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Pesquisas analisam trajetória
intelectual de Celso Furtado

Celso Furtado, em foto feita no Piauí no final da década de 1950, entre Juscelino Kubitschek (à esquerda) e João Goulart: intelectual atuou intensamente na vida pública no período (Foto: Correio da Manhã/Arquivo Nacional)Celso Furtado era obstinado em entender o Brasil. Compreender a sua obra tem sido a obstinação dos que refletem sobre o seu legado intelectual. Estudos recentes desenvolvidos na Unicamp destacam-se na produção acadêmica dedicada ao pensador.

Em dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Economia (IE), Roberto Pereira Silva reconstitui o período formativo de Furtado a partir da análise de duas dezenas de artigos inéditos, dispersos em periódicos para os quais ele escreveu ainda jovem, como jornalista, de 1941 a 1948. Nos textos do versátil articulista, reportagens de eventos culturais e críticas artísticas se revezam com temas áridos, como a Segunda Guerra e a reforma administrativa de Getúlio Vargas.

A partir do ponto em que Roberto parou, a tese de doutorado em Sociologia defendida por Wilson Vieira no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) analisa a trajetória intelectual de Furtado acerca da temática da construção da nação entre 1948 e 1964 – época de suas primeiras elaborações teóricas sobre o subdesenvolvimento, quando também propõe ações para a superação do atraso do Brasil e envida-se em implementá-las por meio de intensa ação pública.

São, portanto, trabalhos com enfoques distintos e que alcançam diferentes momentos da vida do mais influente economista latino-americano. No entanto se integram e, a despeito dos inúmeros ensaios, monografias e livros publicados acerca da rica produção furtadiana, contribuem para lançar novas luzes sobre a brilhante e – como se verá a seguir – ainda não completamente conhecida carreira de Celso Furtado.

 

O índio voador, as naus cabralinas,
a crítica de arte e o pós-guerra

Fotos: Antoninho Perri/Adi Leite(...) Vista na moldura sombria que é Ouro Preto, subindo e descendo as íngremes e escuras ladeiras da velha cidade, iluminada aqui e acolá por lampiões improvisados e lâmpadas tristonhas, seguindo o ritmo rude das lanças e dos guardas romanos batendo nas pedras ásperas do calçamento irregular — a Procissão ora mais estreita ora mais larga, pontilhada de cruzes brilhantes e velas mortiças, é uma imagem viva do sentimento religioso.

O excerto acima, com a descrição do ritual da Semana Santa na histórica cidade mineira, foi pinçado de uma extensa reportagem de doze páginas publicada na edição de número 15, de 11 de abril de 1942, da Revista da Semana, tradicional periódico de variedades em circulação no Rio de Janeiro à época. Na elegância do estilo algo romanceado, dificilmente se reconheceria a pena de Celso Furtado, cuja vasta e densa produção científica e técnica em áreas tão diversas como a História Econômica, a Teoria do Desenvolvimento, a Política Econômica e o Planejamento tem importância definitiva para a compreensão da economia na América Latina. Mas a matéria “A Semana Santa comemorada em Ouro Preto” integra um surpreendente conjunto de textos jornalísticos produzidos pelo intelectual a partir dos primeiros anos daquela década, quando se muda da Paraíba, seu estado natal, para a então capital do país a fim de cursar Direito, aos 19 anos, e passa a escrever regularmente para algumas publicações.

Os artigos foram encontrados casualmente por Roberto Pereira Silva quando pesquisava para a sua dissertação de mestrado em Desenvolvimento Econômico, orientado pelo professor José Jobson de Andrade Arruda. O projeto destinava-se, a princípio, ao estudo da tese de doutorado defendida pelo pensador na França. O ineditismo e o valor histórico dos achados, no entanto, levaram Roberto a reestruturar e a enriquecer sobremaneira o seu trabalho, com a abertura de um capítulo exclusivamente dedicado a analisar os escritos do então jornalista Celso Furtado.

