aliás tão óbvia, disse, como uma frase do Conselheiro Acácio.

Zeferino, impassível, nem sequer olhou para Damy. Mas voltou generosamente o rosto afilado para o jovem professor que em seguida pediu a palavra, o médico pediatra José Martins Filho, representante dos docentes-instrutores no Conselho. Martins, um ex-aluno de Zeferino na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, que por sinal ajudara a promover um enterro simbólico dele em 1962, perguntou se o afastamento de Castilho resolveria o problema das Ciências Humanas. O reitor respondeu que não se tratava disso, de resolver os problemas do IFCH, mas de não permitir a continuidade de um professor que se colocara contra ele, contra o governo e contra a ética. E sua voz traiu um leve sinal de exasperação:

— Esse professor não pode ficar no campus! Porque ou fica o reitor ou fica ele!

A correlação de forças no Conselho começou a ficar clara quando o diretor da Faculdade de Ciências Médicas, Antonio Augusto de Almeida, elogiou o parecer da Comissão de Ensino sobre Castilho (“um parecer brilhante, como sempre são os pareceres do professor Damy”) para terminar dizendo que, apesar disso, jamais o subscreveria. E por quê? Porque ao ler a contradita do reitor verificara que muitas das virtudes do professor Castilho proclamadas no dito parecer não eram verdadeiras; mas que isso pouco pesava agora, pois não era o parecer que estava em causa, nem o mérito acadêmico do professor Castilho, mas sim as razões apresentadas pelo reitor, “os consideranda do professor Zeferino Vaz mostrando que não pode mais contratar o professor Castilho”. Concluiu:

— Então só podemos discutir o trabalho do magnífico reitor e não podemos mais fazer alusão daquilo que se passou na Comissão de Ensino, que não está em discussão hoje aqui no Conselho.

Damy, ofendido, elevou a voz para dizer que não se tratava do parecer de um amigo, como insinuava o professor Almeida, pois não fazia pareceres diferentes para amigos e inimigos. Seus pareceres eram feitos dentro de critérios de ética e de princípios que considerava válidos; e se tivesse que reestudar aquele problema e emitir um novo parecer, faria exatamente o parecer que fez.
E como Parada insistisse em obter vista do processo, o reitor, baixando o tom de voz, como para retomar o controle de seus humores, reiterou pausadamente que, se estivessem em discussão os tais pareceres, não teria dúvida em conceder o que lhe era pedido. Mas a verdade é que ali se discutiam “coisas novas, fatos novos”. Seguiu-se o seguinte diálogo entre Zeferino e o representante dos docentes-instrutores:

Zeferino: São fatos gritantes e por isso me nego a entrar na análise dos pareceres anteriores. São razões sérias que o reitor apresentou, documentadas e demonstradas, muitas delas públicas e notórias, inclusive a elaboração de lista tríplice de professores para a escolha do reitor da universidade, “porque o professor Zeferino seria destituído”.
Martins: Mas isso é uma surpresa terrível para mim. Gostaria de saber quem disse isso.

Zeferino: Para o senhor pode ser surpresa, mas não para os dez diretores reunidos que ouviram a descrição do fato de um diretor que foi convidado a participar da lista tríplice.
Martins: Então que esse diretor se manifeste.

Zeferino: O professor Castilho telefonou ao professor Plínio Alves de Moraes propondo que, como o reitor seria derrubado, organizasse uma lista tríplice constituída pelo professor Damy, pelo professor André Tosello e por ele, Plínio Alves de Moraes. Quando ao professor Marcelo Damy, disse o professor Castilho, ele mesmo não o quereria como reitor por ser temperamental. O professor Tosello não poderia ser, porque tinha como inimigo o vice-governador do Estado [...]. Então só poderia ser o professor Plínio Alves de Moraes, que está aqui presente e relatou o fato em reunião de dez diretores. Ainda o professor Castilho espalhou pelo campus à vontade e fez um alarde tremendo de que tinha o apoio dos docentes da Matemática, da Física, da Química e do Instituto de Filosofia, e todos sabem que isso era uma deslavada mentira. Pretendeu criar um clima de agitação nesta universidade que se refletiu na imprensa. Isto são fatos públicos e notórios, professor Martins. São fatos que nada têm a ver com o parecer da Comissão de Ensino. São fatos que se relacionam com atitudes éticas e hierárquicas.
Martins: Acabo de saber que a proposta de lista tríplice pelo professor Castilho ocorreu em outubro.

Zeferino: Em primeiro lugar não foi em outubro, foi em data bem posterior a outubro. E em segundo lugar, fosse quando fosse, V. Exa., professor Martins, consideraria isso uma brincadeira ou atenuaria a transgressão da ética e da disciplina? Um telefonema de Campinas a Piracicaba, acordando um conselheiro à noite para propor-lhe uma lista tríplice, seria mera brincadeira?
Martins: Não é brincadeira de maneira nenhuma.**

Depois da emocionalidade desse diálogo, e vendo que muitos conselheiros continuavam consternados e confusos, julgou o advogado Camilo Coelho que um pouco de racionalidade retórica faria bem à sala. Invocou sua qualidade de ex-professor de direito público para dizer que seria de todo agradável se se preservasse ali o princípio do contraditório “quando nós, os conselheiros, somos chamados a exarar uma decisão”. Nesse caso ele teria duas coisas a considerar: a) os pareceres que não vieram ao conhecimento do Conselho; b) as considerações de natureza gravíssima formuladas pelo magnífico reitor. E ao considerar essas duas coisas pôde depreender, após ouvir com muita atenção as considerações formuladas pelos eminentes conselheiros – e ele os admirava a todos pelo desassombro de suas atitudes e pela clareza de seus raciocínios­ –, pôde depreender uma questão fundamental. Que era a seguinte: estariam os conselheiros decidindo sobre pareceres que desconheciam ou sobre considerações do reitor que os conselheiros tinham acabado de apreender? Face a esse dilema, ele, Camilo Coelho, advogado militante e ex-professor de direito público, na qualidade de humilde representante do governo do Estado naquele Conselho, chegava à seguinte conclusão: por fas ou nefas [pelo lícito ou pelo ilícito], não queria e não tinha possibilidade de discutir credenciais, nem a capacidade intelectual do professor Castilho. Não tinha capacidade de aferir os seus méritos, mas partia do pressuposto de que o professor Castilho tivesse capacidade para exercer os encargos que lhe foram atribuídos na universidade. Entretanto, chegava à constatação de que entre o reitor e o professor Castilho tinha-se aberto um fosso, uma incompatibilidade inconciliável. Havia que lamentar a campanha de imprensa feita contra sua magnificência, porque o que todos queriam, ele, Camilo Coelho, advogado militante e ex-professor de direito público, como campineiro de velha cepa e como representante do governo do Estado no Conselho da Unicamp, era que a universidade prosseguisse nos trâmites e nas diretrizes até então adotados. O reitor era a autoridade executiva superior da instituição e a reitoria o órgão sob o qual estão todas as demais instâncias universitárias. Então como é que eles, os conselheiros, à revelia dele, podiam contrariá-lo e colocá-lo em xeque?

A intervenção do representante do governo foi considerada brilhante e deve ter influído no voto dos que porventura ainda hesitavam entre um partido e outro. Com efeito, como salvar a cabeça de um professor e colocar a prêmio a do reitor? Talvez por isso, quando levantou-se para falar o diretor do Instituto de Biologia, o histologista Walter Hadler, ele o fez como se o leite já estivesse derramado. Hadler, na condição de primeiro docente contratado pela universidade, tornava emblemático o apelo quase desesperado que lançou a Zeferino: que o reitor fosse magnânimo e permitisse ao Conselho encontrar uma solução salomônica que contemplasse ambas as partes, mas que não destruísse a vida de um professor que “no final das contas procurou acertar”.

— Se o professor Castilho errou, não errou porque quis, disse Hadler. Errou inconscientemente.

Zeferino ignorou o apelo de Hadler. Com os conselheiros cansados e aturdidos, a reunião descambou para uma atmosfera de fatalidade. Ao ver que ninguém mais se manifestava, ou que se instalara um hiato propício ao desfecho da situação, o reitor deu por encerrado o debate e anunciou que colocaria a proposta em votação. Aqueles que aprovavam a proposta do reitor, isto é, de não-renovação do contrato do professor Fausto Castilho, deveriam permanecer como estavam, isto é, sentados. Os discordantes que ficassem de pé. Levantar-se, nesse caso, também era emblemático: corresponderia a oficializar um antagonismo que o reitor dificilmente perdoaria, como não perdoou Castilho. Damy protestou:

— Dada a importância desta decisão, solicito que a votação seja nominal.

— Já é nominal, respondeu Zeferino. Aqueles que aprovam a proposta do reitor permaneçam como estão; aqueles que não a aprovam, levantem-se.

