| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 328 - 26 de junho a 2 de julho de 2006
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4-5

A gramática na ponta
da língua (e na lingüística de ponta)

(Fotos: Antonio Scarpinetti)A Editora da Unicamp acaba de lançar o primeiro dos cinco volumes da coleção Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Mais que consolidar pesquisas iniciadas ainda na década de 70 por 32 pesquisadores de 12 universidades brasileiras, a coleção traz a chancela do pioneirismo. Trata-se do primeiro trabalho do gênero a ser publicado nas Américas e no mundo romântico, de acordo com o professor e lingüista Ataliba Teixeira de Castilho, coordenador da coleção.

A descrição abrangente do português culto falado também descortina paradigmas ao privilegiar o desenvolvimento de teorias próprias, fugindo da armadilha dos modelos importados. “Tínhamos uma lingüística colonizada, ou auto-colonizada. Desta vez, o Brasil não ficou esperando que alguma teoria se arredondasse para então aplicá-la por aqui”, comemora Castilho, para quem “produziu-se uma inversão no modo de ver a língua, até então concentrado na análise de produtos que resultavam de processos desconhecidos”.

Na opinião do professor, as novidades trazidas pela coleção vão “ricochetear na escola, lá na frente”. A mesma escola que, de resto, sempre foi um tema caro ao lingüista, conforme pode ser conferido nesta entrevista.

Jornal da Unicamp – Como e quando foram iniciados os trabalhos acerca do livro que acabou de ser publicado?
Ataliba Teixeira de Castilho ­ – A publicação do primeiro volume da Gramática do Português Culto Falado no Brasil representa a culminação de um esforço muito grande que teve início ainda na década de 70, através do Projeto da Norma Linguística Urbana Culta (Projeto NURC). O objetivo era fazer uma boa documentação e análise do português culto falado em cinco capitais brasileiras: Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Originário do México, esse projeto teve uma dimensão hispano-americana, tendo sido introduzido no Brasil em 1969, dois anos depois de ter se iniciado na América Espanhola. Na verdade, ele viria a desenvolver-se melhor aqui do que em seu lugar de origem.

Foi então constituído um grupo com pesquisadores da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Havia um roteiro de entrevistas e nós procurávamos pessoas de formação universitária, de três faixas etárias, nascidas nas capitais sob estudo, e que tivessem cursado a universidade no local de origem. Só em São Paulo foram feitas 350 horas de gravações. Todo esse material, e ainda amostras das outras capitais, está guardado no Cedae (Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio”) do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Está disponível para qualquer pessoa que queira consultá-lo.

JU – As gravações duraram quanto tempo?
Castilho – As entrevistas foram gravadas de 1970 a 1978. De 1978 a 1985 começamos a transcrever as fitas. Trata-se de um processo muito penoso – cada hora de gravação consome em média 7 horas de trabalho. No nosso caso, havia a exigência de não omitir absolutamente nada do que tinha sido falado. Queríamos saber de fato como esse pessoal falava.
Depois disso veio a publicação de amostras dessas transcrições – de 1986 a 1990 saíram três volumes com as transcrições das entrevistas feitas em São Paulo, seguindo-se as demais capitais. A publicação dessas amostras fez com que explodisse por todo o país uma quantidade enorme de estudos sobre a oralidade, fenômeno que, por incrível que pareça, só virou objeto científico na Lingüística por causa de um acidente tecnológico que foi a invenção do gravador portátil.

JU – Como funcionava até então?
Castilho – Os estudos de língua falada eram feitos anteriormente com base naquilo que o lingüista se lembrava de ter ouvido, e não com base em documentos de transcrição. Na hora que se transcreve a língua falada, sem copidescagem, aparecem muitos fenômenos que não eram anteriormente analisados, por deficiências na documentação.

JU – Pesquisadores da Unicamp já participavam do projeto?
Castilho – Entre 1970 e 1975, não, por que eu trabalhava na Faculdade de Filosofia de Marília, um instituto estadual de ensino superior, que mais tarde se integraria na Unesp, então nascente. Trabalhei em Marília de 1962 a 1975, quando me transferi para a Unicamp, trazendo para cá esse projeto, que já se desenvolvia na USP. O Projeto NURC deu muito certo na análise pragmática da conversação, mas não funcionou como se esperava no caso das análises gramaticais. Assim, em 1988, propus que outro grupo fizesse uma análise sistemática das estruturas gramaticais ­– fonologia, morfologia, sintaxe e estudo do texto – com base nesse material gravado, e a partir de perspectivas próprias, não aquelas do NURC.

