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Na cadência do
JONGO

MANUEL ALVES FILHO

A professora Silvia Hunold Lara, do Cecult: "A obra extrapola os muros da academia" (Foto: Antônio Scarpinetti)Quando desembarcou no Brasil no final dos anos 40, mais especificamente no município fluminense de Vassouras, o historiador norte-americano Stanley J. Stein estava interessado em pesquisar aspectos relacionados à vida nas fazendas de café no século XIX. Durante 18 meses, ele visitou arquivos, investigou documentos, entrevistou e fotografou pessoas e registrou, com o auxílio de um gravador de fio de arame, canções e pontos de jongo entoados por ex-escravos e descendentes de escravos. Decorridos quase 50 anos, o material sonoro gravado pelo pesquisador deu origem ao livro-CD Memória do Jongo - As gravações históricas de Stanley J. Stein, Vassouras, 1949. A obra, co-organizada pela professora Silvia Hunold Lara, do Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult), ligado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, nasce como fonte obrigatória para aqueles que desejam conhecer novos elementos acerca da contribuição da cultura africana para a formação do país.

Memória do Jongo, explica Silvia Lara, surgiu da curiosidade do etnomusicólogo Gustavo Pacheco, o outro organizador da publicação. Ao ler a obra produzida por Stein com base nas pesquisas realizadas em Vassouras, ele tomou conhecimento das gravações. Ato contínuo, entrou em contato com o pesquisador norte-americano e perguntou sobre o destino do material. O ano era 1999. Para desânimo de Pacheco, Stein informou que a bobina de arame provavelmente estava perdida. Certo dia, entretanto, o etnomusicólogo recebeu em casa, por via postal, uma encomenda. Para sua surpresa, o pacote trazia uma preciosidade acompanhada de um bilhete. Na missiva, Stein informava ter encontrado a gravação, e que a colocava à disposição do brasileiro, para que este fizesse “bom proveito”.

Funcionárias da Fazenda Cachoeira Grande selecionam café para ensacamento (Foto: Y. J. Stein/Antônio Scarpinetti)Ainda sem saber se o conteúdo da bobina poderia ser resgatado, Pacheco procurou Martha Abreu, sua ex-professora na Universidade Federal Fluminense (UFF), que à época participava de um projeto desenvolvido pelo Cecult, então dirigido por Silvia Lara. O ano era 2005. “A Martha me falou sobre o material e achamos que poderia se tratar de algo importante. Felizmente nós conseguimos recursos para transcrever o conteúdo da bobina e transferir o registro sonoro para um CD. Todo o trabalho foi feito por uma empresa dos Estados Unidos”, relata a professora da Unicamp. Ainda segundo a docente, a gravação era contínua, com aproximadamente 45 minutos de duração. De posse da gravação em meio digital, Silvia Lara e Gustavo Pacheco partiram em busca de um novo financiamento, desta feita para a organização de um livro-CD. Projeto nesse sentido foi submetido à Petrobras, que decidiu patrocinar a obra por meio da Lei de Incentivo à Cultura.

Para a produção do CD, as gravações tiveram que passar por uma série de cuidados, entre eles edição e masterização. Ao todo, foram recuperados 60 pontos de jongo, cinco batuques de tambor, nove calangos, uma folia e seis sambas, sendo cinco instrumentais e um cantado. Já o livro foi constituído por cinco artigos, um deles escrito pelo próprio Stein, no qual conta como foi sua experiência em Vassouras. Os demais autores são a própria Silvia Lara, Gustavo Pacheco, Hebe Mattos e Martha Abreu (produziram conjuntamente) e Robert Slenes, este também professor da Unicamp. Durante a elaboração do livro, Stein localizou vários negativos das fotografias que produziu ao longo dos 18 meses em que permaneceu na cidade fluminense. Algumas imagens, em que aparecem moradores locais, trabalhadores e ex-escravos, foram incorporadas ao livro.

