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O Zodíaco –R. Fludd, Ars memoriae

JU – Em que sentido?

Seligmann – Entre outros, de politizar mais o debate em torno da literatura. Muitas vezes, esse debate é muito morno e repetitivo. Existe uma tendência a cultuar as grandes obras ou a repetir certas fórmulas de interpretação já consagradas. Pensar a literatura do ponto de vista do testemunho significa trabalhar a sua poeticidade e a questão do literário de uma maneira mais rica e crítica, de um modo geral, isto tanto no Brasil como na América Latina.

JU – Que avaliação o senhor faz da literatura feita neste campo produzida no país. O que pode emergir dos estudos?

Seligmann – Como disse anteriormente, a teoria do testemunho traz uma nova metodologia de abordagem do fato cultural num primeiro plano. É evidente que, quando estamos trabalhando com testemunhos, temos uma tendência a procurar determinadas obras nas quais o teor testemunhal seja mais agudo. No caso brasileiro, por exemplo, não são poucas as obras literárias e cinematográficas que trabalham com a questão da memória da época da ditadura. Ou então, para dar outro exemplo, Graciliano Ramos retratando a ditadura getulista. Portanto, existe na cultura brasileira uma série de obras que podem ser relidas sob uma perspectiva testemunhal. Gostaria de enfatizar que as pesquisas não ficam circunscritas apenas a essas obras literárias e documentos com forte teor testemunhal, mas também a uma série de relatos. O objetivo é ampliar a pesquisa literária.

É importante notar que existe no estudo da literatura de teor testemunhal uma tentativa de se romper com o cânone. Do ponto de vista dos estudos da literatura que são praticados no Brasil, existe uma tendência a sempre se estudar os autores que já estão no cânone. Quando você observa a literatura na sua relação com o testemunho, passa circular de uma maneira mais livre, para fora dele. Acho saudável sair do cânone.

JU – Sem abandoná-lo.

Seligmann – De modo algum. Não vou deixar de ler Shakespeare ou Machado de Assis. Pelo contrário – adoro voltar a ler Shakespeare agora e perceber como em sua obra há toda uma teoria voltada para o poder. Shakespeare foi um teórico avant la lettre do estado de exceção. Suas tragédias realizam um “trabalho do histórico”, mas nem por conta disto elas deixam de ser universais: muito pelo contrário. A teoria do testemunho vai refazendo as interpretações consagradas. Ela permite uma espécie de reescritura da cultura, e abre para uma complexificação da visada sobre as obras literárias. Não vale mais o discurso inocente e simplificador da autonomia do estético.

Essa ampliação do cânone é extremamente interessante. Ao ler, por exemplo, relatos de sobreviventes de campos de concentração nazistas e da Argentina, vou constatar como eles variam, não são a mesma coisa. Alguns autores, por exemplo, têm uma formação literária que vai transparecer em seus textos. Existe uma questão também da temporalidade. Há diferenças também entre relatos feitos durante e depois do encarceramento.

JU – Que análise o senhor faz da cena literária brasileira?

Seligmann – Na verdade, apesar de estar no Instituto de Estudos da Linguagem, no Departamento de Teoria Literária, não sou um especialista em literatura brasileira, embora trabalhe muito com ela em sala de aula. Entretanto, até por acompanhá-la, tendo a ter uma visão muito mais otimista do que a normal. Temos, por exemplo, excelentes contistas que dominam muito bem a técnica da escritura, o que era uma coisa um rara até os anos 70. Acho que contamos com uma nova geração de escritores talentosos, que estão mostrando realmente muita criatividade diante desse ambiente disperso, no qual temos uma dificuldade em perceber muito bem as tendências da época. Há uma resposta muito diversa, mas que é também muito interessante por conseguir dialogar com os desafios colocados por nossa atualidade.

JU – Quais autores o senhor destacaria?

