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Livro aborda recursos midiáticos dos protestantes
para conquistar fiéis e preconceito dos não-evangélicos

A respeito das crendices
em torno dos crentes

LUIZ SUGIMOTO
Karina Kosick Bellotti: saindo do senso comum para estudar as tradições do protestantismo. (Foto: Antonio Scarpinetti)

A historiadora Karina Kosick Bellotti não possui formação protestante e nunca fez confissão de fé a nenhuma religião, embora tenha estudado em colégio de freiras. Mas ao chegar à graduação na Unicamp ainda mantinha fresca na memória a cena de um bispo da Universal Reino de Deus chutando uma imagem de Nossa Senhora Aparecida em 1995, dando inicio a uma “guerra santa”. Na verdade, desde 1989, quando o bispo Edir Macedo comprou a Rede Record de Rádio e Televisão, tornou-se alvo dos noticiários das redes concorrentes – Globo, Manchete, Bandeirantes e SBT – fortemente críticos à Universal. “Há muito preconceito contra os protestantes em geral por conta dos episódios envolvendo a Universal. Como todos são identificados como crentes, viraram iguais aos olhos de quem não conhece a tradição das mais variadas correntes”, afirma.

Autora espera contribuir com uma referência aos estudiosos das religiões


Aprendendo no curso de história que é preciso fugir do senso comum, Karina Bellotti mergulhou nas pesquisas sobre o protestantismo, tema que por sinal é pouquíssimo explorado na academia. “Muito da história do protestantismo no país está nas mãos dos próprios protestantes”, acrescenta a pesquisadora. A busca pelo resgate dessa história, a partir de mensagens veiculadas pelo rádio, televisão, internet e publicações impressas resultou na dissertação de mestrado A mídia presbiteriana no Brasil: Luz para o Caminho e Editora Cultura Cristã, trabalho apresentado em 2003 junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e que agora virou livro (Editora Anablume), quando a autora realiza o doutorado seguindo na mesma trilha.

“Não se trata de assumir um compromisso de combater o preconceito. Minha idéia não era fazer a apologia de nenhum grupo - se eu instituo o debate sobre a tolerância, estou combatendo o preconceito. Minha pretensão é oferecer uma referência a mais para os estudos da religião, esperando uma boa recepção do livro também no meio evangélico. Quanto aos não-evangélicos, acho possível que o conhecimento amenize esta incompreensão em relação outro, seja para com o protestante, espírita ou seguidor do candomblé. É preciso contemplar o fenômeno religioso como sendo social e histórico”, sustenta.

Evento midiático –Segundo Karina Bellotti, quando se fala em mídia evangélica vêm logo à memória idéias e imagens de pastores pregando na televisão e no rádio, folhetos sobre Jesus Cristo, camisetas “100% Gospel” e artistas convertidos reabilitando suas carreiras em programas de auditório. “A cerimônia evangélica tornou-se evento midiático para muitos cidadãos”, resume. Ela observa, contudo, que o campo religioso brasileiro, apesar da predominância católica, é composto de diversas crenças que competem entre si para manter e conquistar fiéis e adeptos. “A mídia é um dos principais recursos pelos quais as religiões, institucionais ou não, estabelecem contato com os seus membros e com a sociedade”, pondera.
A pesquisadora explica que seu livro não trata da história institucional das empresas Luz para o Caminho e Editora Cultura Cristã. “É uma análise dos seus produtos. Parti da idéia básica de Marshall McLuhan de que o meio, por vezes, corresponde à mensagem, para tentar entender de que maneira o veículo de comunicação constitui uma estratégia eficiente de evangelização”, esclarece. Karina Bellotti ressalta que a compra da Record pela Universal abriu enorme espaço especialmente para os pentecostais, mas que a grande maioria das igrejas evangélicas conta com recursos escassos para produção de audiovisuais e impressos, na expectativa de que sua voz seja ouvida ao menos pelos fiéis.