“Estudos sobre a sua obra em geral buscam a gênese do economista. O que eu mostro é que ele não nasceu economista, examinando o seu período formativo por meio de um recuo às suas primeiras publicações, datadas de 1941, até textos produzidos em 1948. A análise desse material nos descortinou uma série de assuntos e preocupações de Furtado na década de 40. Temas como a Segunda Guerra Mundial, a ascensão dos Estados Unidos e a política norte-americana na América Latina, o mundo europeu e a política econômica francesa e inglesa do pós-guerra, além de temas brasileiros, como a história nacional, a discussão artística e a reforma administrativa do Estado Novo, são contemplados nesses artigos e nos permitem estabelecer as relações entre Celso Furtado e período em que vive e escreve”, conta o autor de O jovem Celso Furtado: História, política e economia (1941-1948). “São temas e formas de abordagem que se modificam rapidamente, à medida que sua experiência pessoal e intelectual amadurece”.

Roberto Pereira da Silva, cuja dissertação foi apresentada ao IE: resgate do período formativo do intelectual (Fotos: Antoninho Perri/Adi Leite)A produção
Roberto conseguiu reunir em torno de vinte artigos dispersos em publicações como a Revista da Semana, Panfleto, Observador Econômico e Financeiro, Revista do Serviço Público e Revista do Instituto Brasil-Estados Unidos. Os periódicos estavam na Biblioteca Nacional, no Rio, no Instituto de Estudos Brasileiros, da USP, e no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Unicamp. São textos para os quais aparentemente ninguém ainda havia atentado, embora a atividade jornalística desenvolvida por Furtado na juventude fosse de conhecimento público.

Aliás, o pesquisador observa em sua dissertação que a menção a esse período é escassa e aparece de forma alusiva, referindo-se a um período posterior. Em A Fantasia organizada, ao narrar sua mudança para Paris, em 1946, Furtado lembra que escrevia para três periódicos: a Revista da Semana, (“minha velha casa”), o semanário Panfleto (“que atingia grande parte do público jovem e motivado politicamente”), e o Observador Econômico e Financeiro (“com ampla circulação na comunidade de negócios e no mundo oficial”).

“Ou seja, a menção é feita com o sentido de uma atividade remunerada e como um meio de reflexão e discussão de ideias. Ainda assim, salvo a citação, é preciso considerar a vontade de seu autor de que esses artigos permanecessem desligados de sua produção intelectual, uma vez que não estão encadeados ao seu desenvolvimento posterior”, argumenta Roberto. “Não há referências sequer em sua autobiografia, como se Furtado desejasse apagá-los de sua trajetória.”

A temática variada e as diferentes formas narrativas dão indícios não só das preocupações, mas das abordagens utilizadas pelo jovem Celso Furtado nos artigos, alterando-se entre a reportagem, a discussão histórica e o texto bem-humorado, constatou o autor.

O primeiro artigo, de outubro de 1941, “Marcos Barbosa e o primeiro índio brasileiro que voou”, narra a construção de uma “máquina de voar” por um cidadão de Mamanguape (PB) dotado, segundo Furtado, de “rica inteligência e sagaz espírito inventivo”. Seu engenho teria fascinado um indígena, levando-o a “entregar tudo quanto possuía para tê-lo”. Ao tentar usá-lo, saltou do alto de um monte e morreu. A veracidade do insólito episódio é apresentada por documentação na qual o relato se encontra.

O interesse de Furtado pela história e pelo passado nacional também aparece na reportagem “Onde fundeou Cabral a sua armada?”. Trata-se de uma entrevista com o coronel Luiz de Oliveira Bello, integrante de uma comissão encarregada de investigar e pôr fim à controvérsia entre historiadores brasileiros e portugueses a respeito “do sítio exato em que fundearam as naus cabralinas”.

Os artigos de interesse para a história nacional são acompanhados de matérias que procuram dar conta de acontecimentos culturais no Brasil, como a reportagem a respeito da Semana Santa em Ouro Preto, e de outras em que se revela a faceta de um eloquente crítico de arte. Uma, em particular, intitulada “Onde a voz do povo não é a voz de Deus”, permite a Furtado explicitar de forma desbragada sua opinião pessoal. Ao cobrir a final de um concurso que tinha por finalidade levar aos Estados Unidos um pianista jovem do Brasil, pôs a isenção de lado e, sem cerimônias, exaltou a superioridade de um dos finalistas, Arnaldo Estrela, em relação ao seu concorrente Adolfo Tabacow. Contrapondo os dois candidatos, referiu-se a Arnaldo Estrela da seguinte forma:

(...) jovem embora, há nesse pianista alguma coisa que o coloca além do plano em que estão aqueles que podem ser ‘julgados’. Estrela não terá atingido a plenitude. Entretanto ele revelou uma esclarecida consciência artística, o que dá às suas interpretações um alto valor. Quando um artista atinge o plano que este jovem alcançou será admirado, repudiado, exaltado... nunca julgado.

