| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 404 - 11 a 17 de agosto de 2008
Leia nesta edição
Capa
Cartas
Geração de emprego e renda
Conexão do saber
Mudanças climáticas
Crime organizado
Teses julho/agosto
Painel da semana
Teses da semana
Livro da semana
Portal da Unicamp
Músicos
 


8

SEGURANÇA PÚBLICA

Pesquisadores analisam políticas adotadas e alertam que
apenas trabalho
integrado é eficaz no combate ao crime organizado

O que a academia precisa investigar?

CLAYTON LEVY

Gláucio Ary Dillon Soares, do IUPERJ: “Continuaremos não sabendo as causas da explosão da violência enquanto os cientistas sociais seguirem estudando autores dos séculos 18 ou 19” (Fotos: Antoninho Perri)A receita não é nova. Países desenvolvidos, como Estados Unidos, e periféricos, como Colômbia, a usaram com sucesso no combate à criminalidade: incrementar a polícia, o sistema carcerário e a Justiça Criminal, fazendo-as trabalhar de forma sinérgica. No início de agosto, durante o 6º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado na Unicamp, os pesquisadores Gláucio Ary Dillon Soares, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), e Leandro Piquet Carneiro, da Universidade de São Paulo (USP), voltaram a bater na mesma tecla, durante uma das mesas-redondas mais concorridas do evento. “Bons governos salvam vidas”, disse Soares. “A boa política pública é aquela que obriga o infrator a mudar de conduta”, completou Carneiro.

Concordando em quase todos os pontos de vista, os dois passaram um pente fino nas políticas de segurança adotadas pelos governos estaduais. No mapa traçado pelos dois pesquisadores, São Paulo destoa do resto do País. Trata-se do único Estado onde a taxa de homicídios despencou: 75% desde 1999. Mais uma vez, na raiz da virada, aparecem polícia, sistema carcerário e Justiça Criminal atuando de forma articulada. Fora do Brasil, um exemplo recorrente é Bogotá, capital da Colômbia, onde o número de homicídios caiu de 4 mil em 1993 para 1,7 mil em 2001.

Leandro Piquet Carneiro, professor da USP: “As pesquisas que têm a bibliografia como fonte mais importante não têm dado certo para resolver problemas importantes, como a criminalidade” No contexto nacional, o principal contraponto a estes casos de sucesso continua sendo a capital do Rio de Janeiro. O crime organizado, o narcotráfico e as milícias formadas por policiais fora da lei seguem desafiando as autoridades e amedrontando a população. Cariocas da gema, ambos conhecem bem o problema e dizem que pela primeira vez o Estado está adotando uma política de segurança com foco definido: enfrentar o crime onde ele nasce e se dissemina. Na entrevista que segue, eles detalham o perfil de uma política de segurança adequada à realidade brasileira e explicam qual deveria ser o papel da academia no processo de combate ao crime.


Jornal da Unicamp – O senhor critica a escassez de pesquisa acadêmica que produza conhecimento útil sobre criminalidade. O que está faltando?

Cena carioca: na opinião dos especialistas, o crime organizado segue desafiando as autoridades e amedrontando a população do Rio, apesar da adoção de uma política de segurança com foco definido (Foto: Paulo Alvadia/Agência Estado) Gláucio Ary Dillon Soares – Pesquisamos pouco e ainda menos com a preocupação de contribuir para a resolução dos problemas nacionais. Precisamos produzir mais. Se pudéssemos inverter a composição de várias disciplinas nas ciências sociais, diminuindo o número de pessoas que se satisfazem em trabalhar sobre a teoria de algum autor do século passado e aumentando o número daquelas que contribuem para o conhecimento útil, principalmente para as políticas públicas, creio que estaríamos atendendo às nossas necessidades. Ninguém sabe, por exemplo, o que está acontecendo no Estado de Alagoas, onde a criminalidade explodiu nos últimos anos. E continuaremos não sabendo enquanto os cientistas sociais seguirem estudando autores dos séculos 18 ou 19.

Leandro Piquet Carneiro – Falta não apenas pesquisa, mas também pesquisadores qualificados para desempenhar esse papel. Estamos falando de pesquisadores preparados para análise de dados quantitativos em programas de políticas públicas. As ciências sociais no Brasil sempre tiveram o foco muito bibliográfico. As pesquisas que têm a bibliografia como fonte mais importante não têm dado certo para resolver problemas importantes, como a criminalidade. É preciso conhecer como o crime funciona.

