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Para jornalista, PGH teve aceitação pública
graças à doutrina do determinismo genético

GENOMA HUMANO

Entre a retórica e a realidade

FLÁVIA NATÉRCIA
Especial para o Jornal da Unicamp

O jornalista Marcelo Leite, que defendeu tese no último dia 9, com Dolly: "Cabe ao crítico social e aos jornalistas de ciência dar à biotecnologia as suas devidas proporções" (Foto: Maurício Tuffani)O Projeto Genoma Humano (PGH), concluído oficialmente em 14 de abril de 2003, só obteve uma ampla aceitação pública graças ao uso “político e retórico de um determinismo genético crescentemente irreconciliável com os resultados empíricos da pesquisa genômica atual”. Essa é a tese central do trabalho intitulado Biologia total: hegemonia e informação no genoma humano, de Marcelo Nogueira Leite, que lhe conferiu, em defesa realizada no último dia 9, o título de doutor em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Segundo Leite, a doutrina do determinismo genético se baseia em uma apreciação simples e unidirecional de causalidade que tem como pressuposto a noção de que o gene é o único portador de informação em questão na transmissão de características nos seres vivos. Um gene daria origem a uma proteína que, por sua vez, corresponderia a uma característica. No entanto, sabe-se hoje que um gene chega a servir como receita para a fabricação de centenas de proteínas. Tudo depende da forma como a receita é “editada”, ou seja, como seus pedaços são “cortados” e “colados” no processo de leitura; da influência de outros genes; de informações que não são “escritas” com as letras do código genético (A, T, C e G); e, finalmente, do ambiente que circunda o organismo. Desse modo, a complexidade observada no desenvolvimento e no metabolismo humanos não pode ser diretamente depreendida do genoma.

Lançado em 1990, com previsão de conclusão estimada para 2005 e custo de US$ 3 bilhões, o PGH teve como objetivo a obtenção da seqüência que compõe, letra por letra, o código genético humano. A iniciativa internacional acabou cerca de um ano e meio antes do prazo e consumiu menos recursos do que se esperava (cerca de US$ 2,7 bilhões), mas estava fadada a não cumprir as maiores expectativas criadas em torno dela. Afinal, o seqüenciamento revelou a existência de um número de genes menor do que o esperado. No lugar dos 100 a 150 mil estimados inicialmente, o número foi revisto para algo entre 30 e 40 mil.

Embora não mais se sustente, o determinismo genético cumpre um papel importante na luta por hegemonia que os biólogos moleculares lograram vencer em detrimento de outras áreas do conhecimento. Para convencer parlamentares e público da necessidade da iniciativa bilionária, os cientistas fizeram promessas que não podiam cumprir, ao menos não imediatamente. Foi assim que a população foi informada, repetidas vezes, de que a cura para doenças, o câncer inclusive, se tornaria realidade. Outra distorção amplamente disseminada: concluído o PGH, a humanidade atingiria, finalmente, o conhecimento de sua essência, “do que nos torna humanos”. Quinze anos depois, já completado o seqüenciamento do genoma humano, e mesmo diante da crescente complexidade revelada nos laboratórios, os ecos dessas hipérboles ainda podiam ser ouvidos nos artigos e manifestações dos biólogos moleculares.

Uma das fontes dessa visão distorcida da forma como as receitas contidas nos genes se traduzem em características dos seres vivos são metáforas que os próprios cientistas utilizam e ajudam a disseminar. O genoma não é o “livro”, a “biblioteca” ou a “tabela periódica” da vida, o “plano-mestre” da espécie ou o maior avanço feito pelo homem rumo a seu auto-conhecimento. No entanto, essas foram expressões empregadas tanto pela Nature quanto pela Science, revistas internacionais de alto impacto no mundo acadêmico que influenciam, por meio dos repórteres especializados na cobertura de ciência, a forma como o público geral constrói sua compreensão dos fatos e feitos técnicos ou científicos.

Além dos artigos publicados por esses periódicos, respectivamente, em 15 e 16 de fevereiro de 2001, Leite analisou artigos, entrevistas, ensaios e livros escritos por biólogos moleculares para o público geral entre os anos de 2000 e 2003 principalmente. Essa análise levou o jornalista a constatar “uma grande oscilação entre determinismo desabrido e assimilação ao menos parcial de fórmulas mais atenuadas” do discurso sobre o gene, “como se os biólogos moleculares estivessem o tempo todo falando simultaneamente para dois públicos, especializado e leigo, diminuindo ou aumentando a literalidade de metáforas deterministas à medida que visam efeitos mais descritivos ou mais retóricos”.