O novo projeto foi prontamente acolhido e teve uma grande aceitação por parte de pesquisadores experimentados. Eu mesmo fiquei surpreso com a reação. O fato é que trabalharam no projeto 32 pesquisadores, afiliados a programas de pós-graduação de 12 universidades brasileiras. A maior concentração era de pesquisadores da Unicamp. Fizemos então um plano de descrever esse material durante “x” anos – no final foram 10 anos, de 1988 a 1998.

JU – Como foi feita a distribuição das tarefas?
Castilho – Dividimos os pesquisadores em grupos de trabalho. Cada um deles ficou incumbido de fazer o que no futuro seria um dos volumes da gramática. Tinha o pessoal de morfologia, da sintaxe das classes de palavras, da sintaxe da oração, da fonologia e da organização do texto. Cada grupo tinha seu coordenador, uma agenda e uma perspectiva teórica próprias. As pesquisas foram desenvolvidas de acordo com essa agenda, e todos os grupos se reuniam em seminários nacionais, de que foram realizados dez. Ao cabo de cada seminário, os textos aprovados saíam em série própria, publicada pela Editora da Unicamp, que atingiria oito volumes de ensaios, muitos deles já em sua quarta edição. Mais de 200 ensaios foram escritos entre 1988 e 1998, fora as dissertações de mestrado e as teses de doutorado orientadas pelos pesquisadores. 
Terminada a agenda dos grupos de trabalho, viria o processo de consolidação dos ensaios na Gramática propriamente dita, de que saiu agora o volume I, sob o título de Gramática do Português Culto Falado no Brasil, preparado pelo grupo de organização textual interativa. O volume I, portanto, mostra como construímos textos enquanto conversamos.

JU – Este trabalho é pioneiro?
Castilho – Sem dúvida. Ele é pioneiro nas Américas e o primeiro no mundo românico. Quando se começou esse trabalho, fui visitar cada um dos lugares onde havia alguma coisa semelhante. Portugal começou a gravar língua falada nos anos 70, mas os estudos não foram tão intensos como no Brasil. Nos Estados Unidos, pesquisas sistemáticas sobre a conversação tinham começado em 1974. Na França, em 1979. Na Itália, os estudos sobre o italiano falado principiaram em 1981.Os hispano-americanos, que tinham começado em 1967, não atingiram o mesmo dinamismo dos brasileiros, que estavam 3 anos atrasados em relação a eles. Mas nós fomos mais rápidos. Em nenhum desses ambientes se concebeu a idéia de escrever uma gramática de consulta exclusivamente voltada para a língua falada. Com isso, é a primeira vez que a modalidade falada de uma língua românica é amplamente investigada e descrita.

Queria ainda agregar outra informação pouco percebida pelos lingüistas brasileiros. No Brasil, até pouco tempo atrás, um lingüista firmava sua reputação traduzindo, divulgando e estudando obras de estrangeiros desconhecidos no país. Agora, com esse vasto empreendimento, além de outros projetos coletivos brasileiros, poderemos desenvolver teorias próprias, para dar conta do que se descobriu, para caminhar ao encontro das generalizações.

JU – Os modelos eram importados.
Castilho – Exatamente. Isso é muito triste do ponto de vista do desenvolvimento científico. Tínhamos uma lingüística colonizada, ou auto-colonizada. Quando iniciamos nossos estudos, começou uma novidade única na história da Lingüística no Brasil: saíamos na frente nessa atividade, e as datas acima comprovam isso. Desta vez, portanto, o Brasil não ficou esperando que alguma teoria se arredondasse para então aplicá-la por aqui.    

JU – Quais foram as contribuições desse pioneirismo para a Lingüística brasileira?
Castilho – Ao fazer esses trabalhos, a nossa Lingüística foi descobrindo os processos lingüísticos, muito mais visíveis na oralidade do que na escrita. Produziu-se uma inversão no modo de ver a língua, até então concentrado na análise de produtos que resultavam de processos desconhecidos. A próxima geração deverá concentrar-se no estudo do processamento da linguagem. Precisamos ir atrás do motor da língua. 

Renunciamos à idéia de tratar a língua como um defunto, que convinha empalhar decentemente. Passamos a desenvolver teorias próprias, a produzir um novo conhecimento sobre o português brasileiro. É por isso que o subtítulo do primeiro volume traz a palavra “Construção” [do Texto Falado]. Não se trata de uma gramática que descreve apenas as estruturas do texto.  Os demais volumes terão o mesmo enfoque da língua: o volume II vai ter “Construção da Sentença” no subtítulo, não será a famosa análise sintática, e assim por diante.

