| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 312 - 19 a 26 de dezembro de 2005
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ARTIGO

A experiência espanhola


RENATO DAGNINO

Renato Dagnino é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), do Instituto de Geociências da Unicamp (Foto: Antoninho Perri)Quando vim para a Espanha, no âmbito da Cátedra Unicamp - Universidades Espanholas, minha intenção era investigar, numa sociedade relativamente semelhante à nossa, mas com estudos sobre as relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (ECTS) solidamente institucionalizados, como o seu conteúdo e perspectiva estavam influenciando a orientação da política de C&T (PCT).

Tendo acompanhado por quase três décadas as trajetórias dos ECTS e da PCT na América Latina, eu, por um lado, conhecia bem (e “em carne própria”) as dificuldades que temos tido na América Latina para implantar os ECTS. Por outro, sabia que o conhecido caráter linear ofertista de nossa PCT se combinava, hoje, com uma igualmente corporativa e oportunista orientação para o mercado. E, ademais, acreditava que a alteração dessas características da segunda passava pelo fortalecimento dos primeiros. Minha intenção era, então, realizar uma pesquisa comparativa que permitisse um melhor entendimento dos múltiplos aspectos de natureza social, econômica, política etc, que afetam a relação entre PCT e ECTS e, coerentemente com o caráter policy oriented da pesquisa em Política de C&T, formular recomendações de política.

Para melhor entender como se haviam desenvolvido na Espanha as trajetórias dos ECTS e da PCT, tive longas conversas com colegas de Madrid e entrevistei pessoas que atuam nos dois ambientes. Não pude captar a grande diversidade, sobretudo em relação à trajetória dos ECTS, que existe na Espanha (lamentavelmente não consegui recursos do Faepex para visitar outras cidades). Para organizar minhas descobertas e comparações com o que eu já sabia, concebi uma periodização que permitisse uma análise conjunta dessas trajetórias na Espanha, Argentina e Brasil, entre 1965 e 2005 (países por várias razões representativos, e cujas diferenças entre as trajetórias de PCT e ECTS já me instigavam).

A periodização resulta de uma combinação entre a cronologia dos acontecimentos que transcorriam no ambiente dos ECTS e da PCT e nos contextos sócio-políticos e acadêmicos em que eles se inserem (em cada período se destaca um elemento desses ambientes ou contextos de um dos países analisados) e abarca quatro períodos: (1) A pré-história dos ECTS: a institucionalização das Humanidades na Espanha; (2) As contradições da C&T na periferia: o surgimento do Pensamento Latino-americano em CTS (PLACTS) na Argentina; (3) Análises de PCT baseadas nos ECTS: o projeto Brasil-grande-potência e a C&T; (4) Redemocratização, Neoliberalismo e Globalização: oportunidades perdidas e institucionalização dos ECTS na Espanha.

A pesquisa está mostrando como países com uma evolução dos contextos socioeconômicos e políticos comparáveis (condição periférica, industrialização tardia, longo período de ditadura militar, relativamente baixa qualificação formal, alta participação das empresas multinacionais em setores tecnologicamente intensivos, escassa preocupação do empresariado nacional com P&D etc), embora apresentem trajetórias de PCT e ECTS distintas, apresentam hoje uma situação semelhante no que diz respeito ao descompasso entre o caráter da PCT e a perspectiva dos ECTS.

A pesquisa está permitindo entender porque uma sociedade como a espanhola, em que os ECTS estão desenvolvidos a ponto de estarem institucionalizados por lei como disciplina no ensino médio desde 1990, seu propósito de influenciar a PCT através da formação de profissionais dotados de uma “perspectiva crítica da clássica visão essencialista e triunfalista da C&T”, “um entendimento dos condicionantes e conseqüências sociais da C&T” e “capazes de lograr um incremento na sensibilidade social e institucional da necessidade de uma regulação pública da C&T”, não tem sido alcançado (os trechos destacados fazem parte da conceituação dos ECTS).

Para explicar porque nos três países se havia chegado a uma situação semelhante, usei, como era de se esperar, o marco de referência que viemos desenvolvendo para a análise da PCT.

Um dos resultados que cheguei é a hipótese de que o processo de redemocratização, por ter sido simultânea à globalização e à adoção de políticas neoliberais, não fez emergir em nenhum dos três países um “Projeto Nacional” que gerasse uma “demanda social por conhecimento” capaz de mobilizar o “potencial autóctone” através de uma convergência entre as “Políticas Explícita e Implícita de C&T” (as expressões destacadas foram propostas pelo PLACTS). Pelo contrário, o que tivemos foi uma Política de Ensino Superior e de C&T (PESCT) disfuncional, tanto em relação ao projeto neoliberal, quanto àquele das forças democráticas que atualmente ocupam o aparelho de Estado; e que parecem não perceber que seu projeto socioeconômico demanda a produção de um conhecimento radicalmente distinto.

Embora a capacidade explicativa dos ECTS esteja sendo enriquecida nos três países com os aportes recentes da Construção Social da C&T, da Teoria da Inovação, da crítica neomarxista da Neutralidade e do Determinismo e das Estratégias Alternativas de Pesquisa e Re-projetamento, eles têm sido incapazes de proporcionar a essas forças democráticas um modelo para a PESCT.

A pesquisa está mostrando que é necessário abandonar a idéia de que um controle externo, ex post, baseado simplesmente no public understanding of science e em conceitos como ética e qualidade, é suficiente para orientar para o “bem” - mediante a PESCT - a utilização de um conhecimento entendido como neutro. E, também, a de que o conhecimento, só pode beneficiar a sociedade se passar pela empresa privada.

Adicionalmente, a análise que tenho feito da forma como se tem orientado os ECTS está sugerindo que o entendimento da C&T como uma construção social e a negação dos mitos da Neutralidade e do Determinismo que integram os seus princípios não se estão materializando num conteúdo programático suficientemente articulado e convincente a ponto de fazer frente às idéias de senso comum, ainda dominantes nos círculos de ensino e pesquisa e na sociedade em geral.

Finalmente, a pesquisa está mostrando a necessidade de formar uma nova geração de cidadãos capazes de atuar conseqüentemente com a idéia de que a produção de conhecimento científico e tecnológico não se dá em ambientes assépticos, livres de valores, e que, portanto, seus produtos não são neutros.

E, na medida que se identifiquem com os interesses (políticos, econômicos) e valores (ambientais, mortais, étnicos, de gênero) dos movimentos sociais emergentes, estejam capacitados para incorporá-los às agendas de pesquisa e docência e ao processo decisório da PESCT.

Voltando à América Latina, eu diria que nossos mestres do PLACTS, entre eles o professor Herrera a quem homenageamos num artigo anterior, atribuíram corretamente nosso “excesso” relativo de capacidade de pesquisa à nossa condição periférica. Alterar essa situação, diferentemente do que muitos “acomodados” julgam, não pode esperar pela alteração dessa condição. Ao contrário, implica na elaboração de uma PCT que incorpore a enorme demanda não-atendida por conhecimento científico e tecnológico embutida no cenário que se quer construir para o País. Demanda essa que, se atendida propiciará satisfazer necessidades materiais básicas cuja existência é um dos aspectos mais tristes dessa condição periférica.

E, para tudo isso, para chegar a essa PCT, é fundamental incorporar a visão ECTS em nosso ensino. Materializar a “Década da Educação para um Futuro Sustentável”, da ONU, parece demandar um sério esforço em Educação CTS nessa direção.

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