NVista do casario da Fazenda São Fernando, na região visitada por Stanley Stein (Foto: Y. J. Stein/Antônio Scarpinetti)a opinião de Silvia Lara, Memória do Jongo reveste-se de importância tanto por trazer registros históricos sobre manifestações da cultura afro-brasileira, quanto por promover a ligação entre uma pesquisa realizada há quase 50 anos por um cientista estrangeiro que se interessou pelo Brasil e estudos recentes na área da História Social. “Além disso, é preciso ressaltar que a obra extrapola os muros da academia, tornando a pesquisa acadêmica acessível ao público mais geral”, analisa. A docente informa que foram editados 2 mil exemplares do livro-CD. Um lote de 1.400 unidades foi distribuído gratuitamente para universidades, centros de cultura e bibliotecas públicas do Brasil e do exterior. O restante será colocado à venda pela editora Folha Seca (www.livrariafolhaseca.com.br).

Crítica social – A bobina de arame, as primeiras transcrições da gravação e as fotografias produzidas no final da década de 40, de acordo com Silvia Lara, pertencem atualmente ao acervo do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), vinculado ao IFCH.  O material está sendo preparado para ser disponibilizado para consulta pública, com verbas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).  A docente da Unicamp destaca que o conteúdo desses documentos revela, entre outros aspectos, algumas dimensões do cotidiano, da religiosidade e da crítica social Terreiro de café em fazenda fluminense: versos expressavam forte crítica social  (Fotos: Y. J. Stein/Antônio Scarpinetti)praticada pelos ex-escravos e descendentes de escravos. Exemplos nesse sentido são os versos de um conhecido jongo, também gravado por Stein, que diz: “Com tanto pau no mato/com tanto pau no mato/embaúba é coroné”. “Esse jongo expressa uma forte crítica aos fazendeiros, que muito freqüentemente ostentavam o título de coronel, mas que são aqui comparados à embaúba, árvore de madeira de péssima qualidade”, explica Silvia Lara.

O verso cifrado e cantado em forma de desafio é uma característica do jongo, que é composto apenas por voz e tambor, mas que pode vir acompanhado por dança. Essa tradição vem da África Central, berço da maior parte dos escravos que foram explorados nas propriedades agrícolas do Sudeste brasileiro. No período da escravidão, alguns grupos chegaram a organizar fugas ou rebeliões sob as barbas dos coronéis, durante o que parecia ser apenas uma reunião musical ou religiosa. Essa tradição continua a ser praticada até hoje, e é parte importante da identidade de muitas comunidades negras no Sudeste. Em dezembro de 2005, o jongo foi declarado patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

SERVIÇO
Título: Memória do Jongo - As gravações históricas de Stanley J. Stein, Vassouras, 1949
Organizadores: Silvia Hunold Lara e Gustavo Pacheco
Editora: Folha Seca/Cecult
Número de páginas: 200
Preço sugerido: R$ 25,00


Andando ‘de cacunda’

“Tatu mineiro, cavuca terra de cacunda
Tatu mineiro, cavuca terra de cacunda
Cavuca terra de cacunda, tatu mineiro
Cavuca terra de cacunda”
(Stein, faixa 27.)

Robert Slenes

O mestre jongueiro (jongueiro cumba), se representa aqui como “tatu”, grande “cavucador” de terra. O bicho é brasileiro, mas a metáfora provavelmente vem da África Central, onde certos animais, especialmente os que faziam seus ninhos em baixo da terra, eram tidos como mediadores entre os homens e o mundo dos espíritos. Um exemplo é o grande rato de campo Cricetomys gambianus, conhecido entre os Kongo (povo do baixo Rio Zaire com grande presença na senzala do Sudeste) como nkümbi. O nome vem de kùmba, “cavar” e se aplica, metaforicamente, a um patriarca “que conhece vários países, usos e costumes”.

Jongueiros mineiros, que acompanhavam os tropeiros descendo de Minas para os portos, tinham fama de cumbas temíveis; o “tatu mineiro” até podia cavucar terra “de cacunda” (para trás). Lembra-se aqui a habilidade do tatu de correr em marcha ré dentro de seu túnel, quando ameaçado, como também (em 1949) provérbios como “quando uma pessoa anda para trás, o Diabo acompanha-a”. Originalmente, no entanto, a intenção pode ter sido, não de comparar os poderes do cumba aos do Diabo, mas de frisar a origem deles no Outro Mundo, tido (pelos Kongo) como o espelho deste - isto é, como um lugar onde todos os espíritos andavam “de cacunda”.

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Robert Slenes é professor do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp





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