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Docentes identificam a origem da crise política e projetam suas conseqüências

Das oligarquias ao ‘mensalão’


ÁLVARO KASSAB


José Dirceu, um dia antes de deixar o cargo de ministro-chefe da Casa Civil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro do Planejamento, Antonio Palocci Filho: para analistas, os últimos episódios deixaram o governo fragilizado (Foto:Joedson Alves/Agência Estado/AE)A crise política que provocou a instalação da CPI Mista dos Correios e a queda do ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, ambas ocorridas na semana passada, é analisada nesta e nas próximas duas páginas por três professores da Unicamp – o filósofo Roberto Romano e os economistas Márcio Percival Alves Pinto e Márcio Pochmann.

O exercício analítico dos entrevistados transcende o factual, como convém quando está em questão o campo minado – e volátil – da cena política brasileira. Os três docentes localizam no passado e nas distorções de natureza institucional a origem de boa parte dos problemas enfrentados pelo país.

“Desde o século 19 os municípios brasileiros vivem longe do poder central e muito perto da bancarrota”, afirma Romano, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Ou seja, a superconcentração do poder nacional foi herdada e mantida pela República, a partir do Império, mantendo-se até hoje.

“Se olharmos a Independência, a Abolição da Escravatura e a própria transição da ditadura militar para a democracia, constatamos que praticamente não houve rupturas”, lembra Pochmann, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) do Instituto de Economia da Unicamp.

Para Márcio Percival Alves Pinto, diretor do Instituto de Economia, “a adoção do regime de política macroeconômica de baixo crescimento tem sido eficiente com relação aos seus objetivos, apesar de provocar graves problemas sociais e de perpetuar uma política econômica perversa que, em que pesem as mudanças de governos, é a mesma desde meados dos anos 90”.

O olhar sobre o passado, porém, está longe de ser um endosso ao governo Lula, que foi eleito ancorado em promessas de mudança. Entre aquelas não-cumpridas e exemplos de inércia relacionados pelos analistas, destacam-se: política econômica equivocada, falta de projetos na área social, o esfacelamento da base política e as alianças suspeitas – e conseqüentemente as sucessivas trombadas com o chamado “patrimônio ético” do Partido dos Trabalhadores. Para eles, o estrago na imagem de Lula e do PT é fato consumado. E o que resta? Pouco tempo para torná-lo reversível.

Colaboraram: Clayton Levy e Eustáquio Gomes

Márcio Percival Alves Pinto: "O que poderia salvar o governo é sua própria capacidade de dar respostas e sair do 'corner' político" (Fotos: Antoninho Perri/Neldo Cantanti)Jornal da Unicamp - Apesar da crise institucional instalada, o governo e as instâncias reguladoras da economia do Terceiro Mundo seguem afirmando que a economia brasileira vai bem. Até que ponto essas duas variáveis (a política e a econômica) podem se desenrolar em separado? A sociedade brasileira amadureceu a ponto de separá-las?

Márcio Percival Alves Pinto – É claro que existe uma relação entre a sociedade e a economia. A nossa tradição analítica está apoiada na escola da economia política, na qual o papel da história e dos agentes sociais são fundamentais na explicação do econômico. No entanto é importante fazer as mediações entre as diferentes categorias, pois ambas têm lógica e dinâmicas diferentes. É verdade que a sociedade amadureceu mas isto não tem nada a ver com separar estas duas instâncias. Ao observar os acontecimentos políticos atuais, vemos de certa maneira que sua influência sobre a economia é relativa. Eu diria até que, dada a vulnerabilidade externa da economia, se algum problema ocorrer, ele virá pelo lado externo. De certa maneira, o governo, as elites internas e a mídia blindaram de uma tal forma a política econômica que será muito difícil contaminar a economia.

