Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 277 - 14 a 27 de fevereiro de 2005
Leia nessa edição
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Ciência nas férias
Sucessão de Brito Cruz
Ciência & cotidiano
Identificação de microtoxina
Matemática que simplifica
Matemática brasileira
Velhice saudável versus
  rejuvenescimento
Europa social
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Teses da semana
Valor nutricional dos cogumelos
Arquitetura goiana
 

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Para Sueli Druck, presidente da Sociedade Brasileira de Matemática, o excelente desempenho da pesquisa não se reflete no ensino da disciplina, sobretudo nas escolas públicas

Matemática brasileira sobe
em ranking, mas ainda precisa aprender a somar competências



MANUEL ALVES FILHO


O Professores de matemática da rede estadual de ensino de Miracatu, interior de SP, aprendem conceitos a partir de figuras geométricas que compõem bonés, em projeto desenvolvido por Otília Paques (Fotos: Antonio Scarpinetti)ano de 2005 começou com uma notícia auspiciosa para a sociedade científica brasileira, mais especificamente para o segmento da matemática. O Brasil foi promovido ao Grupo IV da International Mathematical Union (IMU), entidade que congrega 66 nações e tem por objetivo fomentar a cooperação internacional nesta área do conhecimento. Agora, no ranking da IMU, o país está ao lado de Holanda, Suécia, Suíça, Índia e Espanha no que se refere à qualidade da pesquisa em matemática, ficando atrás apenas de Canadá, China, Estados Unidos, França, Alemanha, Israel, Itália, Japão, Rússia e Inglaterra, que pertencem ao Grupo V. Tal performance, segundo a presidente da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), Suely Druck, pode ser considerada “admirável”, sobretudo quando se leva em conta que a pesquisa em matemática no Brasil é bastante recente, não somando mais do que 50 anos. “Esta promoção reafirma a competência e a dedicação da comunidade matemática brasileira em cumprir a sua missão para com o país. Representa um estímulo importante para que continuemos a avançar cada vez mais”, afirma ela.

Infelizmente, a comemoração não pode ser feita de maneira completa, como reconhece a presidente da SBM. De acordo com ela, o excelente desempenho da pesquisa matemática brasileira não se reflete no ensino da disciplina, principalmente nas séries iniciais e particularmente nas escolas públicas. “Atualmente, pesquisa e ensino em matemática compõem mundos distintos e distanciados. O primeiro cumpre com competência o seu papel de produzir conhecimento e formar recursos humanos para pesquisa. Já o segundo vem cumprindo muito mal o seu papel de transferir conhecimento e formar cidadãos, e ainda se debate com questões primárias e até surrealistas que dizem respeito à sua missão”, queixa-se Suely Druck.

De acordo com ela, esse quadro só poderá ser revertido se o Brasil formular políticas consistentes e perenes voltadas à pesquisa e ao ensino da matemática, a exemplo do que fazem os países do Gruo V da IMU. A presidente da SBM defende a transformação dos bons grupos de pesquisas que atuam nas universidades em centros de excelência, bem como a ampliação do número de doutores, a diversificação das linhas de pesquisas e a maior interação com o setor produtivo. Além disso, prossegue, é essencial a participação dos pesquisadores na definição das diretrizes que orientam o ensino da matemática. “As políticas que têm orientado o ensino da matemática nas últimas décadas vêm sendo formuladas sem o necessário suporte de conteúdo matemático. O afastamento dos pesquisadores das questões de ensino apressou o processo de deterioração do ensino da matemática no país. Esta situação contrasta com a de países que oferecem excelente ensino aos seus jovens, contando para isso com a contribuição de seus pesquisadores na definição de diretrizes ou mesmo atuando em diversos projetos”. Leia, a seguir, a entrevista que Suely Druck concedeu ao Jornal da Unicamp.

Jornal da Unicamp – Qual a importância da inclusão do Brasil no Grupo IV da IMU?
Sueli Druck, presidente da Sociedade Brasileira de Matemática: "Ensino ainda se debate com questões primárias e até surrealistas"

Suely Druck – A partir dos anos 80-90, a pesquisa em matemática no Brasil já desfrutava de excelente reputação internacional. Prova disso tem sido a presença de eminentes matemáticos brasileiros como convidados nos mais destacados congressos internacionais, como membros da Third World Academy, bem como em posições estratégicas na condução da matemática internacional, que é o caso do professor Jacob Palis, do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), que presidiu a IMU de 1999 a 2002. Em nível internacional, a inclusão no grupo IV representa a consolidação desta reputação bem como um reconhecimento importante do progresso que fizemos nesses anos. Estar no Grupo IV nos coloca num time muito seleto e significa que nossas atividades científicas como publicações, congressos, etc, foram consideradas de alto nível. Em termos de América Latina, representa a liderança absoluta da matemática brasileira. Os países latino-americanos mais bem classificados depois do Brasil são Argentina, Chile e México, que estão no Grupo II.

JU – Em âmbito local, quais devem ser os reflexos desse salto no ranking da IMU?

Suely Druck – Em nível nacional, esta promoção reafirma a competência e a dedicação da comunidade matemática brasileira em cumprir a sua missão para com o país. Representa um estímulo importante para que continuemos a avançar cada vez mais. A pesquisa em Matemática no Brasil é bastante recente, aproximadamente 50 anos, e é extremamente admirável que tenhamos chegado a este ponto em tão pouco tempo. A promoção ao grupo IV foi uma conquista de toda a comunidade matemática brasileira e estou certa que será reconhecida e festejada por toda a comunidade científica nacional.

JU – Que outros países pertencem ao grupo IV?

Suely Druck – Já pertenciam ao grupo IV a Holanda, Suécia, Suíça e, a partir de janeiro de 2005, foram incluídos Brasil, Índia e Espanha.

JU – Estamos distantes de migrar para o grupo V? Que nações integram esse time?
Otília Paques, docente do Instituto de Matemática e Computação Científica da Unicamp: para Suely Druck, ensino da disciplina pode ser instigante e divertido

Suely Druck – Atualmente integram o Grupo V os seguintes países: Canadá, China, Estados Unidos, França, Alemanha, Israel, Itália, Japão, Rússia e Inglaterra. Estamos ainda muito distantes de ascender ao Grupo V. Os países que integram este grupo possuem políticas nacionais vigorosas para o desenvolvimento da pesquisa matemática e o aprimoramento do ensino da matemática nas escolas. Em muitos desses países a matemática é tratada como uma das prioridades nacionais, havendo uma preocupação constante com a formação matemática das próximas gerações. Só para citar alguns exemplos: nos EUA a matemática está entre as quatro áreas escolhidas como prioritárias para o desenvolvimento científico e tecnológico do país nos próximos anos. A China conta atualmente com 10 mil centros de treinamento de jovens e crianças para olimpíadas de matemática. No Brasil, apesar de nossas autoridades reconhecerem a importância da área para a inclusão social e para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, ainda não temos políticas nacionais de porte para a matemática. Para início de conversa, o número de doutores em matemática no país está muito aquém da nossa necessidade. Diferentemente de outras áreas científicas, a matemática enfrenta uma escassez de doutores.

“A promoção ao grupo IV foi uma conquista de toda a comunidade matemática brasileira”

JU – Quais são os desafios do Brasil nesta área?

Suely Druck – Os países do Grupo V contam em geral com vários centros de excelência em matemática, o que ainda não é o nosso caso. Neste nível, temos apenas o IMPA e, a partir deste ano, o Programa de Pós-Graduação em Matemática da Unicamp, que alcançou conceito 7 da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Para um país com as nossas características e dimensões isso ainda é pouco. Temos excelentes grupos de pesquisa em diversas universidades, que com um apoio especial poderiam se transformar em centros de excelência. Precisamos trabalhar no sentido de ampliar o número de doutores e de centros de excelência, diversificar as linhas de pesquisa e aprimorar a interação com o setor produtivo. Além disso, a questão regional precisa ser resolvida; a pesquisa em matemática ainda não é uniforme no país. A Sociedade Brasileira de Matemática, junto com o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), está desenvolvendo um trabalho de prospecção da matemática, onde esses tópicos estão sendo tratados. Se conseguirmos executar todo este trabalho, aí sim poderemos começar a pensar no Grupo V.

JU – Quais os objetivos da IMU?

Suely Druck – Os objetivos da IMU são: promover a cooperação internacional em matemática, apoiar e organizar o International Congress of Mathematicians e outros congressos internacionais científicos e encorajar e apoiar atividades internacionais da matemática que visam ao desenvolvimento científico da matemática em qualquer de seus aspectos, pura, aplicada ou educacional. Além disso, cabe ao Comitê Executivo da IMU escolher os ganhadores da medalha Fields, o mais importante prêmio da matemática.

JU – A IMU conta com quantos membros?