JU – Especificamente sobre as políticas públicas na área de segurança, existe um grande contraste entre São Paulo e os demais Estados, principalmente Rio de Janeiro e Espírito Santo. Em sua opinião, por que as políticas públicas funcionam em determinadas regiões e não funcionam em outras?

Gláucio – Porque não são as mesmas e não são implementadas com a mesma seriedade. Não se trata de contrastar São Paulo com outros Estados. Além de Rio de Janeiro e Espírito Santo, também poderíamos agregar Pernambuco, Bahia, Pará, Alagoas e Minas Gerais, como Estados em que há altas taxas de homicídio. A região Metropolitana de Belo Horizonte era das mais seguras do País. Isso ficou para trás. Temos de saber o que deu errado. Já sabemos o que deu certo em São Paulo, mas essas políticas co-variam. Muitas foram implementadas juntas e é difícil atribuir a essa ou aquela uma responsabilidade maior na queda dos homicídios. Aumentaram o encarceramento, a apreensão de armas, a tecnificação da polícia e a lei seca foi aprovada em vários municípios. Qual o peso relativo de cada uma destas medidas? Ainda não sabemos.

Leandro – As políticas não são iguais. São Paulo optou por um caminho diferente. Destaco os investimentos significativos no setor penitenciário. Essa certamente é a variável mais importante para explicar essa virada. Não só as polícias foram capazes de prender mais, através de ações ostensivas e trabalho de inteligência, mas também o sistema foi capaz de absorver os criminosos presos. Essa combinação é única no Brasil. Há, ainda, um papel fundamental desempenhado pela Justiça, que acompanhou esse esforço. Trata-se, portanto, de uma sinergia bem-sucedida.

JU – Esse novo cenário nos Estados do Nordeste se deve à ausência de políticas públicas ou à incompetência na sua aplicação?

Gláucio – Com freqüência, a secretaria de segurança pública nos Estados tradicionais era ocupada por um militar. Mais freqüentemente, coronéis e generais que não têm qualificação para enfrentar esse tipo de problema. Em alguns lugares, eles foram substituídos por advogados, que também não têm formação em ciências empíricas que lidem com o crime. Eles têm uma postura normativa. Um dado muito importante é que o Brasil é avesso a experimentar e sobretudo a avaliar. Quando implementamos uma política pública, temos de seguir avaliando para saber se está dando certo. Do contrário, estaremos gastando recursos na implementação de políticas inócuas.

Leandro – Estamos falando de políticas públicas para o sistema de justiça criminal. Isso envolve as polícias, o Ministério Público, a Justiça Criminal e o sistema penitenciário. Ao contrário de São Paulo, os demais Estados não fizeram investimentos significativos nessas frentes, não modernizaram a Justiça, não expandiram o sistema penitenciário, não aumentaram o tamanho da tropa policial e não colocaram a polícia para atuar ostensivamente e de forma correta. Há problemas sérios, por exemplo, em Pernambuco, que é um dos poucos Estados brasileiros onde há uma produção significativa de maconha. Isso torna o problema mais grave e exige uma política específica para atuar contra os produtores da droga. São grupos com enorme poder de corrupção sobre a polícia e a Justiça. É um problema de grande complexidade, que exige recursos e gestão adequada.

JU – Qual o peso do avanço do crime organizado? Em muitos Estados, como no Rio de Janeiro, mesmo havendo uma política para segurança, esse é um adversário duro de ser batido.

Gláucio – Supomos que o peso seja alto, mas ainda assim não temos dados. Temos dados substitutos, que são aqueles que se referem à taxa de homicídios em favelas ocupadas pelo tráfico, mas em outras favelas e fora delas há pouquíssimos dados. As taxas de homicídio nas favelas são sempre mais altas. As lutas entre traficantes por pontos de vendas de drogas são responsáveis por uma percentagem considerável do total de homicídios. Evidentemente, essa conversa se dirige com demasiada freqüência aos traficantes e com insuficiente freqüência aos consumidores. Não há traficante sem usuário. A responsabilidade do consumidor passa batida. Ninguém fala, ninguém discute, mas os consumidores são parte dessa teia, que resulta na morte de tantas pessoas.

