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O novo mundo do trabalho
O trabalho no novo mundo
ÁLVARO KASSAB

O economista José Dari Krein: "empregabilidade" e "empreendedorismo" viraram palavras mágicas (Fotos: Antoninho Perri)O economista Marcio Pochmann (Instituto de Economia) e o sociólogo Ricardo Antunes (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) analisam a centralidade do trabalho e o papel a ser desempenhado pelo Brasil no contexto das profundas mudanças registradas na sociedade pós-industrial.

Jornal da Unicamp –Assistimos no universo do trabalho ao advento de novas tecnologias e de áreas do conhecimento até então inexploradas. Ao mesmo tempo, observa-se o declínio das atividades chamadas de “chão da fábrica”, relegando a atividade industrial a um plano secundário, e o surgimento de atividades – algumas marcadas pela virtualidade – que fogem ao figurino do que se convencionou chamar de “emprego”. Que análise o senhor faz da centralidade do trabalho hoje?

Marcio Pochmann – Estamos diante de uma falsa disjuntiva que vem sendo colocada pelo pensamento dominante. Ela pressupõe o seguinte: que os trabalhadores aceitem os empregos possíveis gerados pela nova ordem econômica internacional ou, do contrário, a alternativa é o desemprego. De uma certa forma, a sociedade está um pouco paralisada diante desse falso impasse.

Guardada a devida proporção, vivemos um momento parecido com aquele registrado há 150 anos, quando o capitalismo sofreu uma profunda transformação com o advento da segunda revolução tecnológica. Entre outras novidades, foi introduzido o tear mecânico. Essa mecanização tornava o homem um apêndice do processo produtivo e oferecia, do ponto de vista técnico, uma jornada muito menor que a praticada no período.

Já era possível, por exemplo, o ingresso no mercado de trabalho a partir dos 15, 16 anos de idade. A nova tecnologia abria a perspectiva de uma profunda intensificação do trabalho com enormes ganhos de produtividade. Tecnicamente, era possível, por exemplo, uma jornada de oito horas por dia numa indústria têxtil de Manchester. Embora isso fosse factível, as jornadas eram de 16 a 18 horas por dia, com forte presença de crianças e adolescentes no interior das empresas.

Foi necessário um amplo movimento, que uniu as forças sociais, políticas, científicas e econômicas, bem como a grande Depressão de 1920, duas Guerras Mundiais e uma alternativa ao capitalismo liberal (Revolução Russa, em 1917) para que fosse aberta a perspectiva de transformar a possibilidade técnica em realidade. Chegou-se então a uma nova forma de organização do trabalho. A legislação e as convenções coletivas estabeleceram um patamar de relações de trabalho que irrompeu o século XX sustentado em jornadas de trabalho menores – de oito horas, por exemplo –, com ingresso no mercado a partir dos 15 anos de idade, sendo que os adolescentes antes dessa faixa etária passaram a ter acesso à educação universal. Os trabalhadores conquistaram também, a partir de 30-35 anos de trabalho, os benefícios da aposentadoria.

Fiz essa digressão para chamar a atenção para o fato de que também estamos vivendo um momento de profunda mudança na base técnica. Estamos ingressando num capitalismo pós-industrial em que a produtividade é cada vez mais sustentada no trabalho imaterial. Estamos falando de atividades do setor terciário, não mais fortemente vinculadas ao setor agrícola, pertencente ao segmento primário, e as atividades secundárias – como a indústria, por exemplo.

São atividades em que a organização do trabalho é muito diferente. Não é mais o relógio que organiza decisivamente o tempo de trabalho. Estamos diante de uma outra forma de organização, já que o trabalho imaterial está submetido a um regime de maior intensificação. Passamos a conviver, por exemplo, com novas doenças profissionais que são evidentemente situações de agravamento desse estado de coisas.

Entretanto, continuamos discutindo as condições de trabalho ainda como herdeiros do capitalismo do século XX. É preciso considerar que estamos diante de uma nova possibilidade técnica de organização do trabalho, com jornadas diárias de quatro horas por três dias por semana, com ingresso no mercado de trabalho somente a partir dos 25 anos de idade. Antes disso, a pessoa deve ser totalmente integrada a uma educação que deve ser recebida ao longo de toda sua vida, diante da complexidade da sociedade contemporânea. Ademais, estamos próximos também de chegar a uma longevidade que vai bater ao redor dos 100 anos de idade, não mais nos 70 anos atuais ou – como era há um século - de 40 anos.

Do ponto de vista técnico, portanto, já é possível falar dessa nova condição do trabalho. Por conta disso, não pode continuar prevalecendo a falsa disjuntiva colocada pelo pensamento neoliberal – e da qual nos tornamos prisioneiros –, composta pela opção entre precarização e desemprego. É plenamente possível que todos trabalhem. Evidentemente que a centralidade do trabalho permanece como um elemento de organização da vida humana, mas, hoje, com uma temporalidade muito menor.

