Leia nessa edição
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Sobre a humilhação
Cartas
Lei de inovação na Câmara
Mapa do software livre
Tecnologia reduz custos da BC
Humilhados e ofendidos
Crueldade sem limites
Classe média com raiva
Números lhe dão razão
Painel da semana
Unicamp na mídia
Oportunidades
Teses da semana
Angolano com jeito brasileiro
Memória em movimento
 

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Humilhados e ofendidos

Álvaro Kassab


As diferentes formas de humilhação estiveram no centro do debate no colóquio internacional Sobre a humilhação: sentimentos, gestos e palavras, realizado de 3 a 7 de maio, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). O Jornal da Unicamp ouviu sete dos intelectuais presentes ao encontro. Nesta e nas próximas duas páginas, os pesquisadores respondem a três perguntas nas quais falam de suas áreas de estudo e analisam assuntos pertinentes ao tema do encontro.

Como o tema do colóquio se relaciona com o seu trabalho?


Claudine Haroche - Trabalho com o tema da humilhação, seja ela visível, pouco visível ou invisível. Estudo a imbricação da humilhação explícita ou da humilhação subentendida, voluntária ou involuntariamente infligida. Isso se inscreve precisamente no enfoque do colóquio. A humilhação está no cerne das sensibilidades políticas e toca naquilo que o indivíduo tem de mais profundo: o seu próprio ser, sua identidade e mesmo o seu sentimento de existência. Acho que é extremamente importante que coloquemos essas questões hoje, pois estão presentes de uma forma aguda nas sociedades massificadas e nas diferentes formas do individualismo contemporâneo. Acredito que é necessário insistir aqui sobre o debate acerca das sociedades de mercado e de consumo contemporâneas, que isolam e tendem a produzir um vínculo artificial, quando não até mesmo a ausência de vínculo social.

A forma como os sentimentos são vivenciados e se exprimem estão ameaçados de uma certa forma em um período de transição, de instabilidade, de mudança permanente das referências, de aceleração, de mal-estar e de mudança permanente das referências. É preciso colocar uma questão: está em declínio a nossa capacidade de sentir diante das formas tomadas pelo individualismo contemporâneo?

Ítalo Tronca - No meu caso, diria que tem tudo a ver. Trabalho com o Brasil contemporâneo, dos anos 50/60 para cá. Não quero dizer que a humilhação seja a característica única deste último período da história do Brasil. A humilhação perpassa quase toda a história da humanidade, claro que reforçada pelos mitos bíblicos. As duas grandes religiões do mundo contemporâneo, o cristianismo e o islamismo, têm na humilhação um de seus eixos-mestre. Derivando deste eixo, tem-se uma irradiação que se articula com a política, com a cultura, atravessando os mais diversas períodos históricos, permanecendo até hoje.

Izabel Marson - O trabalho de pesquisa, do qual resultou minha tese de doutorado, abordou um tema da história do Brasil do século 19, a Revolução Praieira. Trata-se de um movimento liberal de rebeldia contra o governo imperial – que se desenrolou nas províncias de Pernambuco e Paraíba entre 1848 e 1849 – finalizado com uma repressão particularmente severa, fundada na força e na astúcia. Dessa forma, o representante do governo imperial ofereceu anistias, especialmente aos líderes que depusessem armas, porém anistias que funcionaram como armadilha: ao se entregarem, as chefias rebeldes foram aprisionadas. Na verdade, esse recurso à anistia teve por objetivo o aprisionamento humilhante, que possibilitou um julgamento no qual as lideranças do movimento foram condenadas à mais severa pena política do código do Império: a prisão perpétua com trabalhos forçados. Apenas após três anos de prisão viria a anistia efetiva.

Os responsáveis pela aplicação deste recurso punitivo humilhante foram jovens magistrados recém-formados na faculdade de direito de Olinda e que há pouco tempo integravam o quadro judicial do império. Minha pesquisa, portanto, remete a formas de humilhação implementadas por magistrados e inscritas na própria prática judicial. Considera que o sistema repressivo e o sistema penal que a sociedade burguesa instaurou a partir do século 19, recorre a formas de punição, tantos nos crimes políticos como nos comuns, que são também instrumentos de humilhação. As prisões que nascem no século 19 são prisões que fazem da humilhação um recurso de reeducação do condenado.

Márcio Seligmann-Silva - Tenho, nos últimos anos, trabalhado bastante com a questão do testemunho na literatura. Comecei lendo testemunhos de sobreviventes de campos de concentração nazistas da Segunda Guerra Mundial. Essas pessoas passaram, portanto, por uma situação de humilhação extrema. A maioria sobreviveu por acaso, já que eles acabariam numa câmara de gás. Essas experiências publicadas em livros, como as relatadas em É isso um homem?, de Primo Levi, narram situações de extrema humilhação, de desumanização. Essas pessoas, antes de acabarem na câmara de gás, trabalhavam 14, 15 horas por dia para empresas instaladas nos campos de concentração. Viviam com uma ração mínima, morriam de trabalhar, era um sistema de exploração máximo, uma espécie de radicalização total daquilo que o capitalismo tinha inventado no século 19. Eram vítimas de um experimento biopolítico.