Leandro – No caso do Rio de Janeiro, pela primeira vez há uma política com foco. O modelo anterior era o de convivência com o crime. O controle territorial dos traficantes era tolerado. Agora o foco da política é enfrentar esses grupos e desarticular o controle territorial.

JU – Na sua opinião, a política de enfrentamento adotada pela Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, principalmente no que diz respeito ao poder paralelo dos traficantes, está correta ou precisa de ajustes?

Gláucio – Raramente o enfrentamento é unilateral. No Rio de Janeiro existe uma política de enfrentamento por parte do Estado, mas também existe a mesma política por parte do crime organizado. Isso se reflete no crescimento simultâneo das mortes pela polícia e também no número de policiais mortos. Esses números crescem de lado a lado. Não há a menor dúvida de que, com os dados que temos, houve um aumento significativo dos autos de resistência (pessoas mortas pela polícia). Mas há alguns aspectos positivos. A taxa de homicídios teve uma redução que também é significativa, embora ainda pequena e muito longe do que foi alcançado em São Paulo. Houve reduções, também, nos latrocínios e no roubo e furto de veículos, resultado da aplicação da inteligência, já que esse tipo de crime é praticado por cartéis. Esses grupos estão sendo desmantelados. Temos, portanto, algumas coisas funcionando e outras, não. Raramente teremos resultados em um ano e meio. Há algo positivo, que é um secretário competente e que não é corrupto. Os delegados já não são mais nomeados politicamente. Esses são grandes avanços em relação a gestões anteriores, mas no que concerne à violência, o Estado ainda deve.

Leandro – É a única política possível nesse momento. Obviamente, precisa ser complementada com a ocupação permanente dessas áreas em termos de policiamento. Para isso, é preciso efetivo. Não há dúvida, porém, que a única solução para desarticular esses grupos é o confronto e a ação de choque nessas áreas, que levam à prisão e ao indiciamento.

JU – E no que diz respeito ao envolvimento de policiais com o crime. Essa política de enfrentamento também é a mais adequada?

Gláucio – O povo carioca teve uma lua-de-mel curtíssima com as milícias. De início foram vistas como uma solução para o problema do tráfico. É capaz até que alguns milicianos acreditem nisso. Mas quando as milícias se envolveram com outros tipos de crime, e também com a violência, dada à associação de algumas milícias com políticos estaduais, creio que a população perdeu a virgindade. Descobriu que não era nada disso. Qual o problema? As milícias têm em suas fileiras muitos policiais, ex-policiais, bombeiros, alguns militares. É mais difícil combatê-las do que o tráfico, porque os traficantes não têm influência direta sobre os órgãos que tomam as decisões. Há pessoas associadas às milícias que estão a um ou dois passos de distância dos centros decisórios. Está-se pedindo à polícia que prenda seus colegas. Isso é bem mais difícil. O nível de envolvimento corporativo é muito grande.

Leandro – O enfrentamento tem sido nas duas frentes. A milícia é altamente perigosa. É capaz de fazer ameaças contra policiais e cumpri-las. O tráfico é muito desarticulado, mas os integrantes da milícia são recrutados dentro da própria polícia. Há profissionais que vão trabalhar na milícia após o expediente na polícia. Isso tem um efeito negativo muito grande. A saída é inteligência policial, investigação e prisão. Como essas organizações são muito verticais, a prisão das lideranças é muito importante. O grande exemplo é prender os líderes e condená-los. Com isso, manda-se o sinal para os outros de que agora a regra é essa.

JU – Até que ponto o sucesso das políticas públicas aplicadas em algumas cidades de outros países na América Latina, como Bogotá, poderiam dar resultado no Brasil?

Gláucio – Em parte, algumas destas políticas públicas já estão sendo aplicadas. A lei seca é uma delas. Provavelmente não dará o mesmo resultado, porque o contexto pesa sobre os efeitos alcançados. Em nosso caso, o contexto é inteiramente diferente. Os resultados podem ser ainda melhores, ou não. Não sabemos e não há maneira de saber. O que sabemos é que algumas medidas funcionam não somente em Bogotá, mas em várias outras cidades colombianas. Algumas são parecidas com as adotadas em municípios paulistas, como por exemplo Diadema, na Grande São Paulo.

