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ARTIGO

A ordem humana em movimento

REGINALDO CARMELO CORRÊA DE MORAES

Pediu-me o editor do jornal que em 7.500 caracteres respondesse a três perguntas: 1) quais os principais temas destes dois livros recém-lançados; 2) qual sua relevância e quais suas implicações; e 3) por que os escrevi... Comecei a redigir e rapidamente cheguei a um texto oito vezes maior do que o pedido. Tento resumi-lo.

O primeiro livro – só meu – tem três capítulos e uma longa história, que começa mais ou menos com minha tese de doutoramento, quando examinei aspectos da ideologia do planejamento no pós-guerra, ou seja, a convicção de que os movimentos sociais e econômicos podiam e deviam ser submetidos a uma regulação, até programação, por parte de uma esfera política que se convenciona chamar de “Estado”. Particular ênfase era dada à política de superação do subdesenvolvimento. Daí, em seguida, a tese propiciou, indiretamente, a redação de um pequeno livro de introdução às idéias da Cepal e de Celso Furtado. Nos anos seguintes, pus-me a dialogar com os críticos do planejamento, os ultraliberais que viam a programação e as políticas desenvolvimentistas não apenas como ineficientes, mas, ainda, como ante-sala do “totalitarismo coletivista”. O resultado foi um livro sobre o pensamento neoliberal e suas principais correntes.

“Quem quiser contestar uma tradição, precisa penetrar cuidadosamente
na sua lógica”

Desse modo, o livro que agora publico – Estado, globalização e desenvolvimento – é uma volta a velho tema. E, também, uma volta no tempo. Examino, em um dos capítulos, a aparição da economia do desenvolvimento no imediato pós-guerra, um campo subdisciplinar borbulhante que, no quadro de reconstrução da época, parecia dar um perfil mais jovial à “ciência triste” da economics. Aqui procuro indicar os temas, os instrumentos criados e, claro, as dificuldades e aporias dos textos-fundadores.

Como resultado de tais problemas, a maior parte deles tendia a transferir para outros campos disciplinares a possibilidade de superação – com enorme freqüência, faziam apelo aos “fatores não-econômicos do desenvolvimento”. Daí vem o outro capítulo, que vasculha outros campos disciplinares – sociologia e ciência política – para historiar o nascimento da chamada “teoria da modernização”, uma verdadeira indústria intelectual do otimismo de uma América vencedora e segura, confiante na possibilidade de oferecer aos “países atrasados” não apenas um modelo de modernidade, mas, também, uma assessoria iluminada para a condução dos processos de “decolagem”. O leitor encontrará nesse capítulo, também, uma interpretação a respeito dos motivos que levaram a que esse “bom humor” se desmanchasse, já na segunda metade dos anos 1960.

O outro capítulo do livro é mais recente na confecção e na temática. Procura revisar o aparecimento do tema da globalização – termo que, nos últimos 20 anos, parecia explicar e justificar quase tudo o que ocorria no mundo. Tento localizar o engendramento desse processo dentro de uma lógica que vai da construção do capitalismo organizado do pós-guerra, passa pela sua crise na emblemática década de 1970, e, finalmente, desemboca no capitalismo re-organizado, isto é, na globalização neoliberal das duas últimas décadas do século. O capítulo tenta também rastrear uma literatura que, a meu ver, serve para entender esses três momentos da história recente.

O segundo livro [Globalização e Radicalismo Agrário] – uma coletânea – originou-se de um convite de amigos do Instituto de Estudos Políticos de Paris (a Sciences-Po), que tinham a intenção de montar um dossiê na sua revista Critique Internationale – a respeito dos fenômenos de radicalismo agrário que se conectavam com movimentos antiglobalização. Pediram-me eles que redigisse um artigo sobre o MST e sua progressiva aproximação do ideário da Via Campesina e dos Fóruns Sociais, este movimento, algo difuso, que procura se identificar com o slogan “outro mundo é possível”.

Claudinei Coletti e eu escrevemos o texto, que foi apresentado num seminário da Sciences-Po e, depois, publicado no dossiê da revista. Daí, organizei a edição brasileira, para a qual escrevi uma apresentação. A tradução, em tempo recorde, foi feita por uma pesquisadora de nosso programa de Ciência Política, Maitá de Paula e Silva. O livro traz um balanço desse fenômeno no Brasil, Polônia, Zimbábue e Nepal. Quatro países, em quatro continentes, diferentes em suas dimensões, história, em quase tudo. Mas, com alguns intrigantes pontos de contato, como, por exemplo, o fato de terem, em geral, agriculturas desenvolvidas no padrão que a literatura da economia agrícola tem chamado de “dual”, economicamente concentradas e socialmente polarizadas. São, também, países que passaram pelos famosos “planos de ajuste estrutural”, que o globalismo neoliberal dos anos 80-90 disseminou pelo mundo – com implicações dramáticas no setor agrícola dessas sociedades.

Tomo os dois mil caracteres restantes para a terceira pergunta do editor. Com a licença do leitor, direi duas palavras sobre as motivações da pesquisa e dos livros e, abusando da paciência, sobre inclinações pessoais que, penso e espero, não são apenas minhas. Em grande medida, admitam ou não, todos que escrevem o fazem, em primeiro lugar, para si mesmos. O autor é também o seu primeiro leitor e deve convencer a si próprio antes de falar ao próximo. Assim, muitos destes estudos resultaram da tentativa de explicar a mim mesmo como entender as desgraças do mundo.

Como desde muito cedo me acostumei a entender o mundo junto com a inclinação de reformá-lo (outrora diria revolucioná-lo), a perspectiva que orienta essa investigação é a de ver a ordem humana como algo em movimento e, pelo menos em princípio, sujeita ao manejo da ação política informada. É uma convicção ou ilusão que habita, creio, uma grande parte dos intelectuais ou daqueles que pretendemos esse selo. Assim, ainda que o estudo pareça se voltar para ‘idéias mortas’ e um passado já tido como superado, se somos cuidadosos nos damos conta de essa reminiscência é quase que um pré-suposto da liberdade do espírito, da possibilidade de vencer as idéias-feitas-e-prontas que, detrás da porta, nos vigiam e tentam nos conduzir.

Quem quiser contestar uma tradição, precisa penetrar cuidadosamente na sua lógica, sob pena de reproduzi-la ou, mais ainda, de virar escravo dessa tradição e dos paradigmas tácitos em que ela se funda. Estou agora envolvido em uma pesquisa que talvez pudesse ser resumida, toscamente, numa pergunta: existe uma teoria do desenvolvimento pós-ajuste? Ainda uma vez, a indagação vem acompanhada de uma inclinação normativa, a necessidade de reconstruir, subjetivamente, um horizonte que substitua (mas não renegue) as ‘utopias’ desalojadas do século XX. No mínimo, acertos de contas com o passado ajudam a pensar melhor o futuro – ou o risco de não tê-lo...

Se queremos ter certeza de que “outro mundo é possível”, é bom, é saudável, é mesmo indispensável que saibamos como e porque este mundo que temos produz, de modo persistente, as premissas de sua destruição. Uma destruição que, infelizmente, tem dimensões bem mais trágicas e amplas do que a falência dos dinossauros, porque estes, pelo menos, desapareceram sem destruir o planeta em que viviam. Esta sentença, talvez pessimista, conduz a pensar e a escrever, o que, ao fim das contas, é uma atitude otimista. Wladimir Ilitch Ulianov, dito Lenin, gostava de uma frase incompleta: “Estamos todos perdidos a não ser que...". Este "a não ser que" faz a diferença.

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Reginaldo Carmelo Corrêa de Moraes é professor do Departamento de Ciências Políticas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH)

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