Priorizamos sempre o lado dinâmico da língua, não a reduzimos a uma entidade estática. Essa novidade vai ricochetear na escola, lá na frente. Já sabemos que as apropriações pela escola das descobertas da academia sempre demoram um pouco, mas isso certamente acontecerá. Existe agora uma alternativa forte colocada na mesa por um grupo extraordinário de pesquisadores, 32 no total. Alguns, infelizmente, já morreram, mas deixaram sua contribuição, como Fernando Tarallo, Giselle Machline de Oliveira, Carlos Franchi.  Esses pesquisadores promoveram uma inédita interação entre pessoas que pensam de modo diverso. Funcionalistas e formalistas se sentaram à volta da mesma mesa, impulsionados pela paixão da descoberta científica. Isso não tinha acontecido antes em nosso país.

JU – Houve uma confluência de idéias.
Castilho – Sem dúvida, apesar de as diferenças serem bem demarcadas no início dos trabalhos. Foi um aprendizado coletivo. Apesar de todas as nossas diferenças, convergimos num ponto: todos os passos de uma gramática têm que ser dados a partir do texto, não a partir da sentença. O que aconteceu no Brasil foi um abalo para quem esperava testes bem comportados de modelos teóricos importados.

JU – Em que medida essa gramática se diferencia dos oito volumes anteriormente publicados?
Castilho – É totalmente diferente. A coleção anterior deveria ser chamada de “Ensaios de gramática do português falado”, pois na verdade você tem apenas estudos naqueles oito volumes. Para distinguir os dois momentos no projeto da gramática foi preciso arranjar um título diferente para esta nova fase. Todo aquele material – os mais de 200 ensaios – foi relido e consolidado dentro de uma articulação prévia, e, como novas pesquisas foram feitas, tudo isso foi redigido e incorporado na gramática propriamente dita. As duas séries dispõem, portanto, de textos diferentes, que continuarão a exercer um papel nos estudos sobre o português. Numa gramática de referência, de consulta, como a que temos agora, capítulos e volumes se sucedem num ritmo mais articulado. São dois momentos diferentes na história dessa gramática. Na primeira série, as descobertas. Na segunda, sua articulação.

JU – Qual a diferença entre o português popular falado e português culto falado?
Castilho – Não existe muita diferença. A sociedade brasileira é muito dinâmica, suas classes não ficam fixas num lugar só, não são estanques. Vamos dizer que, do ponto de vista da formação escolar do indivíduo, podemos reconhecer o português brasileiro popular – que é o dos analfabetos ou daqueles que cursaram só o primeiro ciclo do ensino – e o culto – o dos brasileiros que freqüentaram a universidade.
O português popular é muito mais dinâmico, porque não tem as peias da escola, não é controlado pelo português culto ou padrão, ensinado nas escolas. Do ponto de vista científico, inclusive, é até mais interessante de estudar, pois ele aponta para o futuro, para o que virá a ser a língua portuguesa.

JU – E o português culto?
Castilho – Ele é menos variado, já que as pessoas que falam essa modalidade passaram pela universidade, tornando-se herdeiras de uma tradição. Mas insisto em que não são muitas as diferenças. Elas afetam mais a concordância nominal e verbal. No português popular, as regras de concordância não são redundantes como no português culto. Por exemplo: numa estrutura formada por artigo, substantivo e adjetivo, a marca de plural na variedade culta aparece em todos os elementos, como em “as casas pequenas”. No português popular a marca de plural aparece só no primeiro item, como em “as casa pequena”. Do ponto de vista da economia lingüística, isso é mais satisfatório, pois a marcação não precisa ser repetida em todas as palavras da estrutura. O francês, mesmo em sua modalidade culta, já vem fazendo assim faz tempo. Nessa língua, as marcas de plural só aparecem na forma escrita, mas você não as pronuncia.

Outra diferença é a concordância do verbo com o sujeito. No português culto, normalmente o verbo concorda com o sujeito. Já no popular, depende da morfologia do verbo, pois as regras são mais sofisticadas. Se a forma de plural do verbo é muito diferente da forma do singular, como em “ele é” em comparação com “eles são”, há concordância, como em “o menino é”, “os menino são”. Se a diferença entre o singular não é muito grande, não há concordância, como em “ele fala”, “eles falam”.

Agora, mesmo o português culto vem perdendo a concordância do verbo com o sujeito, quando esta função vem depois do verbo, dele se distanciando, como em “fala demais da conta essas pessoas”. 