Levantaram-se Damy, Martins, Parada e Pinotti. A representação estudantil declarou-se incompetente para julgar o caso e se absteve. Hadler redigiu às pressas uma declaração de voto e leu-a diante de um Zeferino impassível: considerava a rescisão do contrato de Castilho, naquelas circunstâncias, equivalente à destruição de um professor universitário, ou seja, à destruição moral de uma pessoa humana. E quando Martins, afetado pelas palavras de Hadler, manifestou seu desapontamento, declarando que o Conselho dera uma “demonstração desagradabilíssima” de insensibilidade, Zeferino cortou-o, ácido, mas com o olhar em Hadler:

— Solicito ao professor Martins que não se façam apelos demagógicos. A vida de um professor não se destrói pelo simples fato da não-renovação de seu contrato. Afinal, a não-renovação do contrato de um professor é fato corriqueiro na vida universitária, a menos que se queira voltar à vitaliciedade tão repudiada por todos. Pretender que a não-renovação destrói a vida universitária do professor Castilho é não reconhecer nele qualquer valor cultural. Se o tem, outras universidades lhe darão guarida.

Depois disso, a reunião enveredou por outros temas e arrastou-se pela tarde com seu cortejo de certezas e incertezas.


* Ata do Conselho Diretor da Unicamp de 28 de março de 1972.

CAPÍTULO 23

Resistência é dissolvida,
rebeldes se dispersam
e Zeferino triunfa
mais uma vez

Damy se retira, Brieger volta para a Alemanha, Pinotti deixa o cargo e Parada vai para a Bahia

Primeiro concerto público do Coral Unicamp, em 16 de novembro de 1971, com regência do maestro Benito JuarezBRIEGER TOMOU o resultado da reunião como uma afronta à Comissão de Ensino, da qual era presidente. Imediatamente anunciou a decisão de aposentar-se de vez (na verdade já era aposentado da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq). Sobre o comportamento dos membros da Comissão que haviam mudado seu voto na reunião do Conselho, Brieger comentou com Damy: “Nunca vi demonstração tão grande de falta de caráter”. E ali mesmo tomou a decisão de retornar a seu país de origem, a Alemanha. Permaneceria ainda um ano na Unicamp, mas em março de 1973, no vencimento de seu contrato, desligou-se em definitivo.*

Damy saiu da reunião disposto a demitir-se. Seu contrato estava vencido desde 26 de fevereiro. Renová-lo exigia um gesto de reaproximação com Zeferino que a Damy parecia impossível. Desde a fatídica reunião eles mal se cumprimentavam. Na última conversa que tiveram, logo após o término da reunião, Zeferino quis demonstrar que ainda o estimava.

— Somos amigos de longa data. Você construiu esta universidade comigo. Como é possível uma coisa dessas?

— Não quero ficar, respondeu Damy, a renovação já não me interessa.

A Arlinda, sua secretária geral, Zeferino confessou sua mágoa:

— É um ingrato, um ambicioso.

Dispensar desafetos era uma coisa, outra era receber o rechaço de um velho companheiro. Essa frustração talvez tenha determinado a secura do ofício que endereçou a Damy em 10 de julho, sem muitos preâmbulos:

Cumpro o dever de comunicar a V. Exa. que, atendendo às ponderações e conclusões do parecer do Prof. Dr. Rogério Cézar de Cerqueira Leite, responsável pela direção do Instituto de Física, não mais será renovado o contrato de V. Exa. como professor titular de Física, MS-6, RDIDP, vencido em 26 de fevereiro p.p. (...) Agradecendo a V.Exa. os relevantes serviços prestados à Unicamp na fase de implantação do Instituto de Física, formulo os melhores votos de felicidade pessoal.

O geneticista Friedrich Gustav Brieger em aula inaugural na Faculdade de Odontologia de Piracicaba em abril de 1971Assim encerrou-se melancolicamente a passagem pela Unicamp do fundador de uma das principais escolas brasileiras de física, o Instituto de Física Gleb Wataghin (nome dado em homenagem ao introdutor da física experimental no Brasil). Não faltaram protestos contra esse desfecho. Semanas depois, baixou em Campinas um trio de peso da ciência nacional, os físicos Mario Schenberg, José Israel Vargas e Newton Bernardes. Vieram pedir a reintegração de Damy. Procuraram Cerqueira Leite e evitaram Zeferino, de quem Schenberg era desafeto desde velhas querelas da USP. Cerqueira respondeu que “estava decidindo a respeito”, quando já não havia o que decidir. Àquela altura dos acontecimentos, dificilmente Zeferino voltaria atrás. Também era pouco provável que Damy aceitasse o posto de volta: era orgulhoso demais para isso.**

Com a saída de Damy, Parada ficou sem clima no instituto e no grupo da física de estado sólido. Mesmo assim, seu contrato foi renovado mais uma vez : segundo Parada, apesar dos esforços contrários de Cerqueira Leite; segundo Cerqueira, graças a gestões pessoais suas junto a Zeferino. Seja como for, em 1975 Parada aceitou um convite para implantar a área de física do estado sólido da Universidade Federal da Bahia e, no ano seguinte, assumiu a direção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, com sede em São José dos Campos, cargo que exerceu por dez anos.

