| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 312 - 19 a 26 de dezembro de 2005
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Atendimento prestado por equipe multidisciplinar
transforma unidade em referência regional

Caism, porto seguro para
vítima de violência sexual

MANUEL ALVES FILHO

A enfermeira Aurélia Del Carmem Alvarez Mondaca: orientando paciente e seus familiares sobre os procedimentos que devem ser adotados (Foto: Antoninho Perri)Em 1998, durante suas atividades rotineiras no plantão noturno do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp, a enfermeira Aurélia Del Carmen Alvarez Mondaca se viu diante de uma situação até então inusitada: dar atendimento a uma mulher que acabara de ser estuprada. Mesmo sem ter sido treinada e sem contar com infra-estrutura adequada para executar tal tarefa, ela procurou fazer o melhor possível, tendo em vista que a vítima desse tipo de violência precisa de cuidados específicos. Depois de sete anos e de mais de mil casos do gênero, a realidade já é outra. Atualmente, as pacientes que recorrem ao setor de Atendimento Especial do Caism têm a sua disposição uma equipe multidisciplinar altamente capacitada. Lá, elas recebem cuidados e orientações que as ajudam a enfrentar o trauma sofrido em razão do abuso sexual.

Mais de mil mulheres já foram atendidas

O caminho para que o Caism tenha alcançado a condição de referência regional no atendimento a vítimas de violência sexual foi longo e dolorido, como lembra Aurélia. De acordo com a enfermeira, quando as primeiras pacientes começaram a chegar, os profissionais daquela unidade de saúde sentiram-se perdidos. Primeiro, nenhum deles tinha experiência nessa área. Segundo, não dispunham de estrutura adequada. Faltava, por exemplo, uma ficha que permitisse registrar e sistematizar os dados da vítima do abuso sexual. “Como os casos se multiplicavam, eu procurei me informar sobre todos os aspectos relacionados a esse tipo de violência. Assim, fui ler livros que tratavam da violência sexual, bem como o código penal. Também visitei a Delegacia da Mulher e conversei com outros colegas para me inteirar ainda mais sobre o tema”, explica.

Além disso, Aurélia contou com a ajuda da filha, que é médica legista e atua no Chile, sua terra natal. “Como minha filha atendia mulheres vítimas de estupro na época, ela me forneceu informações muito úteis, inclusive sobre a ficha de registro utilizada por ela. Depois de adaptarmos esse instrumento às nossas necessidades, nós finalmente conseguimos montar uma boa plataforma de trabalho, que serviu também aos outros profissionais da equipe, como psicólogo, ginecologista, infectologista e assistente social”, diz.

Assim que chega ao Atendimento Especial do Caism, a paciente é acolhida por uma enfermeira, que a escuta e a tranqüiliza. Neste momento também são coletados os dados relativos à violência por ela sofrida. Em seguida, a mulher é encaminhada ao médico, que realiza os exames físicos e colhe material para um eventual exame de DNA, caso esse recurso seja necessário para identificar o agressor. Posteriormente, a vítima volta a ser atendida pela enfermeira. Nesse momento, ela é medicada e fornece uma amostra de sangue. “Nós administramos um anticoncepcional de emergência e algumas medicamentos, como antibióticos, antiinflamatórios e antiretrovirais, para prevenir contra doenças sexualmente transmissíveis”, afirma.

A equipe do Caism também se ocupa de orientar a paciente e seus familiares sobre os procedimentos a serem adotados nos seis meses seguintes ao estupro. Esse cuidado, conforme Aurélia, é importante para evitar futuras complicações para a mulher. “Nosso trabalho é marcadamente preventivo, mas ele também tem caráter legal. Se a vítima engravida em virtude da violência sexual, nós a encaminhamos para realizar o aborto legal, caso esse seja o seu desejo. Trata-se de um trabalho dolorido, mas absolutamente necessário”, esclarece a enfermeira. De acordo com ela, são realizados dois tipos de atendimento. O imediato, que é feito num prazo de até cinco dias após agressão; e o tardio, executado a partir do quinto dia do ataque. São assistidas tanto mulheres adultas quanto adolescentes e crianças. As vítimas menores de 14 anos, que não ainda tenham menstruado, são encaminhadas ao Pronto Socorro Pediátrico do Hospital das Clínicas (HC).