Este regime de política macroeconômica de baixo crescimento que foi adotado tem sido eficiente com relação aos seus objetivos, apesar de provocar graves problemas sociais. Desde meados dos anos 90, a política econômica continuou apesar das mudanças de governos. Isto aconteceu não só no Brasil, mas de forma sistemática em vários países latino-americanos. Neste sentido é mais difícil que os desajustes na área política contaminem diretamente a economia. A mídia é clara: pode demitir todos os ministros, menos Palocci.

Acho que o que está acontecendo na área política não vai afetar a taxa de crescimento da economia brasileira. A economia não vai deixar de crescer por conta destas injunções políticas. Ela já está deixando de crescer por conta deste modelo que prioriza o “ajuste fiscal” e o combate à inflação. O crescimento tornou-se uma variável de ajuste – papel secundário. Este fato é muito importante e poucos perceberam o que está ocorrendo.

Na verdade estas prioridades deste regime macroeconômico de baixo crescimento estão ligadas tanto às necessidades de manutenção e reprodução da riqueza financeira como à necessidade de honrar o pagamento das dívidas internas e externas. Este é o sentido da busca exacerbada pela credibilidade e pela afirmação que todos os contratos serão pagos. A desaceleração do crescimento é fruto do próprio modelo e não de possíveis injunções políticas atuais.

O que sobra como variável de ajuste? O crescimento, o emprego, o investimento, o aumento da renda. Portanto, nesse regime que hoje está colocado, crescer ou não crescer não é uma variável determinante – ela passa a ser resultado de outras coisas.

Depois de tudo o que aconteceu, por exemplo, o dólar continua em nível baixo, e a bolsa está subindo... Se ela variar, será por conta de uma lógica especulativa.

Márcio Pochmann: "Entramos num padrão de financiamento que está hoje muito vinculado à dinâmica econômica, à dinâmica do mercado"Márcio Pochmann – O fato concreto é que a política econômica vem sendo orientada numa perspectiva de não priorizar a elevação do bem-estar da população como um todo. Estamos verificando, na verdade, um tensionamento do regime democrático há mais tempo. Muitos procuram identificar, no mandato do governo Lula, as razões do que está ocorrendo hoje. Mas nós temos aí raízes de ordem estrutural. Em primeiro lugar, pelo fato de nós termos feito uma transição democrática que representou a conciliação das elites, que impediram, em 1984, a plena redemocratização por meio da eleição direta. Isto, inegavelmente, naquele momento de grande mobilização social, viria acompanhado de um aprofundamento da democracia por intermédio de uma reforma política abrangente. Entretanto, nós tivemos uma transição democrática que, no fundo, não abriu essas perspectiva; a reforma política não ocorreu.

A tradição brasileira inclusive tem sido justamente, nos momentos agudos e de grandes dificuldades, de as coisas serem resolvidas por cima, entre a elite. Se olharmos o que foram a Independência, a Abolição da Escravatura e a própria transição da ditadura militar para a democracia, constatamos que praticamente não houve rupturas. Atualmente, vivemos o período mais longo de democracia continuada no país, apesar de serem apenas 20 anos (1985/2005) num país que não tem cultura democrática.

A política faz a coordenação – e também o apoio – da política econômica. Com o possível esfacelamento da base política do governo no Legislativo, deve ser contaminada a condução da política econômica, o que poderá produzir, por conseqüência, maior ortodoxia por parte da equipe econômica. Não identifico, assim, uma separação nítida entre política e economia. Quem tem feito essa separação tem sido justamente aqueles que defendem a política econômica atual. Eles dizem que “uma coisa é a crise política e outra coisa é a política econômica, que está tudo indo muito bem, o ministro é excelente etc”. Entendo esse tipo de argumento insuficiente, porque de uma certa maneira a base política no poder legislativo também é importante já que, como ocorre agora, deputados estão sendo questionados sobre recebimento de mesada. No meu modo de ver há um imbricamento das duas situações de forma insustentável, inclusive no médio e no longo prazo.