Suely Druck – Aproximadamente 66 países são associados à IMU.

JU – A qualidade da pesquisa em matemática tem se refletido também no ensino da disciplina no país?

Suely Druck – Infelizmente não! Atualmente no Brasil, pesquisa e ensino em matemática compõem mundos distintos e distanciados. O primeiro cumpre com competência o seu papel de produzir conhecimento e formar recursos humanos para pesquisa. Já o segundo vem cumprindo muito mal o seu papel de transferir conhecimento e formar cidadãos, e ainda se debate com questões primárias e até surrealistas que dizem respeito à sua missão. Como presidente da SBM tenho lidado com esses dois mundos, e a comparação é absolutamente dolorosa para o segmento do ensino. A política de descaso com a educação no país afastou muitos profissionais com boa formação matemática das questões do ensino da disciplina. Parte importante deste espaço foi ocupada por grupos que, por falta de boa formação matemática, não se debruçaram sobre o ensino da matemática de forma consistente. O resultado foi que a definição de políticas sobre o ensino da matemática passou a ser feita com pouca - ou nenhuma - interferência de pesquisadores em matemática. Assim, as diretrizes que têm orientado o ensino da matemática nas últimas décadas vêm sendo formuladas sem o necessário suporte de conteúdo matemático. O afastamento dos pesquisadores das questões de ensino apressou o processo de deterioração do ensino da matemática no país. Esta situação contrasta com a de países que oferecem excelente ensino aos seus jovens, contando para isso com a contribuição de seus pesquisadores na definição de diretrizes ou mesmo atuando em diversos projetos. Só para exemplificar cito o projeto “Matemática em Ação”, da Universidade de Moscou, que conta com a participação ativa de V. Arnold, um dos maiores matemáticos do século, e o projeto “La main à la pâte”, na França, coordenado por G. Charpak, Prêmio Nobel em Física em 1992, ambos dirigidos a jovens na faixa de 15 a 18 anos.

JU– Na prática, o que ocorre nas salas de aulas brasileiras?

Suely Druck – Conforme disse antes, a situação do ensino da matemática no Brasil é de total deterioração. A qualidade nos níveis médio, fundamental e de graduação atingiu, talvez, o seu mais baixo nível na história educacional do país. A comunidade matemática tem total percepção deste quadro, e indicadores nacionais - Provão, ENEM e SAEB - e internacionais – como o Pisa - confirmam o descalabro da situação em que se encontra o ensino da matemática, principalmente nas escolas públicas onde estuda a maioria dos brasileiros. Os motivos deste quadro são bem conhecidos, e concentram-se principalmente na situação dos professores: baixos salários, má formação acadêmica, orientações pedagógicas equivocadas e péssimas condições de trabalho – faltam bibliotecas, laboratórios, apoio acadêmico e tudo o mais. Obviamente não foram os professores que optaram por esta situação, esta é a única opção que nosso país tem oferecido àqueles que são responsáveis pela educação da maioria de nossos jovens e crianças. Considero que a gravidade deste quadro não admite paliativos. Acredito que somente uma ação nacional de forte impacto poderá resgatar a qualidade do ensino da matemática no país. Isso só será possível com a implementação de um projeto nacional para a matemática, como já ocorreu com outras áreas, e o engajamento da comunidade que detém o conhecimento matemático que deve ser repassado aos professores e estudantes.

“O número de doutores em matemática no país está muito aquém da nossa necessidade”

JU– Como a senhora avalia o ensino da matemática na Unicamp?

Suely Druck – É um ensino de ótima qualidade em seus vários níveis. A Unicamp tem dado uma importante contribuição ao país na formação de recursos humanos para a matemática. Ressalto o excelente trabalho feito pelo grupo liderado pelo professor Antônio Carlos do Patrocínio, que tem se dedicado às questões de melhoria do ensino da matemática nas escolas, tema que considero essencial para o desenvolvimento social e científico de nosso país.

JU– Ainda existe resistência por parte dos estudantes, sobretudo os das séries iniciais, em relação à matemática? A SBM, por exemplo, tem trabalhado para tornar esse aprendizado mais “gostoso”?