JU – Existe uma razão científica para isso?
Castilho – Há sim. Como a expressão que normalmente vem depois do verbo é em geral o complemento, com o qual o verbo português não concorda, elimina-se a concordância mesmo quando essa expressão é o sujeito. Este é um dos muitos casos em que a língua culta se comporta como a popular.

JU – O senhor disse que a linguagem popular é mais sofisticada. Por quê?
Castilho – Paradoxalmente, sim. A língua culta é muito pesadona, redundante, e tem um dinamismo menor. A língua popular é mais livre, mais criativa, e acaba por ter uma gramática mais sofisticada, como no caso da concordância verbal mencionada.
Isso ocorre mais na questão da organização gramatical da sentença e na construção das palavras. A gramática da língua culta reflete o passado. A gramática da língua popular aponta para o futuro da língua, e toma soluções novas com mais freqüência. Mas é claro que na exposição das idéias, na argumentação, a língua culta leva vantagem. A falta de cultura letrada parece dificultar a elaboração do argumento, frequentemente abandonado no meio do caminho.

JU – O que significa a norma culta num país tão heterogêneo como o Brasil?
Castilho ­– Essa é uma grande discussão. Quando uma nação tem suas classes sociais muito cristalizadas, é grande a diferença entre o padrão culto e o padrão popular. O falar diferenciado identifica o cidadão. Entretanto, quando a sociedade é bastante dinâmica, como a nossa, em que as classes ditas de baixo estão subindo, dada a intensa urbanização do país, a tendência é a norma culta não ficar muito distanciada do padrão popular. Isso já foi apontado para outros países hispano-americanos, que compartilham traços culturais com o Brasil.

JU – Qual o papel da escola nesse contexto?
Castilho – Essa proximidade não quer dizer que a escola deva abrir mão da sua obrigação de passar o padrão culto. Por quê? O trabalho da escola é promover o cidadão. E como é que o cidadão vai ser promovido se ele não tiver à sua disposição o modo de falar de pessoas de uma outra classe, de um outro nível? Ignorar essa realidade básica seria, no fundo, atrapalhar a vida desse sujeito. Nos lugares em que há diferença entre um padrão e outro é bom que ele saiba que “dialeto” escolher. A escola deve fazer do cidadão um “bilíngue” em sua própria língua, por assim dizer. Assim ele poderá graduar sua fala.

Se ele está no ambiente familiar, ele deve usar a linguagem da sua família, ele não vai mudar aquilo. Agora, fora desse ambiente familiar, no seu local de trabalho, na busca de um emprego, ou quando ele se dirige a pessoas com as quais não tem intimidade, ele precisa se categorizar e não se desvalorizar, o que ocorrerá se ele chegar falando uma modalidade que, naquele ambiente, não é a adequada. O preconceito lingüístico é inerente às sociedades humanas. Temos de lidar com isso.

Para cada situação, há portanto uma modalidade lingüística adequada. Todo o lance será, por meio do ensino escolar, levar o aluno a conhecer a variedade que ele não domina familiarmente, que é justamente a variedade dominada em outro meio. Voltamos à questão da concordância do verbo e do sujeito, ou à concordância nominal. É melhor usar as regras de concordância fora de seu meio familiar. Embora isso seja uma coisa estúpida do ponto de vista científico, não o é do ponto de vista social. A sociedade não valoriza a pessoa que esteja falando “as menina pequenina” ou coisas desse tipo...
Mas gostaria que a escola não pusesse todo o seu esforço exclusivamente no ensino do padrão culto. Em primeiro lugar, a escola deve levar o aluno a refletir sobre a língua. E, depois é que vêm terminologia, classificações, coisas desse tipo. A criança precisa saber como funciona a sua língua, precisa sistematizar essa reflexão, já que pensar sobre a língua é algo corriqueiro na vida diária. Por exemplo, quando você reformula o que disse, evidentemente por que não ficou satisfeito com determinada execução, vai logo usando expressões do tipo “dizendo isso de outro jeito”, “digamos assim”, “ou melhor”, etc. Qualquer indivíduo está sempre refletindo sobre sua língua, à medida que conversa, para garantir a eficácia de sua fala. O que estou propondo aqui é a sistematização, na escola, desse impulso natural de qualquer falante, culto ou inculto.

É somente depois da reflexão que se deve ir adiante, rotulando as características da língua, propondo uma terminologia, etc. Habitualmente a escola começa por aqui. A escola começa pelas classificações das expressões, quando, na verdade, isso não é ponto de começo, é ponto de chegada. Sistematizada a reflexão linguística, o aprendizado do padrão culto ficará simplificado. O indivíduo vai se convencer, vai analisar e comparar. Não vai simplesmente obedecer a regras, estratégia que não funciona. Isto será melhor do que chegar a uma classe e enumerar regras gramaticais logo de cara. Quando isso acontece, é dada ao aluno uma reposta a uma pergunta que ele não fez. Não vai funcionar.

