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Prognósticos da
esquerda discordante

Em mais de uma ocasião o Jornal da Unicamp convidou intelectuais da esquerda acadêmica a analisar o momento político e as possibilidades de sucesso de um governo que se pretendia, se não revolucionário, ao menos reformador da agenda nacional. Acostumados à antevisão de cenários, muitas de seus prognósticos se confirmaram. A seleção a seguir foi feita a partir de entrevistas concedidas pelo economista Wilson Cano e pelos sociólogos Francisco de Oliveira, Ricardo Antunes e Octavio Ianni. Foi a este jornal a última entrevista concedida pelo professor Ianni, falecido em 3 de abril de 2004.


Octavio Ianni (Foto: Antoninho Perri/Neldo Cantanti)OCTAVIO IANNI

FRUSTRAÇÕES – A população brasileira tem sido frustrada continuamente por reversões causados pelos jogos do poder que são um desastre para a população. Em 1945 havia um processo de democratização que implicava numa reconstrução do país depois da ditadura do Estado Novo. Esse processo foi frustrado por um golpe de estado. Em 1964, quando o país estava numa tremenda ascensão democrática, com conquistas sociais notáveis nos governos de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, as elites militares associadas com o imperialismo deram o golpe de estado. Depois, com a volta dos governos civis, na chamada Nova República, há também uma sucessão de frustrações. E a maior de todas é esta, porque o atual governo nasceu das lutas contra a ditadura militar e as injustiças sociais. Então essa conjuntura é altamente frustrante, com características diferentes, mas semelhantes ao que ocorreu durante o golpe de 64 e o golpe de 45. (14 de julho de 2003)

SENTIDO DE NAÇÃO – O comprometimento crescente do governo com o neoliberalismo significa o abandono de qualquer compromisso social, salvo na retórica. Fala-se no Fome Zero, mas isso é uma retórica vazia, porque o problema do país não é dar um prato de comida para o faminto, e sim dar emprego para as pessoas não perderam a sua dignidade. Para que um governante saiba o que é a dignidade dos humilhados e ofendidos, dos desempregados, daqueles que vão receber um prato de comida, é preciso ter uma visão de conjunto que implica em ter um sentido de nação, que não está se revelando no governo atual. (14 de julho de 2003)

A ESQUERDA CRÍTICA – O discurso que o Lula fez no Rio Grande do Sul (Pelotas) foi um discurso de alguém que já está assustado com o terremoto no qual está metido. Como já tive oportunidade de ouvi-lo em muitas situações ao vivo nos tempos do ABC, percebi que esse discurso feito no Sul revelava não só aflição, mas também alguns indícios de desespero. E a reação é péssima, porque satanizar essa ou aquela categoria social, culpar aqueles que levantam objeções e tentar desmoralizar aqueles que fazem alguma reflexão crítica, é o pior caminho. O Genoíno (José Genoíno, ex-presidente do PT) está equivocado quando diz que as críticas que a esquerda faz ao governo atual são o mesmo que jogar água no moinho da direita. Essa declaração é maldosa, porque na verdade esse governo já foi para a direita. Esse governo não é mais um governo de esquerda. Foi uma promessa da esquerda, mas não é mais de esquerda. Uma promessa que não se cumpriu. (14 de julho de 2003)

ESPETÁCULO – Será que Lula nunca se perguntou o que o José Dirceu está fazendo e quem é essa figura [Waldomiro Diniz] que estava funcionando como braço direito do ministro-chefe da Casa Civil? Quer dizer, esse quadro momentoso tem a ver com o fato de os governantes estarem funcionando na base das representações, das impressões e do espetáculo político. Não há nenhuma diretriz que demonstre que os governantes tenham um entendimento inteligente do que realmente está acontecendo no mundo e no país. (8 de março de 2004)

TEATRO POLÍTICO – Diz a sabedoria popular que passarinho, quando está na muda, não canta. Lula afinal foi obrigado a ficar quieto, descobriu que estava vivendo só um teatro. Ele se deu conta de que o teatro ao qual foi induzido por seus assessores, inclusive os de marketing, a esse espetáculo ao qual se dedicava gostosamente, mostrou-se inócuo e falso; de repente, Lula caiu das nuvens. O mais grave disso tudo, falando no plano acadêmico, é que a impressão que passa é a de que ou os governantes sabem o que está acontecendo no mundo e não traduzem, ou desconhecem esses processos avassaladores que estão em marcha e que, se não forem devidamente avaliados, o país não pode definir algo que o faça andar. Aliás, parece-me que este governo, tal qual o anterior, não tem projeto porque não tem análise. Os hindus e os chineses têm projeto e têm análise. O discurso de Lula de uma certa maneira encobre essa falta de projeto. Daí o apelo ao sentimental e ao piegas. Mais: às vezes é um discurso que tem cheiro de água benta. (8 de março de 2004)

Francisco de Oliveira (Foto: Antoninho Perri/Neldo Cantanti)FRANCISCO DE OLIVEIRA

NOVA CLASSE 1 – É uma boa questão [o esquecimento do discurso histórico] e também a coisa mais difícil a ser elucidada. A gente pode tentar uma solução fácil, dizer que eles traíram, que foram cooptados pelo grande capital, e tudo isso também é verdade. Mas a elucidação completa é muito difícil. Eu desconfio que há o predomínio de uma nova classe [dentro do governo] e que isso influiu poderosamente no partido. (18 de agosto de 2003)

NOVA CLASSE 2 – As raízes [da nova classe] estão na posição a que certos trabalhadores foram levados, por exemplo, na administração de fundos de previdência nas estatais, na administração do Fundo de Amparo ao Trabalhador, na convivência com organizações do tipo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Isso vai criando uma ideologia comum. Isso consegue criar um descolamento, porque o trabalhador que exerce a administração de um fundo fica dividido. E nessa divisão, quem ganha é o lado administrador de fundos. Isso deveu-se a poderosas modificações na sociedade brasileira pelo processo de globalização e sobretudo pelo processo de financeirização da economia. Isso atingiu camadas de trabalhadores e os transformou em gestores de fundos capitalistas. (18 de agosto de 2003)

INTELECTUAIS – Não quero nada com o poder, não me seduz e estou vacinado contra ele. Mas é sintomática a falta de intelectuais no grupo do governo. Isso mostra a oligarquização do partido e uma disputa ferrenha pelo monopólio da interpretação do governo. Porque intelectual sempre perturba, sobretudo com os intelectuais que o PT tem. (18 de agosto de 2003)

FUTURO DA ESQUERDA – Não tem futuro previsível [A esquerda no Brasil] porque houve um embaralhamento grande. O PT foi a formação mais consistente de esquerda que o Brasil conheceu porque conseguiu fazer confluir vários movimentos que se amalgamaram no partido. No passado, houve o Partido Comunista, que quase chegou a isso porque tinha massa popular. O partidão chegou a ter 10% dos votos para presidente em 1945, tinha uma reconhecida influência sobre os sindicatos e tinha a nata da intelectualidade brasileira. Depois o partidão entrou num processo de clandestinidade que o levou ao fisiologismo descarado e às alianças com a direita. O PT repete essa história triste do partidão. O PT é depositário de uma longa trajetória da esquerda brasileira. Se ele malbaratar essa herança, o destino da esquerda estará gravemente comprometido. (18 de agosto de 2003)

RICARDO ANTUNES

MARKETING DE CAMPANHA – A campanha eleitoral parecia uma campanha americanizada – era a prevalência do marketing em relação às propostas políticas concretas. E o resultado foi a vitória do PT com um programa bastante alterado e sem aquela ênfase em mudanças profundas que o país necessitava. Ainda assim o eleitorado acreditava em Lula e no PT, por serem ambos herdeiros dessas lutas sociais nos anos 80 e da resistência ao neoliberalismo. Mesmo o PT e a CUT, passando pela mutação nos anos 90, cada um a seu modo resistiu ao neoliberalismo. Ambos tentaram, por exemplo, dificultar as privatizações e o desmonte da universidade. Quando o PT chegou ao poder em 2002, esse quadro se altera. Essa tendência de direitização se acentuou intensamente e isso criou uma situação muito difícil para a esquerda. (1 de setembro de 2003)

VOLTA DA DIREITA – É evidente que, se mantido esse curso, o governo Lula estará cavando sua própria derrota, pois daqui a quatro anos voltará uma direita que se elegerá em cima dos cacos que terão restado. (1 de setembro de 2003)

CRESCIMENTO ECONÔMICO – É ilusão imaginar que, sendo dócil, você conquista os capitais financeiros globais. Quando mais servil é a política econômica, mais os capitais globais exigem e claramente vão pressionar o governo Lula num momento de maior tensão social. E o governo parece não perceber a erosão de parte da sua base social, que já começou com os assalariados do setor público. E é risível imaginar que ele será sustentado pelos capitais financeiros transnacionais. Como você vai segurar um país com o desemprego aumentando? O sistema produtivo está parado, e a violência toma conta das grandes cidades e do estado brasileiro. Nesse quadro, a falácia “espetáculo do crescimento” é quase risível. Sabemos que, com as enormes mutações no mundo do trabalho, o crescimento não é sinônimo direto de aumento expressivo de emprego. Claro que crescendo tende a haver um aumento do emprego, mas o nível de desemprego no Brasil é de tal brutalidade, que é preciso uma política de desenvolvimento ancorada nos interesses da maioria da população assalariada, completamente contrária à que vem sendo levada a cabo pelo Palocci. (1 de setembro de 2003)

CAPITALISMO SINDICAL – Qual é grande “arma” do governo Lula para os sindicatos? É implementar aquilo que podermos chamar de capitalismo sindical. A CUT daria um “salto de qualidade”, tornando-se sócia, partícipe dos fundos de pensão, um agente interessado na especulação financeira. É elucidativo ver o exemplo de parte importante do sindicalismo norte-americano e europeu. Configura-se como um “sindicalismo de negócios financeiros”, que está preocupado não mais com o salário e os direitos da classe trabalhadora, mas com as ações da bolsa. Seria, é bom antecipar, a perversão completa do sindicalismo brasileiro. (...) Por que a CUT não foi visceralmente contra a reforma da previdência? Porque muitos segmentos estão preparando-se para entrar nessa grande simbiose financeiro-sindical. (1 de setembro de 2003)

CRISE DE IDENTIDADE – Se o PT imaginar que vai ser a variante brasileira do New Labor, talvez esteja selando seu fim enquanto partido de esquerda. Estará desencadeando uma enorme crise de identidade cuja dimensão nós vamos sentir daqui a quatro anos. Claro que seu eleitor mais despolitizado vai recorrer a uma concepção anti-política do tipo “não adianta votar porque são todos iguais”. E o PT estará dando, aliás, muitos elementos para que esse preconceito antipolítico se mostre como tal. Espero que nesse campo polimórfico, heterogêneo e multifacetado da esquerda social surja algo novo. (1 de setembro de 2003)

CONSEQÜÊNCIA ELEITORAL – Se a esquerda precisa assumir a fisionomia da direita para governar, é melhor ela deixar a direita governar. O Jospin perdeu a eleição na França porque assumiu como um governo reformista e foi incapaz de levar seu projeto adiante. Entre a esquerda que age como direita e a direita clássica, os eleitores europeus ficaram, nas últimas eleições, com a direita. Foi constrangedor ver, no parlamento, o PT fazer concessões de todo o tipo. As conseqüências serão vistas nas próximas eleições. Não tenho dúvida de que, se não houver uma mudança profunda dessa política, o partido vai receber um fragoroso “não” de muitos de seus eleitores, os servidores públicos, formadores de opinião, à frente. O litígio é tão enorme que o fosso criado parece irrecuperável. Parece aquela separação que não tem mais retorno. Foi tão litigioso o processo de divórcio, que é praticamente impossível que ocorra uma retomada posterior. Rompeu-se o liame fundamental do tripé que sustentava o PT, formado pelo operariado privado, pelos trabalhadores do campo e pelos assalariados médios da esfera pública. Os outros desdobramentos nós veremos em breve, quando vierem as demais reformas, em especial a trabalhista. E seus ensaios já são bastante preocupantes. (1 de setembro de 2003)

Wilson Cano(Foto: Antoninho Perri/Neldo Cantanti)WILSON CANO

CRISE DE ÉTICA – Uma crise de ética (decorrente de fundamentos reais ou falsos) é sempre ruim a um governo, principalmente quando o crescimento econômico é débil, como o do atual governo. É ainda pior, quando atinge o centro do poder do PT, partido que sempre se pautou por posturas éticas, denunciando a corrupção, exigindo sua investigação legislativa (CPIs) e se batendo, radical e vigorosamente, pela justiça social (distribuição de renda, salário mínimo, saúde e educação públicas, etc.). O que se nota no momento, são atitudes só em parte coincidentes com aquelas posturas. É óbvio que a esquerda nacional (independentemente de vínculo partidário) se sente hoje frustrada, e terá dificuldades enormes para, no futuro, voltar ao discurso ético perante a opinião pública. Por outro lado, como a esquerda partidária faz parte de uma coligação partidária, penso que a crise será ainda mais dura, pois não haverá nenhum partido de esquerda fora do poder. (8 de março de 2004).

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