Além de mostraram-se fragilizadas e humilhadas, as mulheres que recorrem ao Atendimento Especial demonstram muito medo de engravidarem ou de contraírem alguma doença sexualmente transmissível, notadamente a Aids. “Normalmente, elas choram muito e perguntam-se porque o estupro teve de acontecer justamente com elas”, relata Aurélia. Segundo a enfermeira, em relação às pacientes adultas, 70% das agressões são praticadas por desconhecidos. Já quanto às crianças, em 84% dos casos o criminoso é conhecido – normalmente é um vizinho ou até mesmo um parente. Outro dado apurado pela especialista revela que a maioria das vítimas (93%) não apresenta lesões corporais. “Como geralmente elas não são espancadas, mas subjugadas pela ameaça e a coação, isso faz com que a sociedade coloque em dúvida a agressão. Ou seja, elas são avaliadas moralmente, o que representa mais uma agressão”, analisa.

Aurélia faz questão de destacar que a violência sexual ocorre quando o ato é praticado sem o consentimento da vítima. Para exemplificar, ela conta o caso de uma garota de programa que foi estuprada por um alegado cliente. “Ela saiu com o homem e manteria relação sexual com ele como parte do seu trabalho. Ocorre, entretanto, que o homem disse que não a pagaria. Em seguida, ele a agarrou, espancou e violentou. Quando contei esse fato para algumas conhecidas, elas se espantaram e me perguntaram se uma prostituta também poderia ser estuprada. Ora, é evidente que sim. Se ela não consentiu, trata-se de uma violência sexual”, afirma. A enfermeira do Caism destaca, ainda, que esse tipo de agressão não tem vínculo com a questão sociocultural da vítima ou do agressor.

O fenômeno ocorre tanto entre pessoas de baixo poder aquisitivo quanto entre os mais abastados. “Além disso, a violência sexual acontece em qualquer hora e local, com vítimas de todas as idades. Eu já atendi uma paciente que foi violentada às 12h, depois de ser dominada na avenida Francisco Glicério, no Centro de Campinas. Nesse caso, o agressor abraçou a vítima, mostrou uma arma e disse que ela deveria acompanhá-lo, sob pena de ser morta. Também já atendi uma criança que foi dilacerada por um homem e uma mulher de 84 anos que foi estuprada depois que a sua casa foi assaltada”. Se os relatos de Aurélia impressionam, mais chocante ainda é saber que os casos que chegam ao conhecimento da Polícia e das autoridades de saúde representam apenas uma pequena parte do problema.

Valendo-se de sua experiência e de dados coletados na literatura, a enfermeira calcula que os 1.114 casos de violência sexual registrados até o início de dezembro no setor de Atendimento Especial do Caism correspondem à ponta de um iceberg gigantesco. “A maioria das vítimas não presta queixa na Polícia e nem procura atendimento médico por vergonha ou medo. Penso que para cada episódio registrado, outros seis ou sete ficam no anonimato”, diz.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, que baixou em 1999 uma norma técnica para o atendimento de mulheres vítimas de violência sexual, somente 10% dos estupros chegam ao conhecimento da sociedade. As estatísticas revelam também que 12 milhões de mulheres são estupradas anualmente no mundo. Já o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que 1 milhão de crianças são violentadas no mesmo período. Detalhe: os números referem-se apenas aos registros formais. A experiência do setor de Atendimento Especial do Caism foi apresentada por Aurélia em um congresso no Chile, no último mês de novembro. Os custos da viagem foram bancados pela Agência de Formação Profissional da Unicamp (AFPU).

Humor, antídoto da dor

Prestar atendimento a pessoas que enfrentam situação tão dramática quanto a violência sexual não é uma tarefa fácil, como admite a enfermeira Aurélia Del Carmen Alvarez Mondaca, do setor de Atendimento Especial do Caism. De acordo com ela, o trabalho sempre é marcado pela dor. “As vítimas desse tipo de agressão sofrem muito, assim como sofrem seus maridos, filhos e pais. Por mais que os profissionais da área de saúde tentem se manter a uma certa distância desses dramas, é impossível não se envolver ou não se abalar com esses casos. Eu mesma, depois de alguns anos trabalhando nessa área, desenvolvi uma úlcera”, recorda.

Para não sucumbir diante de tanta aflição, Aurélia desenvolveu um método que a ajuda a não se apropriar da dor das pacientes. Assim, ela descobriu o humor como válvula de escape. Evidentemente que as piadas ou brincadeiras não são feitas diante das vítimas e nem tampouco têm a intenção de desrespeitar ou fazer pouco caso da situação que estão vivendo. “Eu procuro levar o humor para a equipe que presta atendimento a essas mulheres. Outro dia, uma paciente contou que chegou a pedir ao agressor que usasse camisinha. Ele respondeu que se ela tivesse um preservativo, não haveria problema. O que eu fiz logo em seguida foi distribuir várias camisinhas para as minhas colegas de trabalho e alertá-las para, em caso de estupro, também negociarem o sexo seguro com o algoz”, conta, abrindo o sorriso.

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