JU – Houve no Brasil algumas tentativas de se adotar modelos alternativos, não?
Castilho ­– Em 1930/40 – pouco tempo atrás portanto para os padrões brasileiros –, muita gente achava que o português culto do Brasil era o português europeu. Nas universidades, pregava-se que, na escrita e na fala, todo mundo tinha que se comportar como os portugueses...

JU – Qual o peso da tradição oral nessa coleção?
Castilho – Se se entender por tradição oral a transmissão de determinados gêneros literários, como na chamada literatura oral, o peso é nenhum. Se se entender por tradição oral o retrato do modo como conversamos, aí o peso é muito grande. A percepção da oralidade espontânea é muito interessante. Quando você transcreve uma frase dita por uma pessoa, tudo parece muito caótico e repetitivo. Tanto que, no começo do nosso trabalho, publicadas as primeiras amostras das entrevistas, as pessoas falavam: “vocês são aqueles que lidam como os gaguinhos, né?”. Porque não se tinha uma idéia precisa do que acontece quando a pessoa fala e que importância isso tem para se entender uma língua natural. Até então, todos os estudos eram feitos sobre a língua escrita. Ora, sabemos hoje que a língua escrita filtra muitas características interessantes de um língua natural qualquer, características essas que permitem que você entenda como funciona a língua.
Costumo usar a seguinte comparação para distinguir a língua escrita da falada. Quando você olha um prédio pronto, se você não é familiarizado com a nossa sociedade urbana, você fica se perguntando como foi possível construir aquilo. Mas se você olha o prédio em construção, com os seus andaimes armados à volta, você entende como surgiram as paredes e o telhado de um prédio de apartamentos, por exemplo.

A língua escrita é como um prédio pronto. Quando a gente escreve, tem todo o tempo para ir e vir, ajustar as idéias, corrigir, apagando as versões anteriores. Já a língua falada é o prédio com os andaimes, ou seja, tudo é on-line, você está pensando no que vai falar e já está falando, na sua fala aparecem restos do seu diálogo interior, e o rascunho convive com a versão final.

JU – Como assim?
Castilho – Nós achamos que a língua é para a comunicação. Mas não é. O nosso uso da língua para a comunicação é muito pequeno. Eu diria que apenas 20% vão para a comunicação; o resto é para a sua organização interna, para sua reflexão. Nós organizamos a nossa vida e o nosso pensamento por meio de uma sorte de diálogo interno.

JU – Quais são os efeitos disso?
Castilho – Acontece uma coisa interessante, porque é como se você dividisse sua cabeça em duas partes, estabelecendo um diálogo entre elas, desdobrando sua identidade entre uma personagem que fala com alguém, e outra personagem que escuta e depois argumenta. Bom, mas acontece que essas duas personagens confluem em você mesmo. Logo, a esquizofrenia é constitutiva do ser humano... Os casos mais avançados é que são capitulados como casos patológicos. No mais, todos nós somos esquizofrênicos, de algum modo, em alguma medida, sinto muito...

Veja o exemplo do sonho. Nele, você institui um fato, você intitui um interlocutor, que pode te revelar coisas das quais, aparentemente, você não sabia. Ou seja, uma parte de sua mente revela coisas à outra parte, mesmo sendo um só indivíduo o autor do sonho. Aí, quando você acorda, pensa: “espera aí, mas o sonho não era meu? Que pessoa é essa que apareceu e contou uma coisa que eu não sabia? Que parte da minha mente sabia uma coisa que a outra não sabia?” Estes acontecimentos de todos os dias são mais um produto da linguagem. A língua, portanto, não é só para a comunicação externa. Ela funciona também para os acordos internos, para o planejamento das atividades do dia, por exemplo. Nos sonhos, você utiliza sua língua não para a comunicação externa. Ainda não medimos direito a força do diálogo interno na organização das línguas. Mas os registros da língua falada oferecem materiais para esse tipo de indagação.