Seligmann – Da literatura atual brasileira gosto sobretudo de contos, portanto minha visada é parcial. O Bernardo de Carvalho contista eu admiro talvez mais do que o romancista, o mesmo valendo para o Modesto Carone. Recordo autores que foram etiquetados de “geração 90” e que são virtuoses do conto, como João Carrascoza, Marcelino Freire, Marçal Aquino, Marcelo Marisola, Cíntia Moscovich, Cadão Volpato ou Luiz Ruffato.

JU – Alguns críticos afirmam que a temática da violência está muito presente na literatura produzida no Brasil. O senhor concorda com essa tese?

Seligmann – Existe, com certeza, uma literatura contemporânea brasileira muito voltada para as questões da violência. Trata-se, na minha opinião, de uma tentativa de representação da violência. Acho que tem a ver, primeiro, com a nossa realidade. A literatura, como qualquer arte, existe em diálogo com o presente do criador. No Brasil, trata-se de uma temática que está inclusive na ordem do dia também no cinema. Tropa de elite e Cidade de Deus são exemplos. Há, de fato, uma vasta produção cinematográfica e literária que tem a violência no seu centro. Acho isso muito bom, já que a arte funciona como uma antena, especialmente quando conseguimos manter um certo distanciamento crítico. Os debates em curso gerados por essas obras são muito interessantes. Eles fazem com que a sociedade reflita sobre a violência e pense sobre o que fazer diante dela, e não simplesmente criminalizar a pobreza.

Na literatura, existem discursos diferentes. Temos aquele autor que penetra na violência, transpondo-a na narrativa, como Fernando Bonassi. Temos também uma corrente que mantém o distanciamento crítico, no qual a violência não aparece necessariamente no centro da narrativa.

Por outro lado, temos também o fenômeno da literatura do cárcere, por meio da qual autores que viveram em prisões fazem seu relato. Trata-se de uma literatura feita por pessoas não-literárias, que tiveram que aprender a escrever para publicar suas obras. Vejo esse fenômeno como uma espécie de contribuição brasileira para a literatura contemporânea. Essas obras têm a ver com essa atestação. Entretanto, trata-se de uma atestação complexa, um trabalho literário e de memória. Não existe grau zero do testemunho, assim como não existe grau zero da literatura.

JU – A que o senhor atribui o pouco espaço dedicado à crítica literária no país?

Seligmann – Esta é uma questão ao mesmo tempo complicada e fascinante. Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, existem muitos cadernos literários. Os jornais dão espaços generosos destinados a resenhas. Vemos neles o reflexo da formação de doutores em literatura que depois vão seguir – ou tentar – a carreira de críticos ou jornalistas.

Já no Brasil, parece que existe uma barreira entre a academia e a prática jornalística. Existem as exceções, aqui e ali às vezes professores escrevem nos cadernos de cultura, mas é uma coisa pontual. Parte da nossa grande imprensa tem uma percepção que parece moldada por um raciocínio meramente utilitarista. Ela julga que a resenha não é uma coisa muito lucrativa.

É engraçado que sequer as grandes editoras se preocupam em produzir estes cadernos. É como se a máquina editorial brasileira dispensasse a divulgação mais refletida. O que acontece no Brasil – que é mais ou menos uma espécie de apresentação publicitária – está diretamente ligado a questões mercadológicas. A reflexão está cada vez mais limitada a pequenos jornais, que circulam praticamente de mão em mão. Trata-se de uma questão que temos de colocar sempre: por que houve essa redução do espaço da crítica?

Temos no Brasil muita gente fazendo coisas excelentes na área da literatura. Ocorre que eles não têm acesso às publicações. Em algum momento, os órgãos de imprensa até tentaram essa visada mais profunda com relação à literatura, mas isso acabou. Precisamos reverter isto.