Celso Furtado também desmanchou-se em loas ao espetáculo “As Garças”, do compositor e seu conterrâneo José Siqueira, em comentário sobre o encerramento da temporada de bailados no Rio de Janeiro, e, a pretexto da morte do ator norte-americano de filmes de faroeste Charles Jones, analisou a característica do cinema em relação às outras artes no artigo “Nós e Buck Jones”. Distanciando-se das pautas artísticas, ele transita ainda por temas mais densos nas páginas do hebdomanário, elaborando análises de natureza política e econômica ensejadas pela conjuntura de guerra de então.

Tensão
A mudança dos textos jornalísticos para os técnicos ocorre quando Furtado passa a escrever para a Revista do Serviço Público. No cargo de técnico em administração no Departamento Administrativo do Serviço Público (o DASP, criado por Getúlio Vargas para modernizar a administração pública e, ao mesmo tempo, profissionalizar a carreira de servidor), seus artigos abordam de maneira analítica e comparativa as experiências norte-americanas na área da administração pública com vistas a implementação de um serviço público equivalente no Brasil. A atividade é interrompida com a convocação para a Força Expedicionária Brasileira (FEB) em 1945. Na volta ao Brasil, após o fim da Segunda Guerra, decide retornar à Europa, “fascinado pelo inusitado da cena social e humana que aí se armara, certamente sem precedentes, por sua amplitude e complexidade, na história dos homens”, conforme contou em A fantasia organizada.

Em Paris, matricula-se no doutorado em Economia, mas o ingresso na vida acadêmica inicialmente não estava nos planos do inquieto jovem (“a verdade é que, na época, em nada me atraíam os títulos, particularmente os universitários. Não via sentido em perder tempo estudando para preparar exames, desviando a atenção do mar de coisas importantes que estavam ocorrendo no mundo real diante de meus olhos”, confessou também naquela obra).

Para Roberto, essa tensão entre a vida acadêmica e o “desejo de conhecer o mundo” tem reflexos importantes nos textos seguintes de Furtado: a preocupação com a correlação de forças no comércio internacional torna-se um instrumento analítico importante nos ensaios dedicados à política econômica francesa e inglesa que ele envia aos periódicos Revista da Semana, Observador Econômico e Financeiro e Panfleto. Contudo, se por um lado há uma produção ensaística e jornalística preocupada em compreender o presente, ou seja, a Europa do pós-guerra, a tese de doutorado irá abordar a economia colonial brasileira, sobressaindo a reflexão histórica, argumenta o pesquisador.

“Mesmo respirando ‘os ares do mundo’, a preocupação com o Brasil não o abandona. É o que percebemos quando decide estudar seu país, sob a perspectiva do comércio internacional”, constata.

A economia colonial brasileira no período do açúcar – época em que ao Brasil coube papel eminente no comércio internacional – é o tema da tese A Economia Colonial no Brasil nos Séculos XVI e XVII defendida por Furtado em 1948. Ao analisá-la, o propósito de Roberto foi mostrar a vinculação do estudo aos debates intelectuais brasileiros e franceses, tentando compreender a forma de apropriação que Furtado fez de cada uma dessas tradições intelectuais.

 

A ação pública e as reflexões sobre
uma nação ainda em construção

Wilson Vieira, que defendeu tese no IFCH: incursão nas elaborações teóricas de Furtado sobre o subdesenvolvimento(Fotos: Antoninho Perri/Adi Leite)Em A Construção da Nação no Pensamento de Celso Furtado, Wilson Vieira, orientado pela professora Walquiria Gertrudes Domingues Leão Rêgo, se debruça sobre o que ele classifica de primeiro ciclo das transformações da reflexão do pensador a respeito da construção da nação. Ao buscar compreender essa conceituação e os elementos norteadores das observações de Furtado, o autor optou por enfatizar o período 1948-1964 por ser aquele no qual Furtado elabora a sua teoria acerca do subdesenvolvimento e atua publicamente num contexto em que o desenvolvimento era assunto da ordem do dia no Terceiro Mundo (em especial na América Latina), principalmente entre o final da Segunda Guerra Mundial e meados da década de 1960.