JU – A Lingüística dá conta hoje de estudar esses componentes?
Castilho – Não sei. Há propostas, como aquela feita aqui na Unicamp por Marcelo Dascal, no final dos anos 70. Ele vem investigando esses fenômenos, para os quais reservou um lugar na Linguística, a que denominou “Psicopragmática”. Curiosamente, quando explodiram os estudos da língua falada no país, muitas das intuições de Dascal passaram a ser documentadas, naqueles momentos em que você, por assim dizer, se afasta de um ato de fala em curso, e passa a falar consigo mesmo, preparando-se para os próximos movimentos verbais. Um exemplo: alguém te pergunta algo, você começa a responder, e diz, por exemplo: “Bom... com respeito a isso... bom... não... acho que é o seguinte...”. O que você negou, se em realidade ainda não tinha dito nada? Negou um pensamento ainda não expresso, negou uma parte do seu diálogo interno.

Outra área de estudos que focaliza em parte esses fenômenos é a Lingüística Cognitiva. Entre muitas outras coisas, esse setor das pesquisas se pergunta como é que nós criamos os sentidos, os significados, as significações? Esse modelo tenta associar a língua com o pensamento, e o pensamento com o corpo humano, de um modo mais forte do que aconteceu em épocas passadas.

As descobertas da Psicopragmática e da Linguística Cognitiva têm interesse também para explicar como as línguas mudam com o tempo. Em outro projeto, que lancei em 1995, temos estudado a história do português paulista. Digo “temos”, por que já somos 40 pesquisadores, recrutados na USP, na Unicamp e na Unesp. Queremos basicamente fazer uma espécie de “NURC diacrônico”, de “história dos processos encontrados na oralidade”. Muito do que acontece com a mudança histórica tem a ver com um conjunto de expressões lingüísticas que estão associadas a determinada articulação mental. Se essa articulação mental muda, a língua muda. É provável que as mudanças linguísticas constatadas até aqui se limitem a retratar uma sorte de “fantasma da realidade linguística”, ou seja, apenas o que foi registrado nos documentos. Não se postula o que terá havido na mentalidade das comunidades para que elas tivessem mudado a língua da forma como mudaram. Esse é hoje o grande desafio.

JU – Isso ocorre em todas as modalidades da língua falada?
Castilho – Sim, em qualquer uma delas, seja na fala culta, seja na fala popular. As estratégias da oralidade igualam os falantes. Na oralidade, o comportamento lingüístico do sujeito mais sofisticado, praticante do padrão culto, é absolutamente igual ao comportamento do analfabeto. O certo é que nas primeiras descrições da língua falada era um tal de cair do cavalo! Pois as pesquisas lingüísticas sempre estiveram ancoradas na língua escrita. Encarar a língua falada exigiu uma refundação do modo de pesquisar, e daí resultou um novo conhecimento do que é uma língua natural. A língua falada não é apenas uma dada manifestação da língua. Ela é “a” língua. Além disso, é preciso lembrar que muitos povos sequer dominam a escrita. Nem por isso eles deixaram de ter uma língua.

JU – Seria o caso dos índios brasileiros?
Castilho – Exatamente, eles não escrevem, assim como muitos povos da África. Mas suas execuções lingüísticas são altamente reveladoras de como o ser humano criou e desenvolveu esse atributo. A oralidade revela como se dá o processamento verbal. Já a língua escrita representa mais um conjunto de produtos, enquanto a língua falada enfeixa ao mesmo tempo a produção e o produto.

JU – Qual é o impacto disso na Lingüística?
Castilho – As descobertas da oralidade revolucionaram a Lingüística, embora nem todo mundo tenha percebido isso. Hoje, o estudo do processamento na criação lingüística é mais forte do que o estudo do produto. Dicionários e gramáticas tratam de produtos cujo processo não são revelados. Uma gramática como essa que organizamos vira o jogo, trata do processo e do produto, e nisto reside seu grande diferencial, que já começa a ser notado em alguns ambientes. Mas essa gramática trará também uma intervenção direta no ensino. Por que as crianças reclamam que não aprendem gramática? Porque a gramática que se ensina na escola é uma gramática de produtos. Ou seja, você vai focalizar o resultado de uma coisa que não sabe exatamente o que é, nem convida o aluno a descobrir o que seja.

Sem contar aquele lance já mencionado da importação sistemática de modelos por parte de linguistas brasileiros, quando se propunham a escolher seu campo de atuação. 

JU – Como o senhor analisa a penetração cada vez maior da internet? Qual o seu impacto nas coisas referentes à língua, ao surgimento de novas terminologias e à participação interativa de crianças e de jovens?
Castilho – A internet – e conseqüentemente o blog – conseguiu uma coisa que, apesar de todos os esforços dos professores de português, ainda não tinha acontecido: fazer a criançada escrever. Isso é altamente positivo. Claro que a internet vai deixar uma marca, como ocorreu com todas as mídias que vieram antes. Quanto se inventou a imprensa, por exemplo, houve uma alteração das línguas, até pelo fato de explodir a difusão de textos escritos. Cada vez que um novo meio tecnológico é desenvolvido, a língua sofre uma alteração. Isso é sempre positivo, pois ela está saindo do seu lugar, está operando dinamicamente – não está parada no tempo.