A tese se divide em 5 capítulos, além da conclusão e das referências bibliográficas. O primeiro, “Modernidade e tecnologia: armadilhas do determinismo”, discute a falsa autonomia da técnica frente aos seres humanos, seus artífices. No segundo, “Biotecnologia como arauto da Nova Era”, o questionamento aplicado à tecnologia de modo geral se volta para o que se anuncia como a “a era da biotecnologia”. O terceiro, “Ecos do determinismo no Genoma”, e o quarto, “Outras biologias: sistemas de desenvolvimento”, compõem, segundo o autor, o centro de gravidade do trabalho. No capítulo 5, “Metáfora e destino da informação”, o jornalista apresenta de forma crítica a noção de gene como informação e seus desdobramentos.

Leite destaca, na introdução, a influência decisiva da constatação de que a noção polissêmica de informação constitui uma chave para interpretação do mundo contemporâneo, “percepção pioneira” de seu orientador, Laymert Garcia dos Santos, sociólogo e professor do IFCH. Encarar o gene como informação faz dele uma virtualidade, mero “recurso genético”, passível de garimpagem e patenteamento. Santos investiga as biotecnologias, em parte, para politizá-las, torná-las objeto de dissenso. Segundo ele, o discurso do determinismo tecnológico, que anuncia, por exemplo, o século XXI como a era da biotecnologia, é o equivalente, em termos tecnocientíficos, do “não há alternativa”, preconizado pelo neoliberalismo. “Mas é preciso lembrar que toda máquina técnica é fruto de uma maquinação social †não há, portanto, como naturalizar a tecnologia, nem o mercado”, diz.

Para Santos, a intenção de Leite ao explorar o determinismo subjacente ao discurso sobre o gene não caminha no mesmo sentido, o da politização. “O que ele quis mostrar eram os limites do determinismo genético para o próprio desenvolvimento da biologia molecular, sobretudo a partir do seqüenciamento do genoma humano”, diz Santos. “Assim, sua crítica, ao mesmo tempo em que aponta o que o determinismo deixa de fora (e que precisa ser levado em conta, isto é, toda a questão da interação com o meio), ressalta como uma concepção reducionista do gene acaba se configurando como uma limitação a ser superada. Nesse sentido, o valor do trabalho é mais heurístico que político”. Com a expressão “valor heurístico”, Santos se refere às implicações da pesquisa para a própria biologia molecular, uma vez que o determinismo pode impedir que avanços reais se façam no sentido da compreensão do funcionamento dos organismos, quebra-cabeças gigantesco do qual os genes, apesar de importantes, não representam senão uma parte.

Na visão do orientador do estudo, “a contribuição original da tese do Marcelo reside no mapeamento das transformações conceituais no campo da genética em função das descobertas trazidas pelo seqüenciamento”. Além disso, ele destaca também a relevância da análise para a compreensão do papel da metáfora da informação, seja no discurso científico, seja no discurso da divulgação científica. Assim, a tese também incide sobre a atividade profissional que Leite exerce, o jornalismo científico, ou seja, a divulgação científica levada a cabo pela imprensa e pelos jornalistas.

O autor da tese acaba de ser laureado com o Prêmio José Reis de Divulgação Científica e é mais conhecido como Marcelo Leite, sua assinatura jornalística. Foi com ela que ganhou notoriedade e autoridade na qualidade de editor de ciência no jornal Folha de S.Paulo e autor de livros editados pela Publifolha (Alimentos transgênicos, A floresta amazônica e O DNA). Ele já havia recebido, em 2002, um prêmio similar da Associação Brasileira de Divulgação Científica (Abradic). Atualmente atuando como free-lancer, Leite escreve na Folha de S.Paulo aos domingos na coluna Ciência em Dia, espaço ocupado pelo pioneiro José Reis até sua morte, e tem um blog no UOL, com o mesmo nome e o seguinte endereço: http://cienciaemdia.zip.net.

‘A única saída é manejar
as metáforas conscientemente’

Jornal da Unicamp – Seu trabalho coloca em evidência o papel dos cientistas na disseminação de conceitos equivocados, ultrapassados ou enganosos. Você concorda que a responsabilidade pelos casos de má qualidade na cobertura de ciência, normalmente atribuída aos jornalistas, tem de ser compartilhada com suas fontes, notadamente no campo da biotecnologia?
Marcelo Leite – Sim, concordo, mas não para isentar os jornalistas de responsabilidade nas distorções da pesquisa que seu trabalho dissemina. Não se trata de “pôr a culpa só nos pesquisadores” ou algo assim, como chegou a dizer o biólogo molecular Fernando Reinach na defesa de minha tese de doutorado, mas de que cientistas têm um papel primário na entrada em circulação, no meio social, de certas metáforas que auxiliam a compreensão de conteúdos complexos e distantes do senso comum, mas que também veiculam certos enquadramentos desses conteúdos que também podem ser obscurecedores, até mesmo ideológicos.