Roberto Romano: "O risco é não termos ninguém para garantir a sucessão. Somos muito pobres em estadistas, ricos em vivandeiras políticas"Roberto Romano – Tratando-se de ordem institucional, cedo ou tarde a economia recebe os impactos das urgências políticas. Nenhuma sociedade “amadurece” ao ponto de separar o  político e o econômico. Se  fraturas ocorrem num ou noutro desses aspectos que integram a mesma vida social, oscila o sistema no seu todo, evidenciam-se descontinuidades etc. País instável politicamente e onde as regras jurídicas, fiscais, etc. deixam de ostentar ampla legitimidade, dificilmente será próspero em longo termo. Se a crise política torna-se aguda, os capitais especulativos temem e buscam outros países (a famosa “volatilidade”) e os capitais dirigidos à integração mais profunda na economia não se apresentam, porque seus controladores percebem que os investimentos correrão riscos devidos à insegurança das regras e sobre quem asseguraria a aplicação das mesmas regras.  

Países avançados em termos econômicos e políticos, como os EUA e os que integram a oscilante União Européia, mostram que os fatos de uma ordem repercutem na outra, e vice-versa. As sucessivas administrações norte-americanas vivem o desafio perene de harmonizar o desenvolvimento econômico – sobretudo no relativo aos resultantes emprego ou desemprego – e as agendas políticas. Elementos econômicos ajudam a entravar agendas políticas. O resultado negativo do referendo francês e holandês, para a aprovação da Carta Européia, mostra a interdependência dos segmentos políticos e econômicos. No Brasil não é diferente e, na verdade, é pior: dado que a corrupção manifesta um desequilíbrio na estrutura federativa e nas relações permanentes entre os poderes, a política econômica será refém das crises políticas que, muito rápido, seguem a via do colapso da autoridade pública.

JU - Até que ponto o desempenho econômico pode vir a salvar o governo do terremoto político que se insinuou no início de 2004, com o caso Waldomiro, e se agrava em 2005, com a CPI dos Correios e o episódio do “mensalão”? Quais são as perspectivas de que o governo suplante a crise pela via econômica?

Márcio Percival Alves Pinto – É muito difícil pensar que esta confusão será superada por meio de expedientes econômicos. O que poderia salvar o governo é sua própria capacidade de dar respostas e sair do “corner” político. E isto está difícil. O governo Lula terá que se ver livre das forças conservadoras que o transformaram em refém, mesmo no governo de coalizão. Desde o começo estava claro que isto iria acontecer.

A economia já vinha desacelerando antes de acontecer essa crise. Os investimentos vêm caindo desde o final do ano passado; o PIB do primeiro trimestre praticamente estancou, não cresceu praticamente nada. O mesmo ocorre com a renda interna e com os gastos do governo.

Márcio Pochmann – Essa crise que é apresentada como sendo de natureza política é resultado muito mais de um continuísmo do que de uma ruptura. A política econômica também é, de certa forma, uma marca do continuísmo. Eu estava trabalhando com a hipótese de o governo Lula pelo menos procurar construir um ciclo político a partir do desempenho da economia nacional. Nós tivemos no primeiro ano, em 2003, um desempenho muito desfavorável da economia, 0,5% de expansão, numa situação difícil de enfrentamento da inflação, e tivemos um segundo ano [2004] relativamente positivo no que diz respeito à expansão da atividade econômica e de controle da inflação. Essa expansão da atividade econômica não se deu sustentada por aumento dos investimentos, o que nos permite observar que dificilmente haveria fôlego para manter o crescimento continuado sem a ampliação dos investimentos.

Aliás, grande parte dos investimentos, sobretudo no setor público, segue constrangida pela política orçamentária de geração de superávit fiscal. Por conta disso, há uma série de medidas, entre elas a elevação dos juros reais desde o segundo semestre do ano passado, objetivando a desaceleração da economia em 2005. Penso que o presidente e o seu ministro da Fazenda procuravam acertar uma expansão econômica mais tímida em 2005 e assim, ter mais fôlego para a expansão em pleno ano eleitoral de 2006. Isso se chama ciclo político da economia, ou seja, você força um giro na economia tentando produzir, num ano eleitoral, um cenário econômico mais favorável, tendo que passar, no entanto, por uma desaceleração em 2005. Com a atual crise política, o ciclo da economia pode ficar comprometido, assim como o próprio resultado eleitoral de 2006.