Acho incrível o fato de as crianças estarem escrevendo tanto, agora. Espero que os professores de português aproveitem isso na sala de aula. Entretanto, acho também que esse inesperado fervor redatorial derive do fato de que os jovens não estão escrevendo para seu professor... Os leitores dos blogs não são seus tutores, não estão lá para te censurar. Fica a pergunta: por que a criança fala tanto e escreve tão pouco? A internet quebrou uma resistência à produção do texto por parte das crianças. 

JU – Correntes de lingüistas e de gramáticos vêem a língua como instrumento de dominação e, não raro, de opressão. O senhor concorda com essa visão?
Castilho – Não há dúvida de que a língua pode ser usada como instrumento de dominação. Todos os impérios, por exemplo, tratam logo de ensinar sua língua aos povos conquistados. Agora, a questão da opressão lingüística pode ser focalizada também de outro ângulo, que é quando a gente desperdiça uma oportunidade tão boa como a de levar os alunos a raciocinar através do ensino da língua portuguesa.

A língua é o resultado mais complexo do espírito humano. Basta pensar um pouco: as línguas têm um mínimo de 12 e um máximo de 24 sons. Como é que, com uma matéria tão pobre, se construíram milhares de línguas? São faladas hoje mais de seis mil línguas, e olha que não estou colocando na conta aquelas que morreram pelo caminho. É um milagre do espírito humano! Se, na escola, os alunos desenvolvessem um raciocínio sobre isso, seria eliminado completamente o lado opressivo do ensino.

JU – Do que se constitui esse lado?
Castilho – Primeiro, porque são dadas respostas a perguntas que não foram feitas. Segundo, porque parece que as matérias escolares são uma coisa pronta que não pode ser mexida. Terceiro, porque a escola acha que o aluno não sabe. Isso é verdadeiro no caso das ciências, não no caso da língua portuguesa. Como ele não sabe se já chega à escola falando? Ele tem um conhecimento que ele desenvolveu quando era criança, quando começou a falar português. Sua cabeça deu mil voltas, não é fácil dominar uma língua, trata-se de uma fase crucial na vida das pessoas. Tanto assim é que uma criança com um pequeno problema neurológico não vai aprender como os outros. Ela tem que estar com o cérebro intacto para dar conta do volume de regras a ser depreendido, ouvindo a fala do pai e da mãe.  

JU – Como o senhor vê a evolução do português falado no Brasil?
Castilho – Há várias posições sobre isso. Uns dizem que a partir do século 19 começou a ser construída uma gramática do português brasileiro, que dizer, uma nova língua, distinta do português europeu. Mas se analisa o português medieval, como fez a minha mulher [Célia Maria Moraes de Castilho] em sua tese de doutorado, descobre-se que aquilo que se explicava como um abrasileiramento do português, na verdade já se encontrava lá, sobretudo nos documentos do século XV. Ou seja, esse português veio para o Brasil e foi preservado. Nós estamos fazendo mudanças gramaticais a partir dessa base. Já Portugal, a partir do século XVIII, imprimiu um novo rumo à língua, por isso que muito do que aqui sobreviveu, não existe mais lá. Eles é que estão diferentes, não nós.

JU – Que tipo de mudança ocorreu?
Castilho – Muitas coisas acabaram mudando. Um exemplo foi o sistema fonológico, que teve canceladas as vogais átonas. Quando você ouve um português falar, quase que se ouvem apenas as consoantes... Da primeira vez que fui lá, em 1963, para cá, mudou muita coisa. Como eles têm esse negócio de jogar fora as vogais átonas, todo o esquema silábico muda. Se isso muda, a morfologia da palavra também muda.

JU – A língua fica pobre com isso?
Castilho – Não se trata de empobrecimento, é apenas uma mudança. Nenhuma língua é pobre. Quando se imagina que as línguas são conjuntos de sons que transmitem uma idéia, enquanto esse mecanismo funcionar a língua continuará a ser um milagre de uma riqueza fantástica.