Quem é

Márcio Seligmann-Silva é doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale e professor livre-docente de Teoria Literária na Unicamp e pesquisador do CNPq. É autor dos livros Ler o Livro do Mundo. Walter Benjamin: romantismo e crítica poética (Iluminuras/Fapesp, 1999, vencedor do Prêmio Mario de Andrade de Ensaio Literário da Biblioteca Nacional em 2000), Adorno (PubliFolha, 2003) e O Local da Diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (Editora 34, 2005, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006); organizou os volumes Leituras de Walter Benjamin: (Annablume/Fapesp, 1999; segunda edição 2007), História, Memória, Literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes (Unicamp, 2003) e Palavra e Imagem, Memória e Escritura (Argos, 2006) e coorganizou Catástrofe e Representação (Escuta, 2000). Traduziu obras de Walter Benjamin (O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, Iluminuras, 1993), G.E. Lessing (Laocoonte. Ou sobre as Fronteiras da Poesia e da Pintura, Iluminuras, 1998, finalista do Prêmio Jabuti na categoria Tradução, 2000), Philippe Lacoue-Labarthe, Jean-Luc Nancy, J. Habermas, entre outros. Possuí vários ensaios publicados em livros e revistas no Brasil e no exterior.

OS LIVROS

A arte da memória

Frances A. Yates

Tradução: Flavia Bancher

ISBN 85-268-0768-6

Ficha técnica: 1a edição, 2007, 504 páginas; formato: 16 X 23 cm.

Preço: R$ 72,00

Áreas de interesse: Filosofia, História, Memória, Literatura.

Sinopse: A arte da memória é o estudo clássico sobre como as pessoas aprendiam a memorizar grandes quantidades de informação antes do advento da página impressa. Nele, Frances A. Yates acompanha a arte da memória desde seu tratamento pelos oradores gregos, passando por suas transformações medievais, até as formas esotéricas que assumiu no Renascimento e, finalmente, seu uso no século XVII. Este livro, o primeiro a relacionar a arte da memória à história da cultura, operou uma revolução quando foi publicado em inglês, em 1966, e continua a fascinar os leitores com sua visão lúcida e reveladora.

Autora: Frances A. Yates (1899-1981) foi professora do Instituto Warburg da Universidade de Londres. De sua obra, destacam-se os trabalhos que dedicou ao estudo da tradição hermética e ao papel central que a magia ocupou no nascimento da ciência e da filosofia modernas. Além de A arte da memória, publicou também Giordano Bruno and the hermetic tradition (1964) e The rosicrucian enlightenment (1971).

A memória, a história, o esquecimento

Paul Ricœur

Tradução: Alain François (coord.), Annie Cambe, Carolina Violante Peres, José Emílio Maiorino, Maria José Perillo Isaac e Maria Marcia Bértolo Caffé.

ISBN: 978-85-268-0777-8

Ficha técnica: 1a edição, 2007, 536 páginas; formato: 16 X 23 cm.

Preço: R$ 82,00

Áreas de interesse: Memória, Filosofia e História.

Sinopse: “Esta obra comporta três partes nitidamente delimitadas pelo tema e pelo método. A primeira, que enfoca a memória e os fenômenos mnemônicos, está sob a égide da fenomenologia, no sentido husserliano do termo. A segunda, dedicada à história, procede de uma epistemologia das ciências históricas. A terceira, que culmina numa meditação sobre o esquecimento, enquadra-se numa hermenêutica da condição histórica dos seres humanos que somos. Mas essas três partes não constituem três livros. Embora os três mastros sustentem velames entrelaçados, mas distintos, eles pertencem à mesma embarcação, destinada a uma só e única navegação. De fato, uma problemática comum corre através da fenomenologia da memória, da epistemologia da história e da hermenêutica da condição histórica: a da representação do passado. Perturba-me o inquietante espetáculo que apresentam o excesso de memória aqui, o excesso de esquecimento acolá, sem falar da influência das comemorações e dos erros de memória — e de esquecimento. A idéia de uma política da justa memória é, sob esse aspecto, um de meus temas cívicos confessos.” Paul Ricœur

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