A partir da análise das obras e da atuação pública do economista, abarcando desde a sua tese de doutorado em Paris (A Economia Colonial no Brasil nos Séculos XVI e XVII), passando pela sua atuação na Cepal e na Sudene até 1964, o estudo revela como evolui o seu diagnóstico das causas que impediam o desenvolvimento do país e a elaboração de propostas de superação de tal situação. Algumas delas, na medida do possível, foram colocadas em prática. Segundo Wilson, o processo de metamorfose das interpretações e das inquietações de Furtado a respeito do desenvolvimento do país se manifesta inicialmente (e de maneira predominante) no terreno da ciência econômica stricto sensu, de caráter mais técnico e, posteriormente, se evidencia num campo mais interdisciplinar e mais político. Com o golpe militar, Furtado teve seus direitos políticos cassados e partiu para o exílio, primeiramente para o Chile e posteriormente para os EUA e a França, onde se voltou para a carreira acadêmica.

Furtado não só reflete sobre a construção da nação de maneira original em relação a outros pensadores que se dedicaram a essa temática – ele considerava o subdesenvolvimento brasileiro um obstáculo à consecução daquele objetivo, e não uma etapa para o desenvolvimento – como propõe, também de maneira mais elaborada em relação à reflexão nacional-desenvolvimentista das décadas de 1950 e 1960, o que se denomina planejamento democrático como caminho para a superação da situação subordinada do país.

“Seu modelo de desenvolvimento socioeconômico e político é a socialdemocracia europeia”, constata o autor da tese. Ainda de acordo com ele, Furtado também é fortemente influenciado pelas ideias do sociólogo alemão Karl Mannheim, teórico da sociologia do conhecimento e autor do livro Ideologia e Utopia, cujo método de análise foi empregado por Wilson em seu trabalho.

“Na concepção de Mannheim existe a idéia da intelligentsia, ou da intelectualidade, que se insere no Estado para planejar o desenvolvimento. Trata-se de um planejamento eminentemente técnico, que não se imiscui nas disputas político-partidárias, pois se encontra acima delas, e no qual o planejador está sob a vigilância da sociedade, daí a natureza de seu controle democrático”, esclarece Wilson.

A proposta, contudo, encerra uma contradição com a qual Furtado é obrigado a transigir: “Mannheim preconiza a predominância do técnico sobre o político, na visão do planejamento como elemento de superação do subdesenvolvimento e construção da nação. Existe, portanto, a percepção de que o planejador não deve se imiscuir nas discussões partidárias. Porém, contraditoriamente, para poder exercer o planejamento e construir a nação, ele precisa de um ambiente institucional minimamente favorável. Isso é muito claro na Sudene, onde o técnico Furtado teve de fazer muita política para ter mínima liberdade de atuação técnica”, observa o autor da tese.

Antagonismo
A concepção de planejamento de Furtado, além de ter sido fortemente influenciada por Mannheim, também perpassou em muitos pontos as propostas da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), instituição da ONU criada em 1948, aponta a pesquisa. Furtado integrou o primeiro grupo de pesquisadores e planejadores do órgão responsável por estabelecer e disseminar a interpretação do subdesenvolvimento como obstáculo à construção da nação na América Latina. Na qualidade de defensor da sua concepção de planejamento, Furtado se insere no acalorado debate de então sobre a superação do subdesenvolvimento, marcado pelo confronto de dois campos antagônicos: o liberalismo econômico e o desenvolvimentismo.

O embate remontava à década de 1940, com a célebre controvérsia entre o economista conservador Eugênio Gudin e o empresário e também economista Roberto Simonsen. A polêmica intensificou-se na década de 1950 com a entrada em cena de vários intelectuais e instituições especializadas, com destaque para Celso Furtado e Cepal. Eles não somente deram consistência às ideias desenvolvimentistas apenas esboçadas, como também contribuíram, mesmo indiretamente, para a elaboração dos planos de governo que seriam implementados na segunda metade dessa década, ainda que, na prática, o planejamento defendido por ambos num contexto democrático se mostrasse muito difícil de ocorrer, conforme constatou Furtado ao tentar implantar o seu plano de nação ao aceitar o convite do então presidente Juscelino Kubitschek para assumir um posto de direção no BNDE (atual BNDES).

Furtado estava na Universidade de Cambridge, pesquisando e redigindo Formação Econômica do Brasil – o clássico em que faz um profundo mergulho na história econômica brasileira como resultado de sua obstinação em diagnosticar o subdesenvolvimento brasileiro –, e sua volta se constituiu num resultado de suas reflexões na Inglaterra, nas quais percebe a importância de participar e colaborar no processo de deter as crescentes disparidades regionais brasileiras, as quais faziam o Nordeste ser a maior vítima. Liderada por Furtado, é criada a Operação Nordeste (Openo), e elaborado um estudo que compreendia o diagnóstico e o plano de ação denominado “Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste”. São ainda propostas a criação do Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (Codeno) e da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), ambos os órgãos comandados por Celso Furtado.

“Na Operação Nordeste, percebemos a atuação política do técnico para se dedicar à sua parte na tarefa de construir a nação, não somente na articulação com os políticos, mas também com a opinião pública em geral, denotando em Furtado o reflexo da contradição do sociólogo alemão (Karl Mannheim), posto que ele precisou desde o início fazer política para poder implementar políticas de superação do subdesenvolvimento nordestino”, pontua Wilson, acrescentando que Furtado coloca essas questões mais claramente em A Pré-Revolução Brasileira e em Dialética do Desenvolvimento.

Massa camponesa
Ainda assim, no período em que atuou na Sudene, Furtado enfrentou dificuldades para levar à frente seus projetos devido à oposição tanto da direita, que temia uma revolução no semiárido brasileiro, quanto da esquerda, que o acusava de ser agente dos interesses dos EUA por causa do programa Aliança para o Progresso, um convênio da superintendência para a adoção de políticas preconizadas por cientistas do MIT, relata a tese.

No governo Goulart, Furtado, à época superintendente da agência estatal, foi empossado ministro do Planejamento com a missão de elaborar o Plano Trienal, com proposta de ações anti-inflacionárias ortodoxas (contenção de gastos públicos e de liquidez) e de estímulo à retomada do processo de desenvolvimento econômico, então estagnado, juntamente com medidas de desconcentração da renda. Em termos concretos, o plano mal saiu do papel porque Furtado retornou à Sudene devido à sua exoneração do cargo de ministro (juntamente com todo o ministério) por pressões políticas sofridas por Goulart, numa conjuntura de grande instabilidade social e política.

“Percebemos em Furtado uma análise sobre o subdesenvolvimento que inicialmente é feita dentro do marco da ciência econômica (principalmente no período cepalino). No período da Sudene, as questões sociais e políticas são incluídas de maneira mais evidente”, afirma Wilson.

Desse modo, as propostas de superação do subdesenvolvimento elaboradas pelo pensador continuam defendendo o planejamento democrático, mas incluem cada vez mais a participação da sociedade nesse processo, conforme Furtado salienta na passagem a seguir extraída de Dialética do Desenvolvimento e reproduzida na tese:

O objetivo político a alcançar nos países subdesenvolvidos – isto é, o objetivo cuja consecução assegurará um mais rápido desenvolvimento econômico em uma sociedade democrática pluralista – consiste em criar condições para que os assalariados urbanos e a massa camponesa tenham uma efetiva participação no processo de formação do poder. As atuais classes dirigentes, no caso brasileiro, não representam mais que uma parcela da população com atividade política. Em épocas passadas, essa parcela se confundia com a nação, na medida em que estava formada pela pequena minoria da população para quem a atividade política tinha qualquer significação, ou cujo comportamento podia ser de alguma relevância para os destinos do país. Hoje em dia, o comportamento da massa trabalhadora urbana e rural é de importância fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país, o que significa que esse comportamento deve incorporar-se ao processo político.

Furtado, portanto, via na classe dirigente uma inaptidão para captar a realidade em si mesma, sinal de que a solução dos problemas transcenderia, de alguma forma, da capacidade operacional dessa classe, devendo emergir da interação de forças mais amplas.

Em obras posteriores (como Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, Um Projeto para o Brasil, O Mito do Desenvolvimento Econômico e Brasil: A Construção Interrompida), Furtado alterna diferentes diagnósticos a respeito das temáticas que até então polarizavam suas reflexões e, em O Longo Amanhecer, publicada em 1999, reforça o caráter do Brasil como nação ainda em construção. 

 



 
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