No século XIX, alguém que vivia em média 40 anos começava a trabalhar aos 5, 6 anos de idade na agricultura. Essa pessoa trabalhava de 14 a 16 horas por dia, até morrer. Nessa sociedade agrária, o trabalho centralizava 70% do tempo de vida. Na sociedade urbana e industrial do século XX, a centralidade do trabalho, do ponto de vista do seu tempo, é menor, já que estamos falando de alguém que vai trabalhar a partir dos 15, 16 anos de idade, continuará no ofício até os 60/65 anos e depois ainda viverá mais de 5 a 15 anos de inatividade, tendo trabalhado oito horas por dia. O tempo de trabalho, para alguém que tenha vivido em média 70 anos, deverá representar alguma coisa como 45% do tempo de vida.

Na sociedade pós-industrial, se a história nos serve de referência, podemos pensar que o trabalho deverá representar alguma coisa em torno de 20 a 25% do tempo de vida de alguém que possivelmente viverá 100 anos, ingressará no mercado de trabalho a partir dos 25 anos e trabalhará talvez até os 75 anos de idade. Sua jornada poderá ser de quatro horas diárias durante três dias por semana.

Isso pode parecer alguma coisa fora do horizonte, mas é uma utopia plenamente possível de ser admitida na medida em que a gente olha a história do trabalho sob o capitalismo e percebe esses avanços. É claro que essa possibilidade técnica só será possível se houver evidentemente uma concepção de que isso é factível, se houver pressão social e uma articulação política, econômica, social e científica em torno dessa nova questão do trabalho. Não tenho dúvida de que a gente pode marchar para essa sociedade superior.

Ricardo Antunes – É importante destacar que o mundo do trabalho, não só no Brasil, mas em escala global, não é hoje unitendencial, mas politendencial ou multitendencial. Os teóricos do fim do trabalho, essa tese unidimensional de meados dos anos 1980, equivocaram-se ao dizer que o trabalho estava em vias de desaparição.

Para mostrar o equívoco cabal dessa tese, o país que mais cresce hoje em termos capitalistas, em escala global, é a China. Ela tem uma força de trabalho de mais de 800 milhões de pessoas, o que permite o rebaixamento da remuneração da força de trabalho a um nível antes inimaginável. O nível de degradação é tão grande que a força de trabalho brasileira é considerada cara se comparada à chinesa. A China adiciona um mercado interno imenso, além de ter uma penetração ampla no mercado global. Possui também estrutura de empresas em rede, com um nível técnico-informacional razoavelmente desenvolvido e em expansão. Ficou para trás o tempo em que a China estava na retaguarda. Hoje, ela emerge como uma potência, inclusive no plano das tecnologias avançadas.

Tudo isso fez com que passássemos a ter um desenho muito multifacetado. O setor de serviços se mercadorizou. É natural que ele tenha assalariado um novo e enorme contingente de força de trabalho. O telemarketing é um exemplo. No Brasil, o setor emprega 600 mil pessoas, sendo que 70% dessa força de trabalho ou mais é feminina. Os serviços se sujeitaram à lógica da acumulação. Não existem mais aqueles serviços públicos que preservavam certos níveis de bem-estar social; eles foram quase todos privatizados. A telefonia brasileira é exemplar nesse contexto. Por outro lado, não acredito que a atividade industrial tenha sido relegada a um segundo plano. É preciso tomar cuidado. O que aconteceu é que ela foi inteiramente reelaborada. Não há país hoje que não tenha uma mescla de serviços com a indústria – daí vem a expressão serviços industriais. Há uma imbricação importante. Acabou a chamada teoria dos três setores – agricultura, indústria e serviços. Hoje se tem uma coisa muito mais interpenetrada – por exemplo, a agroindústria, que encanta tanto o lulismo.

Na medida em que houve mais interpenetração do que setorialização, a classe trabalhadora esparramou-se. Você encontra trabalhadores industriais na Honda ou na Toyota, na região de Campinas. Acontece que não é mais aquela planta taylorista e fordizada em que havia, num passado recente, com milhares de trabalhadores. As unidades são enxutas. O maquinário técnico-operacional é avançado e a estrutura das empresas é menor e espraiada em um sistema de redes e contratadas.

Com essa estrutura em rede, além da redução dos custos das empresas, os capitais buscam fraturar a organização de classe dos trabalhadores. Registrou-se uma retração do proletariado industrial taylorista e fordista, e uma ampliação das múltiplas formas de assalariados. A indústria tem peso, mas ela está na imbricação com os serviços, com a agricultura e com o setor financeirizado. É importante lembrar que a financeirização não existe sem lastro material.

Num plano mais geral – imprescindível, porém –, falar no fim do trabalho é, no limite, insustentável. Se eu tiver uma concepção ampliada de trabalho, como sinônimo de atividade humana vital, todas as formas de sociabilidade humana, desde o passado mais remoto até as projeções mais longínquas, estão a ele associadas. Num plano ontológico, a humanidade não pode reproduzir-se sem trabalho, aqui entendido como atividade vital que produza bens socialmente úteis.

Eu diria que sua centralidade hoje se coloca em vários planos. Primeiro: uma tendência prevalente a não se ter mais o trabalho de que falava Taylor – manual e físico. Estamos numa uma era em que o trabalho passa a ser gerador de valor nas suas múltiplas facetas. O dado novo são aqueles trabalhos que trazem dentro si níveis de informação – certos nexos de trabalho intelectual e até mesmo imaterial – que passam a agregar valor.

É sintomático que o slogan da fábrica da Toyota, na cidade japonesa de Takaoka, seja “bons pensamentos significam bons produtos”. Um traço importante é que o capital supriu a crise da indústria taylorista e fordista a partir de uma nova engenharia produtiva, chamada empresa flexível, liofilizada, que reduz muito mas não pode viver sem alguma modalidade de trabalho humano vivo.

Entretanto, aquele trabalhador que nela permanece labora em todas as dimensões, manual e intelectual, física e cognitiva. As empresas o chamam de “parceiros, colaboradores e consultores”. São formas falaciosas que passam a idéia de que ele é um partícipe, um sócio, um parceiro.

Para compreender a nova centralidade no mundo do capital, é preciso entender também o papel desempenhado por aquele trabalho mais dotado de tecnologia de informação. Ele é relativamente mais intelectualizado – não no sentido de uma intelectualidade plena – mas que atua de modo relevante na criação de mercadorias. Como vivemos uma era simbólica, a era involucral do capitalismo, cada empresa precisa ter uma marca. Ampliam-se também os proletários do trabalho de tecnologias informacionais, o que Ursula Huws chamou de cybertariado, o novo proletariado da era da cybernética. É preciso entender que a lei do valor hoje carece dessa nova morfologia presente no mundo do trabalho.

A massa de desempregados é outro pólo muito importante. A OIT fala em 195 milhões, mas penso que seja muito mais do que isso. A contabilização real do desemprego da China e da Índia, por exemplo, deve ser bastante desconhecida. Ademais, as estatísticas não levam em conta o desemprego por desalento – aquele indivíduo que não procura mais trabalho porque desistiu - e nem aquele que trabalha precariamente algumas horas por semana. Existem formas que acabam escondendo o desemprego, que é mais amplificado. Por fim, só posso entender por que existe esse conjunto de desempregados a partir da centralidade do trabalho. É no mundo da criação do valor que é possível precarizar, desempregar e mesmo “excluir”. Trata-se de um conjunto imenso de seres sociais que se incluem pela via da exclusão. Como há um excedente imenso de força sobrante de trabalho, os capitais levem a remuneração da folha a um nível muito baixo. As condições de trabalho, por sua vez, quando se pensa nas maiorias, são cada vez piores.

As indústrias automobilísticas européias, por exemplo, estão ampliando a jornada de trabalho, ao contrário de uma tendência que já vinha sendo vivenciada há várias décadas. Estão depauperando a classe trabalhadora, processo que atinge inclusive seus extratos mais altos. Por isso que venho defendendo a tese de que já vivemos a era da precarização estrutural do trabalho.

Mais: vivemos uma contradição visceral. A era da informatização, ou seja, do mundo informacional, maquinal, digital, corresponde à época da informalização do trabalho. Quando poder-se-ia esperar que um melhor aparato técnico-científico pudesse melhorar as condições do trabalho, nós estamos presenciando o oposto, porque a lógica técno-científica é movida pelos interesses destrutivos do capital. Por isso, em vários setores, o trabalho está se tornando quase virtual. Mas é preciso compreender seu significado para o capital e o papel desempenhado nos últimos anos pela China e pela Índia mostra que é insustentável a tese de que o trabalho é irrelevante para a criação do valor.

JU –Qual o papel do trabalhador brasileiro nessa nova configuração?

Marcio Pochmann – Historicamente, assumimos uma desvantagem por força do atraso a que se foi relegada pelo conjunto de erros de nossa elite. Fomos montar automóvel quase 70 anos depois de ele ter sido inventado. Este atraso nos impôs conseqüências, já que sempre fomos um país da periferia do capitalismo. De uma certa maneira, estamos vivendo neste início de século uma oportunidade singular. Isso porque, se é verdade que estamos diante de uma revolução tecnológica que altera a base técnica do capitalismo e impõe conseqüências na própria organização do trabalho, inegavelmente esta é a primeira vez que o Brasil está muito próximo – diria que até participando – deste momento de mudança na base técnica.

Na primeira revolução tecnológica, no século 18, o Brasil era colônia de Portugal. As novidades protagonizadas pela Inglaterra passaram muito distantes do Brasil. Na segunda revolução tecnológica, no final do século 19, a indústria automobilística, o motor a combustão, o petróleo, o telefone etc, também passaram muito longe de nós. Estávamos à época envolvidos com o anacronismo do trabalho escravo e fazíamos – sem ruptura - a passagem do Império para a República. Lamentavelmente, ficamos para trás.

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