Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 240 - de 8 a 23 de dezembro de 2003
Leia nessa edição
Capa
Artigo: crer ou não crer
HC: hospital terciário
Do ofício à experiência
C&T: qualidade de vida
Pesquisa: destilador molecular
Discussão: tecnociência
Cooperunicamp: estímulo
Altec: unicamp é destaque
Estudo: maturação sexual
Painel da semana
Oportunidades
Teses da semana
Idosos: retratos da velhice
Sensoriamento remoto
 


 

2

Crer ou não crer, eis a questão

RACHEL LEWINSOHN

Formada pela Faculdade Fluminense de Medicina, a professora Rachel Lewinsohn (acima) fez pós-graduação (dois mestrados, doutorado, pós-doutorado) nas universidades de Londres e Cambridge, Inglaterra. Desde 1982 pesquisou, lecionou e ministrou cursos de História da Medicina na FCM da Unicamp. Em março de 2003 foi lançado o seu livro “Três Epidemias: Lições do Passado” (Editora da Unicamp). Aposentada, continua ativa como professora colaboradora voluntária da Unicamp.

São de longa data as preocupações e o mal-estar suscitados pela ciência e tecnologia. Em 1920, nos primórdios das pesquisas sobre a energia nuclear utilizável, escrevia o químico inglês Frederick Soddy: “Suponhamos que se torne possível extrair, tão rápido quanto se queira, a energia que está a vazar, por assim dizer, da matéria radioativa há bilhões de anos. De uma libra (massa) de tal substância obter-se-ia a mesma quantidade de energia resultante da queima de 150 toneladas de carvão. Esplêndido! Ou uma libra (massa) poderia realizar o trabalho de 150 toneladas de dinamite. Ah, aí é que está o problema...Concebe-se que uma descoberta dessa natureza seja feita amanhã, e, o que é quase certo, cedo ou tarde ela será feita pela ciência, desenvolvida e aperfeiçoada para o uso ou a destruição...das próximas gerações. Certamente não será necessária a demonstração concreta disso para convencer o mundo de que está condenado se brincar com as realizações da ciência como tem feito por tempo demais no passado. A menos que...seja encontrado um uso melhor para as dádivas da ciência, a guerra não seria a agonia prolongada que é atualmente. Qualquer região do mundo, ou o mundo todo se necessário, poderia ser despovoado com uma rapidez e eficácia que nada deixariam a desejar.”

Dez anos depois, R. A. Millikan descartava essas preocupações com desdém: “Desde que o sr. Soddy evocou o espectro de perigosas quantidades de energia suba-tômica utilizáveis, [a ciência] aduziu boa evidência de que este fantasma específico – tal como a maioria dos fantasmas que abarrotam a mente ignorante – era um mito,” (insulto inédito, mormente por se tratar de dois detentores do prêmio Nobel). “A nova evidência nascida de recentes estudos científicos demonstra que é altamente improvável que existam quantidades apreciáveis de energia subatômica passível de ser usada. Podemos dormir sossegados,” conclui Millikan, “certos de que o Criador inseriu na sua obra...elementos protetores infalíveis que impedem que o homem possa lhe infligir danos físicos catastróficos.”

Rutherford, outro prêmio Nobel,que partilhava essa opinião, morreu em 1937; mas os dois outros ainda eram vivos quando a visão apocalíptica de Soddy foi comprovada por Hiroshima e Nagasaki.

Na década 1920-1930, cientistas e público devem ter imaginado que esses problemas de física nuclear, novos para a vasta maioria deles, eram meros tópicos de discussão acadêmica – ledo engano que seria revelado em todo o seu horror no curto espaço de 15 anos. Porém, jamais poderia haver equívoco semelhante a respeito do impacto direto das descobertas médicas. Sobretudo depois da II Guerra Mundial, a magnitude e as implicações dos novos achados deixaram o mundo atônito. Embora houvesse quem alertasse para o perigo de expectativas exageradas, parecia a médicos e leigos que não existiam limites ao poderio da ciência e da tecnologia de resolver a maioria, senão a totalidade dos problemas da saúde e doença.