Isso porque, de certa maneira, as alianças políticas que estariam em jogo para o ano que vem, visando a reeleição do presidente Lula, tendem a se contaminar com o ambiente mais geral de descrédito do governo.

Roberto Romano – Digamos as coisas com a metáfora mais antiga da cultura ocidental para discutir o Estado. Não sou bom em figuras retóricas, o presidente da República é mais competente do que eu em semelhante arte. A política econômica é a âncora que permitiu alguma segurança ao governo. Mas aquele mecanismo entra no funcionamento total do navio, é eficaz se a embarcação não possui fraturas no casco, se os motores operam corretamente, se maremotos não surgirem. E, sobretudo, se o capitão for prudente o bastante para manipular os lastros, equilibrar os pesos. No caso brasileiro, a política social deveria ser equilibrada com a econômica e vice-versa. Mas a política social do governo mostra-se incompetente, movida apenas por slogans e propaganda, donde o desequilíbrio do navio. Nessas condições, a âncora pode ser um bom instrumento, insuficiente para salvar o navio.

JU - Na sua avaliação, qual a real dimensão da crise política enfrentada pelo governo e que impacto pode vir a ter no grau de confiança popular? Quais os cenários possíveis no que diz respeito ao comportamento do eleitorado nas próximas eleições presidenciais?

Márcio Percival Alves Pinto – O governo Fernando Henrique começou com a crise do Sivam, depois se seguiram outras, entre as quais as denúncias de compra de votos, a escuta telefônica, além das suspeitas que recaíram sobre os processos de algumas privatizações. Sem dizer que, em 1998, a economia brasileira estava literalmente quebrada, tanto que o FMI teve de entrar com 40 bilhões de dólares. E, no entanto, Fernando Henrique foi reeleito no primeiro turno. Precisamos, na nossa análise, fugir do imediatismo. Seguramente, ela vai ter um grau de interferência na confiança popular muito grande, mas ninguém sabe quanto.

Márcio Pochmann – Para o Brasil, que tem 505 anos de história, mas menos de 50 anos de regime democrático, a situação atual leva alguns a pensar que a democracia estaria em xeque. Não acredito que isso seja uma verdade. O Brasil tem dado demonstrações, nesses últimos 20 anos, de ter capacidade de conviver com crises até mais amplas. A minha expectativa é de que o que estamos vivendo hoje possa resultar em algo superior, ou seja, uma profunda reforma política com alteração da política econômica, o que é algo fundamental para completar a transição democrática que segue estagnada desde a conciliação das elites em 1984. É, de uma certa maneira, um aprendizado com o qual as democracias precisam aprender a conviver.
O problema é que a política foi sendo transformada quase que num mercado. Nesse sentido há sinais de uma quase ditadura do mercado contaminando a base dos partidos políticos. Antes, o princípio orientador dos partidos políticos era basicamente a formação de comitês e de apoio popular. Mas isso foi se perdendo. Entramos num padrão de financiamento que está hoje muito vinculado à dinâmica econômica, à dinâmica do mercado. Agora, na minha opinião, mesmo uma reforma política não é garantidora de uma democracia plena justamente pelo pressuposto de que o êxito da democracia está condicionado a resultados econômicos e sociais que permitam alterar, ou pelo menos melhorar, as condições de vida dos segmentos populacionais mais simples. Estamos há quase três décadas sem crescimento econômico sustentado e amargando uma grave crise social. Temos problemas sérios de emprego, violência e de exclusão social, todos até agora sem resolução.

Roberto Romano – A crise evidencia o frankenstein jurídico e institucional do Estado brasileiro. A federação dos Estados é  fictícia e os municípios não possuem autonomia efetiva, sobretudo no relativo ao retorno dos impostos. Desde o século 19 (a super-concentração do poder nacional foi herdada e mantida pela República, a partir do Império) os municípios brasileiros vivem longe do poder central e muito perto da bancarrota. Como não recebem a sua parte dos impostos em tempo certo e com justiça, os prefeitos e câmaras de vereadores dependem, para obter recursos, da intermediação dos deputados federais e dos senadores. Essa prática que se tornou habitual também “educou” os eleitorados regionais e municipais, que enxergam com bons olhos apenas os parlamentares que trazem recursos e obras para as cidades. O custo desse “resgate” das verbas (especialmente no caso do Orçamento) surge no famoso “é dando que se recebe” com as alianças entre as oligarquias (os parlamentares unem-se a setores da sociedade civil e dos mercados regionais para conseguir mais força) e os governos. Se não forem modificadas essas práticas, pode-se fazer tudo, mas uma das causas maiores da corrupção estará operando.
O desfecho da crise atual depende da prudência do governo e da oposição. Se as CPIs seguirem com lisura o contorno dos fatos e o poder executivo não tentar eludir os seus pressupostos e resultados, as tempestades serão vencidas, pelo menos por algum tempo. Se o governo insistir em abafar a busca dos fatos e se a oposição titubear, teremos novos escândalos e mais descrença para 2006. O risco é não termos ninguém, da oposição ou do governo, para garantir a sucessão presidencial. Somos muito pobres em estadistas, ricos em vivandeiras políticas. A fé pública piora entre nós. Combater a descrença da cidadania exige apurações isentas e responsáveis, sem truques ou propaganda enganosa.

 

JU - O presidente Lula assumiu ancorado em um discurso cujo eixo era a mudança e a ética, esta última propalada pelo PT como sendo um emblema do partido ao longo de sua história. Se o governo e seu partido majoritário efetivamente perderem esse patrimônio, o que pode acontecer com a parte da sociedade que acreditou na possibilidade de mudança? Como a história se comporta em situações como esta?

Márcio Percival Alves Pinto – O governo Lula foi eleito para promover mudanças, mas na verdade acabou adotando uma agenda que não era dele. Tratava-se de uma agenda do governo anterior, que estava colocada pelo Banco Mundial para vários países latino-americanos. Eram as chamadas reformas estruturais de primeira e segunda geração: reforma da previdência, reforma sindical, reforma trabalhista, reforma tributária, autonomia ao Banco Central, lei das falências, políticas sociais focalizadas e até da reforma universitária. Esse conjunto de reformas, de primeira e segunda geração, já constava acordo assinado entre o Brasil e o FMI em 1998.
A agenda do Banco Mundial, portanto, entra no Brasil e em outros países da periferia em 1998. Quando Lula foi eleito em 2002, ele passa a incorporar essa agenda, talvez para sinalizar à comunidade financeira internacional que o seu governo poderia ter credibilidade. Esta mudança da agenda terá provavelmente um custo alto para o governo Lula. Isto não foi isolado. Se tomarmos como exemplos outros países latino-americanos e alguns europeus, observamos que muitos deles abandonaram sua agenda socialista ou social democrata e adotaram uma pauta mais conservadora.
Isto já está tendo resultado em vários países – tanto na periferia quanto na Europa, a impaciência da população vem se manifestando de forma clara. O PSDB sentiu isso em 2002. O próximo ano será decisivo para o destino da América Latina na medida que ocorrerão eleições nos principais países. E com certeza os descontentamentos com esta agenda conservadora se manifestarão.
Aqui no Brasil além dos problemas relacionados a esta agenda temos também a possibilidade de continuação dos fatos que estão acontecendo no Congresso com respeito à ética. A situação do governo Lula complicou muito. Vai depender, daqui para frente, de como ele vai se posicionar.
Não podemos, porém, ter ilusão. Há uma blindagem promovida pela mídia e pela elite sobre a política econômica e ao mesmo tempo uma tentativa de desconstrução do prestígio de Lula. Neste sentido ele foi colocado numa posição extremamente defensiva. Daqui para o final do mandato vamos ver um governo fragilizado, a menos que mude sua estratégia política e seu prestígio continue alto nos piscinões eleitorais.

Márcio Pochmann – Precisamos levar em consideração em que medida o que está sendo denunciado é passível, de fato, de ser comprovado. Se formos observar os períodos democráticos, em várias oportunidades, denúncias realizadas eram inconsistentes com a verdade. Basta ver a história do governo Getúlio Vargas, que resultou inclusive no seu próprio suicídio. Tivemos situações similares no governo Juscelino Kubitschek. O fato de haver denúncias não é necessariamente verdade, é preciso apurar. Agora, é claro que o PT, independente dos resultados da apuração, vai sair de certa maneira com sua credibilidade comprometida. Isso terá repercussões, mas nada que impeça a formação de um novo ciclo de políticos dentro do PT. Não acho que seja algo suficiente para inviabilizá-lo enquanto partido, considerando que a democracia se mantém no país. Democracia também significa alternância de poder.

Roberto Romano – Não existe, em termos políticos, “patrimônio ético” que não seja dilapidado ou que não seja passível de se perder. O passado de uma agremiação jamais garante a sua lisura no presente e no futuro.  A cada novo dia é preciso mostrar, por atos e palavras, que existe um compromisso efetivo do partido com a ética. A única via para o PT recuperar a credibilidade antes usufruída por ele é agir no governo como suas lideranças e militantes agiam quando eram oposição. Se antes a transparência devia ser a maior possível, o mesmo deve ocorrer agora. Se as CPIs eram importantes, também agora. Se antes alianças inseguras do ponto de vista ético eram inaceitáveis, também agora.

 

JU - Houve um momento, nos últimos dois anos e meio, em que se dizia que os meios de informação eram complacentes com o governo. Na semana que passou, todas as capas de revistas pareciam anunciar sua débâcle. Afinal, o governo foi abandonado?

Márcio Percival Alves Pinto – Acho que a mídia nunca apoiou efetivamente – e jamais apoiará – o governo. Lula definitivamente não foi e não será o candidato das elites. Ele foi taticamente apoiado por eles num certo contexto porque não tinha jeito. Em 2002, na eleição, quem falava para a população era o Lula, ele jamais será aceito no clube das elites. Seu erro foi acreditar que isto seria possível.

Márcio Pochmann – O governo, na verdade, não teve apoio pleno da mídia. Terminou sendo suportado, sobretudo pela política econômica de continuidade. Há, na realidade, um certo preconceito que vem desde a formação do próprio PT. A mídia acabou suportando o governo Lula porque ele não se caracterizou como governo de rompimento. De certa maneira, o que nós estamos vendo também é resultado das alianças alargadas que o governo optou por fazer, inclusive para garantir uma parte de sustentação política numa base podre. Por isso, terminou por perder parcela do apoio que tinha dos movimentos sociais, que sempre foram uma marca do PT. O que nós estamos vendo agora é que justamente esse denuncismo, até o momento sem comprovação plena, e que termina aflorando com críticas mais virulentas canalizadas pelos meios de comunicação. A impressão que eu tenho é que a mídia nunca apoiou o PT. Fernando Henrique, por exemplo, tinha uma base ampla de apoio na mídia. Mas isso não foi suficiente para lhe garantir sustentação popular prolongada.

Roberto Romano – Não. Ele continua a ser investigado pela imprensa. E não cabe também a hipótese de “conspiração das elites”. A Febraban está satisfeita com o governo, idem o agronegócio. Os industriais e as lideranças do comércio criticam as taxas de juros mas não desejam a queda do presidente ou mesmo do ministério. A imprensa  cumpre a função de divulgar fatos. O que ocorre é uma monumental ausência  de respeito pela inteligência mediana dos cidadãos, por parte do governo. Afirmar que elementos como o “mensalão” traduzem mentiras absolutas ou tentativas golpistas é mostrar  desrespeito ao juízo da cidadania. Se o governo e seus aliados assumirem um compromisso maior com as investigações e, como disse o presidente, “cortar na própria carne”, a crise será vencida de modo razoável, até a próxima crise...

JU - Nesse contexto, paira alguma ameaça sobre a governabilidade, como às vezes insinua o governo? Que cenário pode ser projetado para o futuro?

Márcio Percival Alves Pinto – O determinante dessa situação é a falta de projeto do governo. Não existe um projeto para a área econômica social. Aí fica difícil compor a base de apoio. Para que ter maioria no Congresso se não há o que ser aprovado? Vai passar o quê? Uma nova reforma da Previdência? As reformas trabalhista e sindical saíram de pauta; a reforma tributária está sendo toda fatiada e está passando aos poucos. Qual o grande projeto a ser discutido neste ano? Não existe. Precisaria ser retomada uma nova agenda de desenvolvimento e enfrentar com coragem seus desafios.

Márcio Pochmann – Nós podemos ter um governo basicamente sem capacidade de fazer um projeto mais ousado nesse final de governo, que seria uma situação de profunda perda de credibilidade do presidente Lula. Talvez seja a possibilidade mais real. Mas nós podemos ter também uma mudança de percurso. Ao observar o esvaziamento de sua base de sustentação no Legislativo, Lula pode optar por uma recuperação e pela valorização da sustentação do ponto de vista popular. Gosto muito da experiência do governo JK. Quando foi eleito, ele não tinha maioria no Congresso, tinha já apresentado uma pauta conservadora de estabilidade monetária, além de ter pela frente um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Entretanto, Juscelino não só praticamente legitimou tudo isso como construiu sua maioria política em torno de um projeto nacional – crescimento, 50 anos em 5 etc. Ou seja, ele construiu sua base política em cima do apoio popular. A despeito de isso ser mais complicado nos dias de hoje, eu não acredito que o Lula, que é uma grande liderança popular que foi construída em tempos muito mais difíceis ao final do regime militar, termine o seu governo basicamente frustrado e sem a tentativa de ver construída sua base por intermédio do apoio popular. Este poderia ser um segundo cenário, que gostaria que se realizasse.

Roberto Romano – A governabilidade tem como pressuposto a obediência, pela cidadania, das leis elaboradas no Parlamento e destinadas à execução pelo governo. Se os contribuintes não podem confiar na abrangência universal das referidas leis, se paira no ar a suspeita de que os ordenamentos legais respondem a interesses não confessáveis, some a governabilidade. No caso, existe a acusação, bem-fundamentada, de que o partido principal do governo paga parlamentares para aprovar leis, o que é uma fraude contra o voto do eleitor e  possível acobertamento de interesses menores sob a forma legal. O sistema inteiro perde legitimidade, a essencial “accountability” trazida pelas revoluções democráticas da modernidade.
Bismarck dizia que duas coisas o cidadão ignora porque,  caso contrário, jamais aceitaria:  o modo pelo qual são produzidas as salsichas e as leis. Ele usa a figura médica antiga que une o poder político ao “regime”. As leis alimentam o corpo político e devem ser controladas pela higiene pública. Esta última,  em nosso caso, encontra-se na ética e no decoro parlamentar. Bismarck foi um realista contrário à democracia . A seguir o seu exemplo, no entanto, as nossas salsichas e as nossas leis não passariam nunca pelo controle das secretarias de abastecimento. Elas estão com o prazo vencido, apodreceram.

JU - Qual a importância de uma reforma política nesse cenário?

Márcio Percival Alves Pinto – A reforma política deveria ser realizada no começo do governo. Se isto ocorresse, possivelmente nada disto estaria ocorrendo hoje.

Márcio Pochmann – A reforma política era uma das bases necessárias da transição da ditadura para a democracia. Isso não foi feito, vem sendo postergado. Agora, não significa dizer que uma reforma política evite novas crises. Olhando experiências internacionais, de países mais organizados institucionalmente, inclusive no que diz respeito a financiamento de campanha, vemos que muitos deles têm problemas, guardada a devida proporção, como os do Brasil. Acho que a questão mais importante, que deve ser complementar à reforma política, é um novo horizonte para a política econômica. Essa política econômica não abre uma perspectiva de constituição de uma maioria com grande apoio popular. É preciso ter um projeto nacional de desenvolvimento. É preciso ter algo em torno dessa perspectiva de o país voltar a se transformar, além de criar uma nova rota de expansão econômica com a redução da s desigualdades sociais. E a política econômica que nós temos tido ao longo do tempo, que não se altera com o governo Lula, não oferece essa alternativa.

Roberto Romano – A reforma política não pode ser apenas um subterfúgio a mais para escapar das investigações. Duda Mendonça não pode ser usado para eludir os fatos. Reformas como essa, para serem eficazes, precisam de tempo e de competência legítima. Elas são deveres de todos os setores do país, inclusive da universidade e da imprensa.

JU - Faltando pouco mais de um ano para as próximas eleições presidenciais, o senhor acredita que o atual governo terá tempo suficiente para reverter o quadro desfavorável?

Márcio Percival Alves Pinto – Aparentemente, o estrago político sobre o governo foi grande. Porém, não podemos mais nos esquecer que no governo passado tivemos vários escândalos e, no entanto, Fernando Henrique conseguiu manter a governabilidade. O que ajudou muito, entre outras coisas, foi o fato do FHC ter uma agenda autêntica. Uma agenda que tinha a cara do governo e da sua base de apoio. A situação do governo Lula é bem mais grave, não dá para saber o que vai acontecer. Depende de sua capacidade de re-articulação, de recompor o seu discurso, suas alianças, bandeiras e de restabelecer o entusiasmo do seu partido, além é claro de manter o prestígio na sociedade. Estas tarefas não serão fáceis.

Márcio Pochmann – Fatos que vão tensionando e fragilizando o governo federal podem inclusive constrangê-lo e deixá-lo sem maiores realizações. O governo Lula, a despeito das dificuldades, vinha apresentando resultados que apontavam para uma perspectiva de vitória eleitoral. Eu acho que isso fica mais difícil, mas não impossível. É importante chamar a atenção para o fato de o PT, apesar de tudo, ser o partido mais organizado que temos no Brasil. A mídia, por maior que seja a sua ação, não é suficiente no meu modo de ver para constranger totalmente a base de apoio, sobretudo da população mais pobre, que é o que o governo Lula construiu ao longo do tempo. É claro que os formadores de opinião talvez não ofereçam mais a mesma confiança que tinham no passado, mas há ainda um ano pela frente, há muito a se fazer, além de o governo contar com recursos e uma agenda de programas a ser completado.

Roberto Romano – Acredito. A popularidade do presidente ainda é um fato. O governo vai mal na apreciação popular. Mas é possível mudar o cenário sombrio:  sejam afastados os ministros suspeitos de comportamento não-ético e  corrigida a política social. Que também seja reorientado o diálogo entre governo e movimentos da sociedade e  melhor atendidos os industriais e o comércio, no relativo ao desenvolvimento.   Se for atenuado o populismo e se for evitada a propaganda enganosa ao estilo Duda Mendonça e se, melhor ainda, o governo não desrespeitar a inteligência da cidadania, é possível renovar o mandato presidencial. Se ocorrer algo assim, teremos quatro anos para definir as reformas políticas almejadas e o governo prestará  um serviço ético relevante. Caso oposto, assistiremos mais um período de escândalos e agonia que trazem o descrédito para o Estado democrático. Tal é a tragédia sempre em cartaz no teatro Brasil. O respeitável público mostra sinais de cansaço. Cuidem-se os artistas no palco. Na peça política,  as vaias aos canastrões são acompanhadas de algo mais sério do que tomates e gritos.




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