Foto de Buddy Christ em www.dogma-themovie.comRádio e TV –A Luz para o Caminho é uma empresa com sede em Campinas fundada em 1976. Seu diretor, o reverendo Celsino Gama, apresenta há quase 20 anos o programa Cada Dia, tendo entrevistado personalidades como Fernando Henrique e Lula, e abordado temas tão diversos como depressão ou budismo. Para Karina Bellotti, o programa sobre depressão, por exemplo, demarca bem a diferença entre a crença protestante histórica e a crença pentecostal. “Os pentecostais alertariam o telespectador sobre os dez sintomas de encosto – como depressão, dor de cabeça, dores no corpo – e ofereceriam sempre a religião como solução para expulsar o espírito maligno. Já o Cada Dia aborda a depressão como doença e aconselha a ida ao médico. A mensagem de salvação vem apenas no final, lembrando que o arrependimento pelos pecados e o reconhecimento de Jesus como salvador significam o caminho da paz, o que ajudaria na cura”, conta.

Ao tratar das rádios, a pesquisadora analisa 30 edições de Coração Caboclo, programa de uma hora de duração que começou a ser produzido em 1999 e traz artistas como Chitãozinho e Xororó, dicas de saúde, entrevistas e o momento de reflexão. A idéia de atingir ao sertanejo – mesmo que seja agora um sertanejo migrante e urbanizado, saudoso de suas raízes – lembra o Nosso Almanaque no Ar, lançado 30 anos antes pelo Centro do Áudio-Visual Evangélico (Cave).

“O Nosso Almanaque apelava ao público realmente sertanejo, em que o reverendo Ricardo Irwin evangelizava sem o tom do americano que ensina ao brasileiro o que deve fazer. O reverendo morou no sertão de Goiás por muitos anos, aprendendo o modo de vida e a linguagem da população e usando bastante o teatro em seu trabalho. Sua mensagem era de que os protestantes também são cristãos, ‘gente normal’ que não pretendia ofender ou atacar a cultura que já existia”, explica a historiadora.

Irwin dirigiu o primeiro filme evangélico feito no Brasil, O Punhal (1958), e também o primeiro desenho animado, Tonico e o Demônio (1961/62). O filme, em preto e branco, é narrado em off pelo reverendo Jaime Wright – que organizou o projeto Brasil Nunca Mais com o Dom Paulo Evaristo Arns. Conta a história de uma moça católica, cujo noivo é morto no dia do casamento pelo ex-namorado preterido, que larga o punhal na cena do crime. Ela jura vingança com a ajuda do irmão, que no entanto sofre uma queda do cavalo e é internado em hospital evangélico. A trama que segue insere a mensagem sobre o trabalho missionário dos protestantes na Bahia, com a construção de hospitais, escolas e serviços. O final feliz é a conversão da moça no momento em que reencontra o assassino, jogando o punhal que serviria para a vingança no rio.

Impressos –Em outros capítulos, Karina Bellotti analisa a mídia impressa dos protestantes, tanto aquela voltada para o público adulto – tratando de temas como sexualidade, casamento, família, questão de gênero e do papel do cristão – como aquela dirigida às crianças. “O último capítulo é reservado ao devocional Cada Dia, à religiosidade no cotidiano. Os discursos devocionais trazem um alento para os problemas do dia-a-dia, espaço de sofrimento em que todos os cristãos são efetivamente testados”, acrescenta.

Karina Bellotti informa que, segundo a Associação Nacional de Livrarias Evangélicas, o setor movimentou R$ 239 milhões em 2004. A Feira Internacional do Consumidor Cristão, que realizou sua sexta edição na Expocenter de São Paulo, reflete como o mercado é promissor. “Chamou atenção o grande investimento em mídia infantil, tanto que um dos focos em meu doutorado será o Smilingüido, personagem que faz sucesso há 25 anos e está em livros de historinhas, DVDs, marcadores de livro e até em ímãs de geladeira”, adianta a pesquisadora.

As diferentes igrejas protestantes e um paradigma: a Universal Reino de Deus

Capa do livro com chancela da Fapesp e Selo UniversidadeA história do protestantismo no Brasil pode ser contada a partir da abertura dos portos em 1810, com a chegada dos anglicanos e de luteranos suíços e alemães. Em meados do século 19 vieram as primeiras missões americanas, dando origem às igrejas Presbiteriana, Metodista, Batista e Congregacional – representantes do protestantismo histórico, haja vista sua relação direta com a Reforma Protestante. “A expressão ‘protestantismo histórico’ não é muito correta por dar a impressão de que os outros protestantismos não têm história. Mas os seguidores se valem dela para se diferenciar de outras igrejas, como as pentecostais mais populares”, observa a historiadora Karina Bellotti.
As igrejas históricas cresceram no fim do século 19, acompanhando a trilha do café e cobrindo vazios deixados pela Igreja Católica – um único padre era obrigado a cuidar de extensa área –, estabelecendo hospitais, escolas e evangelizando por meio da educação. Este movimento arrefeceu quando virou o século e teve início o movimento pentecostal, com a Congregação Cristã criada em 1910 e, no ano seguinte, a Assembléia de Deus. Ramificaram-se outros grupos a partir da década de 1950, como a Igreja Quadrangular, que investiu muito em rádio e em evangelismo de massa, cruzada que fez nascer a Igreja do Evangelho Quadrangular, a Igreja Deus é Amor (1961/62) e a Brasil para Cristo.
Karina Bellotti lembra que o protestantismo tem como características a fragmentação e a capacidade se ajustar bem aos novos tempos, incorporando as mudanças. “Não existe a figura do Papa ou outros intermediários, o que permite a livre interpretação da Bíblia pelos pastores”, observa. Com isso, os pentecostais influenciaram o avivamento do protestantismo a partida da década de 1950, mudando a dinâmica religiosa no Brasil. “Eles investiram na cura divina, no poder do Espírito Santo, convencendo as pessoas de que Jesus transformaria a vida delas no momento da conversão. Dentro de um sistema de saúde falido, por exemplo, a cura de um fiel funcionava como fato propagador da religião”, explica a pesquisadora.

Neopentecostais – O fenômeno das igrejas neopentecostais decorre da criação da Universal Reino de Deus (1977) pelo bispo Edir Macedo e seu cunhado, o missionário R.R. Soares, que em seguida fundaria a Internacional da Graça de Deus, vindo em 1986 a Renascer. “A Universal é o grande paradigma nos estudos da religião, despertando grande interesse também de pesquisadores estrangeiros. Somente em Houston, por exemplo, pelo menos dez igrejas já foram abertas. Eu acho que eles redefiniram todo o aspecto de marketing no protestantismo, inserindo de forma impressionante a linguagem das mídias: TV, rádio, gravadora, jornal, internet, tem de tudo”, diz Karina Bolletti.
Em seus trabalhos, a pesquisadora sempre se inspira na tese intitulada O teatro, o templo e o mercado, de Leonildo Silveira Campos, professor da Universidade Metodista de São Bernardo e que participou de sua banca no IFCH. “Ele escreve dez capítulos sobre a Universal, analisando a teologia, a prática, o discurso, a propaganda, a televisão. Defende que ela realmente estabeleceu um paradigma, conseguindo aliar muitas iniciativas dispersas por igrejas protestantes no Brasil e elaborando um discurso e uma estratégia de evangelização que convencem”, informa.
Karina Bolleti acrescenta que a Universal vem progredindo também devido ao poder centralizado. “O que vejo é uma competente visão empresarial, onde todo o dinheiro arrecadado entra em uma só conta, quando ele evaporaria se os templos fossem autônomos. O próprio Edir Macedo escreveu que ‘Jesus nunca foi pobre’ e que ‘o fiel deve ser sócio de Deus’. O discurso é o da prosperidade”, afirma a historiadora. O Censo do IBGE indica que em 2000 os evangélicos representavam 15% da população brasileira e que, dentre os evangélicos, 70% são pentecostais.

 



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