Comandante da Escola de Cadetes do Exército de Campinas condecora Zeferino em fins de 1972E Pinotti? Tudo indica que Zeferino hesitou sobre que atitude tomar em relação ao jovem obstetra que, conforme disse ao jornalista Roberto Godoy, poderia ter sido seu herdeiro natural, tal como Damy. “Infelizmente, voltou-se contra mim”, lamentou. A Cerqueira Leite, disse algo parecido: “Não vou esquecer tão cedo o que ele fez, mas é jovem e tem potencial político”. A Arlinda, sua confidente das horas boas e amargas, mostrou menos complacência para com o diretor da Medicina: “Levei dele uma facada pelas costas”. E com o próprio Pinotti foi duro o bastante a ponto de pedir-lhe pessoalmente contas da “conspiração”. Pinotti negou ter tomado parte de qualquer conspiração, assegurando que seus propósitos eram institucionais. Numa cena presenciada por João Manuel, o reitor explodiu:

— Você tomou parte e vai ser exonerado!

Não o exonerou, mas bem que tentou. Numa dessas tentativas, mandou chamar o diretor do Hospital, Gustavo Murgel, e lhe ofereceu o posto de Pinotti. Zeferino devia saber que Murgel participava das reuniões “clandestinas” nas casas de Pinotti e Parada, mas tanto melhor: a direção da Medicina deveria ser distinção suficiente para transformar um crítico em aliado. Para surpresa do reitor, Murgel considerou a oferta “uma ignomínia” e, antes que fosse demitido por isso, demitiu-se. E assim Zeferino teve um tríplice prejuízo naquele dia: perdeu um professor de medicina, viu seu Hospital ficar acéfalo e continuou com Pinotti engastado na direção da maior unidade de ensino da universidade, a Faculdade de Medicina.

Pior para Pinotti, que a partir desse dia deixou de ser recebido pelo reitor até mesmo para os despachos de rotina. A conseqüência foi a estagnação dos processos administrativos da faculdade, que passaram a hibernar na sala ao lado à do reitor, onde imperava Camargo. Forçado a uma situação de paralisia, Pinotti não viu outra solução senão entregar o cargo e voltar a seu departamento de origem, o de Ginecologia e Obstetrícia. Foi substituído pelo decano da faculdade, José Lopes de Faria. Pacientemente Pinotti esperou a hora de “dar o troco” – o que aconteceu três anos mais tarde, quando foi novamente indicado por seus pares para a direção da unidade, num claro movimento de retaliação que deixou Zeferino às portas de uma nova crise. Mas, dessa vez, ele saberia evitá-la, como se verá mais tarde. (E.G.)



* Na verdade, o desgosto de Brieger já vinha se cristalizando no próprio Instituto de Biologia, onde tentava em vão implantar um projeto de reformulação dos departamentos que incluía sua diminuição de oito para quatro. Houve resistência dos professores, pois isso, além das conseqüências acadêmicas que a maioria julgava funestas, implicava juntar antagonistas ferrenhos como, por exemplo, o fisiologista Negreiros de Paiva e o farmacologista Vital Brazil. Houve, na época, um claro risco de dispersão dos pesquisadores do Instituto. Vital Brazil chegou a deixar a unidade, transferindo- se em definitivo para a Faculdade de Ciências Médicas.

** Parada, ao defender Damy no Conselho, invocou a ética: ninguém teria sido mais ético que Damy ao longo da curta história da Unicamp, pois em vez de implantar a área de pesquisa nuclear, que era a sua, deu prioridade a outras como a física de estado sólido. E espetou Cerqueira Leite: “Agora que o professor Damy está subordinado a um diretor da física do estado sólido, era de esperar que recebesse o mesmo tratamento”. Terminou recomendando que sua fala não deixasse de constar em ata. Cerqueira reagiu: “Quero que não conste”. Zeferino fechou a discussão: “Tem que constar. É direito do conselheiro”. Mas isso em nada alterou o destino de Damy, que acabou fora da Unicamp. Vinte anos depois, quando era iretor Carlos Henrique de Brito Cruz, o Instituto de Física prestou-lhe uma homenagem a título de desagravo.


Continua na próxima edição.

 

 

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