Mas há muito tempo o pêndulo vem se inclinando para o lado oposto: a euforia e fé no médico e sua ciência transformaram-se em suspeita e rejeição, não obstante os feitos prodigiosos que a medicina tem produzido nos últimos 50 anos. “A medicina já foi a mais respeitada de todas as profissões. Hoje em dia, quando possui...tecnologias para tratar (e curar) doenças... simplesmente incompreensíveis há alguns anos, [ela] é atacada por toda sorte de razões.” (Lewis Thomas,1985) Por que esse desencanto? Uma das principais queixas é a desumanização da medicina devido ao predomínio da biotecnologia, e conseqüente deterioração da relação médico-paciente.O médico tornou-se um biotécnico que solicita exames e os analisa, em vez de examinar o paciente. Ele não tem mais tempo para ouvir o paciente; cada vez mais depende da tecnologia, haja visto o imenso aparato – instrumentos, equipamentos, procedimentos – mobilizado para examinar ou tratar o paciente, assustado e inseguro. Por outro lado o indivíduo, doente ou são, depende cada vez mais do médico e da pílula. O poder do médico sobre o paciente, e da profissão sobre a sociedade como um todo; a impotência (absoluta ou relativa) da medicina frente à eclosão de epidemias e infecções emergentes e ao ressurgimento de doenças supostamente erradicadas ou controladas; o marketing agressivo da ciência e tecnologia, inclusive da medicina, asseverando que cada pesquisa se justifica por si mesma; cada inovação é um progresso, um benefício acima de qualquer dúvida, quando muitas vezes a verdade é exatamente o oposto: – estes são apenas alguns dos inúmeros problemas, que muitas vezes não dependem da vontade ou do poder do médico para sua solução, enquanto outros exigem soluções de ordem socioeconômica e sobretudo política muito mais do que médica.

As torrentes de informação que jorram dos meios de comunicação – raros fatos e muita fantasia – são de pouca valia para a orientação de quem busca informação. Em recente painel na TV Cultura (SP) que analisou a qualidade dos dados divulgados pela imprensa e TV sobre a soja transgênica, um comentário acerbo referiu-se à certeza com que os cientistas opinavam sobre o assunto, sem jamais aludir às limitações do seu saber, ao passo que as pesquisas mostram o muito que falta para se chegar a conclusões definitivas. A confiança excessiva do biotécnico em seu próprio juízo é alvo da mesma crítica: “É regra e não exceção a adoção de novas técnicas pela clínica médica com base em evidência insuficiente de sua eficácia ou segurança... Os advogados de novas técnicas costumam sofrer de um estranho distúrbio chamado certeza”. (A.Oakley,1992)

Esses exemplos mostram o quanto são dúbias a objetividade e busca da verdade, não como máximas absolutas do cientista mas como princípios que observa, e em que bases frágeis são decididas as prioridades: o que ensinar, pesquisar, produzir; como diagnosticar e tratar o doente; em que investir o dinheiro público, etc. E há, finalmente, os interesses comerciais, óbvios, inegáveis: aquela descoberta, aquela invenção, apontada como benefício ímpar (ex.:engenharia genética) que na realidade serve sobretudo para ganhar milhões ou converter um milionário em bilionário; enquanto a pesquisa básica, órfã, sem lucro à vista, vai mendigando ou morre por falta de verba.

“Não podemos ignorar o contexto sócio-cultural no qual a [ciência e] tecnologia funcionam. Nesse contexto, nos séculos XVII a XIX as conseqüências da maioria das inovações tecnológicas eram benéficas. Seja devido a mudanças na sociedade e cultura ou a alterações na natureza e eficácia da tecnologia, no século XX em algum momento o equilíbrio começou a se deslocar... Somos de fato dependentes da tecnologia...que tornou populações [inteiras] incapazes de subsistir sem a sua ajuda.” (Sinsheimer, 1979) Acrescente-se que a ciência e (bio)tecnologia assumiram a supremacia na medicina, efetivamente eliminando dela uma dimensão essencial: o humanismo. E na corrida frenética do cientista e tecnocrata pela inovação a qualquer preço, perdeu-se, além da visão de qualquer objetivo (exceto o financeiro), algo indispensável à sobrevida humana: o bom senso. Nós, o público, precisamos readquirir a confiança no nosso julgamento e a coragem de reagir à pressão intolerável do marketing da inovação. Não é verdade que terça-feira é necessariamente melhor do que segunda-feira; nem que aquele aparelho, remédio, procedimento de última geração é melhor do que o penúltimo ou mesmo o de dez anos atrás.E quanto a nós, os cientistas? Bem, se quisermos ter uma chance de tornar a merecer a confiança do público, creio que precisamos antes de mais nada parar de correr, olhar aonde vamos, e mudar de rumo se for necessário.



Referências

F.Soddy (1877-1956; PrNob 1921), Science and Life, London: John Murray, 1920
R.A.Millikan (1868-1953; PrNob 1923), Alleged Sins of Science, Scribner’s Mag.1930, 87/2:119-130
E.Rutherford (1871-1937; PrNob 1908) Apud Physics Today, Outubro 1970, p.33
A.Oakley, apud J.Mitford, The American Way of Birth, Dutton (Penguin) NY, 1992, p.115
R.L.Sinsheimer, The Presumptions of Science, in Limits of Scientific Inquiry (ed. G.Holton & R.S. Morison), NYork, Norton 1979
L.Thomas (1913-1993), The Youngest Science, Oxford University Press, 1985, p.54

 

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP