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Filósofo ligado ao Ministério da Educação de Angola busca inspiração no Brasil

Um novo angolano,
com jeito brasileiro


MANUEL ALVES FILHO


O pesquisador acredita que a realidade das crianças de rua do Brasil é semelhante à de AngolaEm abril último, Angola comemorou o segundo ano de paz, depois de quase três décadas de conflitos internos. A guerra civil, iniciada logo após a independência de Portugal, provocou a morte de aproximadamente 1 milhão de pessoas e a mutilação de outras 150 mil em razão das minas terrestres, segundo estimativas de organismos internacionais. Atualmente, os angolanos experimentam as condições criadas pela estabilidade política e social para promover a reconstrução do país em praticamente todos os setores, do econômico ao cultural. Para alcançar esse objetivo, os africanos têm buscado o auxílio de outras nações, entre elas o Brasil. E foi aqui que o filósofo Antonio Miguel André, funcionário do Ministério da Educação de Angola, veio procurar subsídios para ajudar na reflexão sobre o futuro da educação em seu país. O que ele viu e viveu em terras brasileiras está registrado em sua tese de doutorado, defendida recentemente junto à Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. No trabalho, Miguel, como prefere ser chamado, fala das possibilidades da educação não-formal como elemento para a formação de um novo homem, no caso o cidadão angolano do pós-guerra.

Escolha do Brasil não foi casual

A escolha do Brasil como fonte da pesquisa de Miguel não foi casual. Trabalhando no Gabinete de Apoio e Acompanhamento às Províncias do Ministério da Educação, desde logo ele se interessou por investigar os problemas educacionais relativos aos meninos e meninas de rua de seu país. Mas antes de pensar em propor ações, ele sentiu a necessidade de estudar algumas experiências executadas na área, sobretudo as que se baseavam em atividades que compõem a educação não-formal. "O Brasil me pareceu o melhor lugar para buscar esses subsídios, uma vez que a realidade das crianças de rua é semelhante nos dois países. Além disso, Brasil e Angola têm a mesma língua e mantêm fortes ligações históricas e culturais", explica.

O filósofo Antonio Miguel André: termos diferentes, objetivos semelhantesAssim, Miguel apresentou um projeto de pesquisa à Universidade Estadual do Espírito Santo, onde foi aceito no programa de mestrado. Ao final da dissertação, o filósofo não ficou totalmente satisfeito. "Notei que eu não tinha atingido o propósito inicial, que era investigar o processo educacional. Até então, eu estudara apenas a realidade dos meninos e meninas de rua", conta. O desafio foi transferido para a tese de doutorado, desenvolvida na Unicamp, sob a orientação da professora Olga Rodrigues de Moraes von Simson e com apoio da Fapesp. A opção do pesquisador foi por conhecer organizações não-governamentais que atendessem crianças carentes e cujas atividades fossem orientadas pela educação não-formal.

Outra preocupação do autor da tese de doutorado foi travar contato com projetos que não encarassem a educação não-formal como substituta da educação formal, mas sim como um complemento desta última. "Esse aspecto foi bastante interessante, pois algumas ONGs brasileiras só aceitam receber crianças que estejam regularmente matriculadas na escola", afirma. Em suas andanças pelo Brasil, Miguel conheceu vários projetos, mas concentrou sua pesquisa em quatro deles: Axé (Bahia), Cecocia (Campinas), Gente Nova (Campinas) e Sol (Paulínia). Este último encontra-se extinto atualmente. Um dos principais aspectos observados pelo angolano foi como essas entidades trabalham as diferenças, por meio de atividades culturais, esportivas e oficinas profissionalizantes.

Miguel lembra que em Angola existem diversos grupos étnicos, com costumes, culturas e até mesmo línguas diversas. "Embora todos sejam angolanos, obviamente as diferenças existem e precisam ser consideradas. Neste aspecto, as experiências brasileiras se mostraram muito interessantes", analisa. O objetivo central do trabalho, assinala o autor, não foi buscar receitas prontas para aplicar em Angola, mas sim encontrar elementos que ajudem a promover uma reflexão mais aprofundada acerca dos problemas educacionais enfrentados pelo seu país.

Feita a ressalva, Miguel destaca que um outro ponto importante observado por ele foi a forma como as crianças brasileiras se entendem. O rótulo "meninos de rua", indagou o filósofo, influenciaria no processo de formação? O questionamento é pertinente, diz, pois muitas crianças carentes angolanas abandonam suas províncias para viver ou pelo menos passar grande parte do dia nas ruas de Luanda, a capital do país. Esse contingente, que é expressivo mas ainda não foi alvo de um censo, tende a questionar o conceito "meninos de rua", preferindo o de "meninos do Estado". "O desafio da sociedade e do governo é trabalhar todas esses aspectos, principalmente a questão da diversidade. Temos que aproveitar as diferenças, de modo a fazer com que não se tornem fatores de discriminação", pondera.

Os propósitos dos projetos brasileiros, no entender de Miguel, aproximam-se dos objetivos que estão sendo perseguidos pelo povo angolano no atual estágio de reconstrução do país. No Brasil, afirma, a meta das ONGs tem sido promover o resgate da cidadania dos meninos de rua. Em Angola, a busca é pela formação do que ele chama de novo homem. "São termos diferentes, mas que têm o mesmo objetivo". Durante o desenvolvimento da tese, o filósofo entrevistou crianças e representantes de organismos não-governamentais tanto no Brasil quanto em Angola. Também ouviu angolanos de várias áreas, inclusive integrantes do governo, cuja formação foi feita total ou parcialmente em universidades brasileiras.

O próximo passo de Miguel será retornar a Angola, onde vivem seus familiares, provavelmente em julho. Ele adianta que deve reassumir suas funções no Ministério da Educação e utilizará o conhecimento adquirido no Brasil para pensar sobre as alternativas possíveis para que a nação africana enfrente, a partir da educação, o desafio de preparar o seu futuro. Depois de cinco anos em terras tupiniquins, o filósofo confessa que voltará para casa mudado, graças às experiências que aqui viveu. "Os brasileiros me ensinaram muito, principalmente sobre solidariedade". Ele próprio representa, de certo modo, o novo homem de que fala a sua tese. Mas com uma particularidade: um novo homem com jeito brasileiro.


Independência deflagrou guerra

Durante praticamente cinco séculos, Angola viveu sob o domínio português. A independência só veio em 1975. Esta, todavia, trouxe consigo uma devastadora guerra civil, que provocou mortes, mutilações e a destruição de grande parte da infra-estrutura do país. A paz só foi garantida em abril de 2002, com um tratado entre o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), partido do presidente José Eduardo dos Santos, no governo desde 1980, e a Unita (União pela Libertação Total de Angola). Esse grupo guerrilheiro só sentou à mesa de conversação após a morte de seu líder máximo, Jonas Savimbi.



INDICADORES
Nome oficial: República de Angola
Localização: Costa ocidental do Continente Africano
População: 16 milhões (estimativa)
Taxa de crescimento demográfico: 2,8% ao ano
Densidade demográfica: 8,3 habitantes por km2
Língua oficial: Português
População economicamente ativa: 53%
Médicos por habitante: 1 a cada 15 mil
Divisão político-administrativa: 18 províncias, 193 municípios, 475 comunas
Unidade monetária: Kwanza Reajustado
Produto Interno Bruto: US$ 3,7 bilhões
Dívida externa: US$ 11,5 bilhões
Fonte: Embaixada da Angola


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