A partir desse estudo, comecei a trabalhar também com testemunhos de outras modalidades. Na América Latina, por exemplo, existe toda uma tradição do testemunho das lutas dos trabalhadores. Há também muitos testemunhos no Brasil, sobretudo de pessoas que estão em prisões a partir do sucesso do livro de Dráuzio Varela [Carandiru]. Muitos escritores nas prisões resolveram também publicar suas experiências. As prisões no Brasil reduzem nossas necessidades culturais e humanas a quase nada. É uma violência que existe na sociedade de um modo geral e que aparece na prisão de um modo extremo. Esses testemunhos são muito importantes. Foram publicados porque essas pessoas estão procurando alçar sua voz, estão procurando diálogo com a sociedade.

Pierre Ansart - A relação entre o tema do colóquio e meu tema de pesquisa é muito estreita. Eu reflito já faz 15 anos sobre as paixões políticas, os amores políticos, os ódios políticos e o carisma. A humilhação faz parte de minhas preocupações. Ela é reveladora de muitos problemas, sejam eles ancestrais ou contemporâneos.

Stella Bresciani - Faz bastante tempo que trabalho com a questão dos sentimentos na política. Foi, na verdade, uma entrada meio tortuosa. Comecei pela questão das multidões nas cidades européias no século 19. Via sempre uma referência à questão das multidões na Revolução Francesa, o que fez estudar as pessoas que se debruçaram sobre o tema. Primeiramente, os cientistas políticos e historiadores e, depois, as pessoas que viveram o período da Revolução Francesa. Foi interessante constatar como, tanto os ingleses como os franceses da época, abordavam em seus textos a questão da irracionalidade das multidões.

Comecei então a trabalhar esse outro lado, ou seja, de que maneira se pode captar as emoções. A partir disso, constatei que os contemporâneos da Revolução Francesa já tinham teorizado sobre isso. De uma certa maneira, com a ciência política, mais para o final do século 19, tentou-se trabalhar apenas com uma relação mais objetiva de ações. Max Weber e alguns autores norte-americanos trabalharam muito nessa linha de estrita objetividade, como se a institividade e a irracionalidade estivessem fora da política. E, quando analisada, o era sempre na forma do poder carismático. É um pouco aquela coisa de que a idéia da política é o domínio da razão, e a irracionalidade sempre pendia para o lado da demagogia. Acho que é muito semelhante como os jornais de hoje trabalham com esses temas mais atuais. A mídia trabalha, consciente ou inconsciente, insuflando as emoções. Existe essa vontade de explicar racionalmente as coisas que não são do domínio do racional.

Wolfang Heuer - Atuo na área da ciência política com uma pesquisa sobre a "des-civilização". Aqui, neste colóquio, tratamos a humilhação como uma forma de "des-civilização". Meu estudo se dedica a processos relacionados a movimentos históricos, não se detém apenas a aspectos fenomenológicos. Apresentei uma interpretação do filme Dogville, do cineasta dinamarquês Lars von Trier, que mostra, na forma de uma parábola, como uma municipalidade liberal sob pressão exterior entra num processo de des-civilização. O personagem principal é uma jovem mulher que encontra refúgio nesta comunidade, porquanto está sendo perseguida por uma organização criminosa. Por estar sendo procurada não somente por criminosos, mas também pela polícia, os habitantes do vilarejo começam a temer pela sua presença no lugar. Entretanto, não a entregam à policia, mas a utilizam como escrava do trabalho e, com o passar dos dias, também como objeto sexual. Perpetrando cada vez mais atos abusivos contra a refugiada, que passa por humilhações cada vez mais brutais, os habitantes ultrapassam a os limites entre ações civilizadas e barbárie. Estas humilhações são o centro da narrativa. Elas representam o meio pelo qual se mostra a decadência da comunidade. Mas não só isso: apresentam também um desafio para a ausência da política num duplo sentido. Primeiro, da política sob o ponto de vista institucional, ou seja, da inexistência de instituições políticas que impediriam com eficácia a transição entre legalidade e crime e, em última instância, barbaridades. Segundo, do entendimento da política como uma ação civil, que se distingue da passividade e da indiferença apresentada em Dogville.
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*Colaboraram as professoras Izabel Andrade Marson e Jacy Seixas, respectivamente, coordenadora e sub-coordenadora do colóquio.



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