Leandro – A receita é sempre muito simples: aumentar a ostensividade das polícias e o encarceramento, além de desarticular o crime organizado. É assim em qualquer lugar no mundo. A política para o sistema de Justiça Criminal tem de levar à maximização de dois objetivos: aumentar a capacidade de dissuadir o crime e incapacitar a rede criminosa. No primeiro caso, o caminho é o policiamento ostensivo; no segundo, o encarceramento dos criminosos. É um processo difícil de começar. É preciso liderança política e comando na área de segurança. Hoje, o Rio de Janeiro, por exemplo, tem a sorte de contar com um secretário que atua corretamente nestes aspectos.

JU – Qual o paradigma adotado em Diadema que poderia ser reproduzido em outras regiões?

Gláucio – A combinação entre medidas sociais de apoio a populações pobres e políticas de prevenção, baseadas no controle de ingestão de drogas, álcool e no porte de armas. As autoridades agiram pelos dois lados e os resultados foram excelentes. Além disso, mostra que o município também tem uma função no combate ao crime, e não apenas o Estado.

Leandro – O poder local é muito importante. Não é o fator determinante, mas pode ajudar muito. O Estado de São Paulo apresentou uma queda na criminalidade de forma dinâmica, mas em Diadema essa queda foi ainda maior. Isso começou com um programa local de controle de oferta de álcool e da desordem social e urbana. O município pode controlar o uso de espaços públicos de forma a gerar efeitos indiretos no crime.

JU – O senhor acha que a implementação do Bolsa Família é um componente importante para reduzir a criminalidade?

Gláucio – Até agora não temos nenhum dado que indique que sim ou que não. O Bolsa Família beneficia proporcionalmente principalmente o Nordeste e o Norte, e não é nestas regiões que as grandes vitórias sobre a violência estão ocorrendo. Pode vir a ocorrer.

Leandro – O Bolsa Família é um recurso contra a pobreza. Não tem nenhum efeito sobre a criminalidade. Não foi proposto com esse objetivo e está direcionado sobretudo para as áreas rurais. O problema do crime é de ordem metropolitana, a violência acontece nas grandes cidades.

JU – Se o senhor pudesse sugerir uma receita de política pública de combate à criminalidade, adequada à realidade brasileira, qual seria a sua colaboração?

Gláucio – Em algumas áreas precisamos construir prisões, aumentar o número de vagas e melhorar a qualidade do trato aos presidiários. Não se trata apenas de construir e jogar lá dentro. Mas essa é uma proposta muito cara. Temos uma quantidade muito grande de mandados de prisão não executados. Os cálculos variam de 200 mil a 400 mil. Não temos onde colocar estas pessoas. Outra ação seria o controle de armas de fogo. Políticas mais inteligentes demandariam prazos maiores, e seriam bem mais indiretas, sobretudo tentando apoiar as famílias com alto risco de produzir delinqüentes e criminosas. Isso tem a ver com a pobreza, mas sobretudo com a estrutura da família. Há pessoas igualmente pobres, umas com família intacta e outras com família dilacerada. Nas famílias dilaceradas o risco é mais alto.

Leandro – Investir na melhoria do sistema criminal, sobretudo na gestão desse sistema. Colocar esse sistema para funcionar com objetivos claros, ou seja, aumentar o policiamento nas ruas, melhorar a qualidade do policiamento ostensivo, da investigação policial e com isso permitir à Justiça condenações justas àqueles que cometem crimes. Dessa forma, teríamos uma sinalização mais clara para a sociedade de que o crime será tratado de uma forma diferente do que tem sido.

JU – Há regiões pobres com baixo índice de criminalidade e regiões ricas com altos índices de criminalidade. Isso mostra o quê?

Gláucio – Mostra que a tentativa de analisar crime e violência com base unicamente numa teoria sociológica não dá certo. Você tem de criar uma teoria a partir do crime. Ou seja, estudar o crime e verificar quais são as suas correlatas, em vez de esticar teorias sociológicas para explicá-lo. Quando se faz isso geralmente se cai numa espécie de pseudo-marxismo sem apoio nos dados. Temos de saber quem mata, quem são as vítimas e em que circunstâncias o crime acontece. A partir daí teremos possibilidades de uma prevenção mais eficiente.

Leandro – É consenso na literatura especializada que não há nenhuma relação direta entre criminalidade e pobreza. Há variáveis econômicas importantes, mas a pobreza não está entre elas.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2008 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP