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ARTIGO

O pacto conservador

RICARDO CARNEIRO

Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Este texto foi publicado no boletim "Política Econômica em Foco", n.5, suplemento 1, do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon), do IE/Unicamp. Foto: Antoninho Perri.A capacidade das elites brasileiras em formular e implantar políticas econômicas anti-populares tem sido recorrente na história brasileira contemporânea. Todos lembram da teoria do bolo cujo enunciado, “primeiro é preciso deixar crescer o bolo para depois distribuir”, foi repetido à exaustão durante a ditadura militar, ou a precedência da estabilidade ante o crescimento e a supervalorização da primeira durante a era FHC. Mas há que se reconhecer que o Governo Lula superou a todos ao abraçar a proposta da obtenção do déficit nominal zero. No âmbito político, do pacto de poder dominante, pouco importam as filigranas da proposta; o essencial é reter o que representa: uma convergência entre os interesses de banqueiros e industriais em detrimento dos assalariados e do povo em geral. Tudo isso com o patrocínio, dissimulado mas inequívoco, de um governo eleito para promover mudanças na direção do crescimento sustentado e de uma melhor distribuição da renda, como se isto fosse possível sem uma decisiva participação do Estado através dos gastos sociais e dos investimentos.

O diagnóstico subjacente à proposta é claro: a ausência de crescimento no Brasil nos últimos anos deve-se às elevadas taxas de juros, tese bastante verossímil, e estas assim o são em razão da elevada dívida pública, hipótese discutível ou apenas parcialmente verdadeira se a referência é a taxa de juros definida pelo Banco Central. Com base nesse diagnóstico, trata-se de estabelecer uma política de redução acelerada da dívida pública cujo efeito será a progressiva retirada do setor público da disputa pela poupança com o setor privado, deixando de pressionar a taxa de juros e permitindo a sua queda. Além do surrado argumento do crowding out aduz-se outro, inspirado nas expectativas racionais: a credibilidade da política de redução da dívida produziria efeitos imediatos antecipando a redução dos juros. Nada custa perguntar, quem paga a conta? Ou melhor, quais os gastos a serem cortados?

Exclui-se desde logo os intocáveis gastos com juros transferidos a rentistas de todos os matizes, pois estes deverão cair pari passu à queda da taxa de juros quando afinal as condições macroeconômicas assim o permitirem. As transferências, em particular as da Previdência, não podem ser objeto de corte imediato, pelo menos naquela parte relativa a benefícios cujo pagamento segue determinações constitucionais. Os investimentos também devem ser poupados devido ao seu reconhecido baixo patamar. Sobram assim os gastos de custeio, sobre os quais devem incidir os cortes. Dado a natureza do gasto de custeio, isto é o seu caráter de meio para atividades fins, a proposta propõe a mágica do “choque de gestão” tão ao gosto dos nossos empresários ditos competitivos: menos recursos e manutenção dos serviços obtidos por conta da maior eficiência da máquina pública. Sabedores das dificuldades de realizar tal proeza os autores da sugestão, em acordo com o Governo, preparam proposta de emenda constitucional através da qual se ampliaria a DRU para o patamar de 40% facilitando o corte dos gastos em diversas atividades fins como Saúde e Educação.

Para examinar em profundidade a questão da incidência do corte de despesas, vejamos se não haveria outro modo de reduzi-las sem apelar para o corte de gastos em bens e serviço. Um candidato natural seria a conta de juros, hoje em torno de 7,5% do PIB dos quais 5% do PIB, algo como 16% de total de gastos públicos, são efetivamente pagos. Nesse campo, um primeiro aspecto a explorar refere-se à taxa de juros SELIC definida pelo Banco Central e incidente sobre a maior parcela da dívida pública. O seu valor atual de 19,75% ao ano implica uma taxa real de juros de cerca de 13,5% ao ano. Se olharmos para a taxa de juros externa paga pelo Brasil, através de seus títulos soberanos, acharemos uma taxa de juros real de cerca de 8,5%. Qual a explicação para essa diferença? Qualquer economista medianamente informado sabe que a taxa de juros relevante e representante do risco de investir no país é a taxa externa, determinada nos mercados secundários globais. É ela quem define o custo da emissão de novos títulos e também, por arbitragem, o patamar da taxa de juros interna calculada pela paridade descoberta da taxa de juros. Essa taxa é o piso até o qual pode cair a taxa interna sem provocar saída de capitais. Logo, o excesso da taxa de juros interna sobre a externa só explica-se por razões de política econômica. No nosso caso é a gestão do regime de metas por parte do Banco Central, a responsável pelo diferencial de taxas. Mas vamos mais fundo. A ortodoxia diria que o Banco Central é obrigado a praticar taxas de juros mais elevadas por conta da política fiscal expansionista. Ou seja, conter o crescimento da demanda num contexto de expansão dos gastos públicos implica em ter que elevar ainda mais a taxa de juros para conseguir uma desaceleração da demanda privada compatível com uma desaceleração da demanda global. A formulação está eivada de equívocos. Atribuir a trajetória recente da inflação à expansão mais rápida da demanda ante o produto potencial é uma tese duvidosa particularmente ante os recorrentes choques de oferta. A dinâmica recente da inflação brasileira foi comandada por choques exógenos de preços e pela inércia resultante da indexação formal de parcela expressiva do IPCA ao IGP-DI. Assim, além dos impactos originados nas elevações significativas das commodities, do qual o Brasil é grande exportador, há uma passagem adicional e automática desses choques através dos preços administrados cujo critério principal de reajuste é o IGP-DI cuja evolução sofre grande influência do índice de preços por atacado, exatamente aquele que reflete de maneira mais fidedigna esses choques.

A escolha do BC foi clara, diante de um choque de preços exógenos significativo optou por desacelerar drasticamente a demanda como forma de evitar a passagem desse choque para os preços livres, pondo em prática a chamada contenção secundária, e buscou apreciar a taxa de câmbio para diminuir a intensidade desse último nos preços das commodities denominados em reais. Numa situação como esta seria preferível acomodar o choque com uma taxa de inflação mais alta ao invés de usar a taxa de câmbio para amenizar a sua passagem aos preços domésticos. Ou seja, dada a magnitude do choque, a ampliação da meta seria imprescindível pois a chamada contenção secundária, sem relaxamento da meta, tem custos muito altos em termos de produto e emprego dada a contração da demanda agregada exigida para manter a inflação dentro dos limites propostos inicialmente, além de comprometer a competitividade das exportações. No que tange à política fiscal a proposição do seu caráter expansionista repousa na hipótese discutível da existência, no Brasil, de um elevado multiplicador do orçamento equilibrado. No arranjo fiscal brasileiro estão presentes as seguintes características: uma elevada regressividade da tributação com peso expressivo dos impostos indiretos, e alta participação do superávit primário convertido em pagamentos de juros. A regressividade do sistema tributário retira renda daqueles que têm maior propensão a gastar, vale dizer, a consumir ou investir. O superávit primário convertido em pagamento de juros por sua vez esteriliza esta renda transformando-a em riqueza dos detentores de títulos públicos. As proporções nas quais isto ocorre indicam que o arranjo fiscal brasileiro tem se constituído num mecanismo contracionista da renda além de um instrumento de sua concentração.

O que foi dito acima ilustra o tipo de escolha subjacente ao corte dos gastos públicos em bens e serviços. Seria viável uma redução rápida e progressiva das taxas de juros praticadas internamente para o patamar da taxa externa, desde que relaxada a meta de inflação. Isto produziria efeitos tão benéficos e ainda mais rápidos do que o propugnado “choque de gestão”, ou seja, os mesmos encadeamentos de efeitos virtuosos seriam previsíveis a partir da queda da carga de juros. Com uma taxa de juros nominal de 14,5% e real da ordem de 8%, o atual superávit primário de 4,25% do PIB é capaz de produzir uma trajetória de declínio da relação dívida/PIB ainda mais rápida do que a atual. Ora, se isto é verdade a escolha por cortar gastos correntes e não a carga de juros obedece claramente a uma arbitragem entre interesses. Amplia-se os ganhos de rentistas, com o apoio de empresários produtivos, também e cada vez mais rentistas, em detrimento dos gastos que beneficiam uma parcela mais ampla da população. Em marcha o pacto conservador, no governo dos trabalhadores.




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