JU – Nosso repertório é mais variado?
Castilho – Nosso repertório é apenas diferente. No caso de São Paulo, por exemplo, ainda não avaliamos direito o fato de que no comecinho da cidade conviviam espanhóis e portugueses, tanto em São Vicente quanto em São Paulo. De São Vicente, eles subiram pelo caminho dos índios e vieram para o planalto. A língua portuguesa popular que saiu das caravelas, saiu junto com o espanhol, mesmo que tivessem comprado seus bilhetes em companhias diferentes... Eles se cruzaram em São Vicente e depois em São Paulo. Pode ser, portanto, que o português de São Paulo tenha resultado de muito contato lingüístico ao castelhano. Sem pensar no peso dos mamelucos.
É preciso lembrar também que, de 1580 a 1640, a Coroa de Portugal se uniu à da Espanha. Não havia então mais império espanhol ou português. Era um império só, o que facilitou os contactos lingüísticos. É capaz que esses fatores tenham acelerado as mudanças do português popular europeu. Pode ser que essa seja uma das bases do falar caipira.     

JU – Qual foi a influência do português de São Paulo sobre as outras regiões do país?
Castilho – O português paulista espalhou-se pelo Brasil. Se você olhar mapas que retratem os movimentos das bandeiras, das entradas e dos tropeiros, verá que os paulistas tomaram várias direções, para Minas e Goiás, para o Mato Grosso, para os estados do sul. Tudo isso integrava a Capitania de São Paulo. Na direção do Vale do Paraíba, eles levaram o português paulista até Macaé, no estado do Rio de Janeiro. Era paulista a língua que se falava no Rio de Janeiro. Isso mudou em 1806, quando a população do Rio era de 14 mil habitantes e dom João VI chegou com sua Corte, cerca de 16 mil portugueses. E não eram portugueses quaisquer. Eram portugueses da Corte. Seu prestígio fez que imediatamente a língua local fosse alterada. E os cariocas começaram a chiar, como os portugueses de então. O português paulista do século XVI precisa ser estudado, porque ele foi levado para quase todo o país, com exceção do Nordeste e do Norte.

JU – Como o senhor classificaria a literatura no contexto dessa dicotomia entre língua escrita e falada?
Castilho – A língua escrita literária é a realização máxima dessa modalidade. A língua literária é muito densa, e nela se diz muito com poucas expressões. Propriedades linguísticas básicas são exploradas ali em grau máximo. Como disse Umberto Eco, a obra literária é uma obra aberta. Nela, os signos não são descodificáveis univocamente, e o leitor é convocado a fazer muitas leituras do mesmo texto. Deve ser por isso que Oswald de Andrade dizia que ele não era um, era 300... A literatura permite múltiplas interpretações, confluindo escritor e leitor numa mesma entidade. Então a fatura de um texto com tal grau de poder – de dizer muitas coisas para muitas pessoas, independentemente do escritor ter pensado ou não naquilo – mostra que esse registro da língua escrita representa o uso linguístico na potência máxima.

 

Quem é Ataliba Castilho

Ataliba Teixeira de Castilho foi professor titular da USP (1996-2005), da Faculdade de Filosofia de Ciências e Letras de Marília (1961-1975), atualmente unidade da Unesp, e do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp (1975-1991). Na Universidade, organizou o Sistema de Bibliotecas e o Sistema de Arquivos. Foi professor visitante da Universidade do Texas. Presidiu a Área de Letras e Lingüística da Capes (1987-1990), a Associação Brasileira de Lingüística (1983-1985), a Associação de Lingüística e Filologia da América Latina (1999-2005) e foi membro do Comitê de Assessores em Letras e Lingüística do CNPq (1991-1993. Participou de programas de pós-doutoramento em universidades da Itália, Portugal, EUA e França. Coordenou os seguintes projetos de pesquisa: Projeto de Estudo da Norma Urbana Lingüística Culta da Cidade de São Paulo [Projeto NURC, juntamente com Isaac Nicolau Salum (1969-1980) e Dino Preti (desde 1981)]; e o Projeto de Gramática do Português Falado [PGPF]. Atualmente coordena o Projeto de História do Português Brasileiro de São Paulo. É autor de 19 livros, entre os quais Subsídios à Proposta Curricular de Língua Portuguesa para o 2. Grau (org); A Linguagem Falada Culta na Cidade de São Paulo (org., com Dino Preti); A Linguagem Falada Culta na Cidade de São Paulo; Português Culto Falado no Brasil (org.); Gramática do Português Falado (org.); e Para a História do Português Brasileiro (org.).

Gramática do Português Culto
Falado no Brasil
Vol. I : Construção
do texto falado
Organização:
Ataliba Teixeira
de Castilho,
Clélia Cândida Abreu
Spinardi Jubran e
Ingedore Grunfeld
Villaça Koch
Páginas: 552
Preço: R$ 58,00
Editora da Unicamp


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