JU – Como lidar com a ambivalência das metáforas ao cobrir ciência?
Marcelo Leite – Não há receita. Trata-se de exercer também com pesquisadores de ciências naturais o ceticismo inerente ao jornalismo, ou seja, não aceitar pelo seu valor de face as metáforas fornecidas pelos cientistas. No caso do jornalismo científico, assim como no jornalismo econômico, as barreiras para isso são altas, porque os pesquisadores e economistas são detentores de um saber técnico que o jornalista possui apenas parcialmente, o que restringe sua capacidade de avaliar limitações e distorções implícitas nas metáforas fornecidas por pesquisadores ou inventadas pelo próprio jornalista. A única saída é manejar as metáforas conscientemente, ou seja, atentar para todas as implicações imagináveis da analogia – como a metáfora do gene como “informação” ou “código”, que vem carregada de ecos cognitivistas e pré-formacionistas no meu entender incompatíveis com a complexidade que a biologia molecular vem encontrando no genoma e na sua regulação.

JU – A comparação da tecnologia do DNA recombinante com o petróleo, o vapor, a eletricidade, o átomo, o silício constitui um dos elementos da “retórica determinista”?
Marcelo Leite – Em certa medida, sim. Não é central para a difusão do determinismo genético, ou seja, a noção de que todas as características de um organismo e de uma espécie são determinadas pelos genes e só por eles. Mas desempenhou um papel importante na apresentação do projeto Genoma Humano e depois de seus resultados à esfera pública. Pelo menos por ora, no entanto, as biotecnologias daí derivadas não tiveram o impacto sobre a base material e econômica da sociedade desses outros complexos tecnológicos. Talvez venha a ter, se ocorrer a esperada convergência das biotecnologias com a informática e nanotecnologia/novos materiais.

JU – A quem interessa o anúncio de uma “Era da Biotecnologia”?
Marcelo Leite – A todos aqueles empenhados em mistificá-las, seja para melhor vendê-la, seja para melhor atacá-la. Cabe ao crítico social e aos jornalistas de ciência dar à biotecnologia as suas devidas proporções.

JU – Como você avalia a cobertura do PGH e quais foram suas preocupações ao escrever reportagens ou artigos sobre o tema?
Marcelo Leite – Eu evitei concentrar minha tese de doutorado sobre esse tipo de avaliação justamente porque não pretendia que um trabalho acadêmico viesse a servir de justificação para determinadas escolhas e orientações que adotei em meu trabalho jornalístico. Mas posso dizer que de maneira geral a cobertura foi menos crítica do que deveria, não para diminuir a importância desse feito científico, mas para atribuir-lhe seu justo valor. A cobertura da Folha de S.Paulo no período 2000-2003, quando ainda era editor de Ciência do jornal, foi uma das mais questionadoras, atitude que mantenho nas minhas colunas e reportagens. Essa postura crítica já causou a retração de algumas fontes e fechou algumas portas, nas publicações mais empenhadas em fazer propaganda da genômica, mas esses são efeitos colaterais inevitáveis da prática do jornalismo independente.

JU – De que forma, na sua avaliação, o “potencial perturbador da pesquisa biológica” incide sobre “representações, valores e teorias sociais”? Qual o aspecto mais conflituoso da interface da biologia com a sociedade?
Marcelo Leite – Creio que a imagem da pesquisa biotecnológica em circulação na esfera pública, certa ou errada (e muito dela está errada), nos força a repensar muitas idéias feitas sobre conceitos como “natureza humana” e “livre-arbítrio”, por exemplo. Não sou da opinião de que a biologia vá um dia ser capaz de explicar nem muito menos fundamentar a sociologia e as humanidades em geral, como pretende a sociobiologia de um Edward Wilson remasterizada como psicologia evolucionista de um Steven Pinker ou como a tal de “consiliência” ressuscitada pelo próprio Wilson. Mas tampouco acredito que as ciências sociais possam ignorar a “biossocialidade” de que fala Paul Rabinow, ou seja, a incorporação de representações sobre o poder – real ou imaginário – das biotecnologias na formação de identidades sociais, por exemplo. Pense no efeito tremendo das tecnologias de reprodução sobre o direito familiar, por exemplo, ou nos dilemas éticos da pesquisa com embriões humanos, ainda por cima clonados.

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