Suely Druck – Em primeiro lugar quero deixar claro que a “resistência à matemática” por parte dos estudantes, como você chamou, não é um fenômeno brasileiro. Nossos jovens e crianças são tão competentes e criativos quanto seus colegas de outros países. A dificuldade dos estudantes com a matemática ocorre em todo o mundo em virtude das características da própria disciplina. Inicialmente porque ela é seqüencial, logo uma etapa não aprendida compromete todas as subseqüentes. Além disso, aprender matemática requer alguma disciplina e algum esforço, e isso nem sempre é fácil de se conseguir com crianças. Tornar uma aula de matemática divertida e instigante não é difícil para o professor que ama a matemática e a conhece em profundidade.

A paixão pela matemática aliada a um sólido conhecimento são essenciais na construção de perguntas certas no momento certo, de contextualizações inteligentes e conectadas com o desenvolvimento científico e a realidade nacional. Contagiar jovens e crianças com o entusiasmo e a criatividade e fornecer-lhes os instrumentos lógicos e científicos para o entendimento e a crítica da realidade é papel importante do professor de matemática. Assim, voltamos à figura do professor. A SBM tem várias iniciativas para tornar o aprendizado da matemática mais “gostoso” para professores e alunos. Para apoiar o trabalho em sala de aula de nossos professores, a SBM publica literatura de alta qualidade a preço acessível, como a Coleção do Professor de Matemática e a Revista do Professor de Matemática; oferece cursos de aprimoramento e realiza a Bienal da SBM, que é um evento dirigido exclusivamente ao ensino da matemática em seus vários níveis. A SBM publica também literatura dirigida aos estudantes, como a Coleção Iniciação Científica e a Coleção Textos Universitários. Outra iniciativa da SBM para os estudantes é a Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM), que tem despertado o interesse pela matemática em vários jovens.

“Pesquisa e ensino em matemática compõem mundos distintos e distanciados”

JU– Alguma ação específica em relação à escola pública?

Suely Druck – Como as escolas públicas têm uma participação muito pequena na OBM, a SBM, em parceria com o IMPA, criou a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). Este projeto foi aprovado pelo presidente Lula, tornando-se um projeto do MEC [Ministério da Educação] e MCT [Ministério da Ciência e Tecnologia] a ser implementado em todo o país agora em 2005. Durante o ano passado a SBM e o IMPA realizaram olimpíadas de matemática para escolas públicas em diversos estados como projetos-piloto que servirão de base para a OBMEP. Os resultados foram espetaculares. Jovens e crianças dos mais longínquos municípios do país, muitos até oriundos de famílias de baixíssima renda, ganharam medalhas. E o mais importante: mostraram disposição e prazer em passar horas a fio mergulhados em problemas de matemática. Isso ocorreu porque oferecemos a eles matemática instigante e divertida, como ela verdadeiramente é. Quem a torna desinteressante são aqueles que não a conhecem em profundidade.

“É preciso contagiar jovens e crianças com o entusiasmo e a criatividade”

JU– Existem algumas áreas da matemática, como a biomatemática, que têm trazido grandes contribuições à ciência e ao dia-a-dia das pessoas, mas pouca gente sabe. A senhora poderia dar outros exemplos da aplicação da matemática no cotidiano dos cidadãos?

Suely Druck – A matemática está discretamente presente em muito do que fazemos no dia-a-dia. Por exemplo, em uma compra feita com cartão de crédito em uma loja ou pela internet, toda a informação referente à compra e ao cartão trafegam por uma linha telefônica. Isto significa que qualquer pessoa escutando na linha ficaria conhecendo os dados da compra e do comprador. Para evitar isto, a informação é codificada (criptografada) antes de ser enviada. Todos os métodos modernos de codificação de informação têm uma base fortemente matemática; na verdade, esta é uma das áreas mais ativas da matemática no momento. Outro aspecto da codificação diz respeito não a esconder a mensagem, mas sim a fazê-la chegar ao destino com o mínimo possível de erros. O exemplo mais simples são os chamados “dígitos de controles” das contas bancárias e do CPF. A função destes dígitos é certificar-se de que o número foi informado corretamente; quer dizer, que não foi cometido um erro de digitação. Outra aplicação da mesma idéia ocorre nos CDs. Mesmo um pouco arranhado, um CD, ao contrário dos antigos discos de vinil, reproduz a música sem ruído. Isto ocorre porque a música é gravada com uma versão matematicamente muito mais avançada dos “dígitos de controle”, que permite ao equipamento não apenas detectar, mas até corrigir pequenos erros. Não podemos esquecer que os efeitos especiais em filmes, gerados por computador, seriam impossíveis sem o uso de sofisticadas técnicas matemáticas. Reproduzir o movimento da água de forma realística sem matemática? Nem pensar!


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