Leia nessa edição
Capa
Artigo: financiamento a C&T
Cartas
Ianni: chama da utopia
Ianni: responsabilidade
intelectual
Ianni: poesia na sociologia
Renato Ortiz
Inéditos
Cylon Gonçalves
Painel da semana
Unicamp na mídia
Oportunidades
Teses da semana
Básico I - coração do campus
Empresas juniores
E dona Maria aprende a ler
 

4

Ianni, a responsabilidade

intelectual levada ao limite


ELIDE RUGAI BASTOS*

Para um leitor do pensamento social, a forma pela qual um autor se relaciona com a problemática que aborda diz muito, não apenas sobre seu perfil intelectual como a respeito de sua personalidade. Mais ainda, explicita o modo pelo qual se relaciona com o mundo. Percorrendo a ampla gama de preocupações que atravessam a obra de Octavio Ianni, podemos perceber um traço, várias vezes assinalado pelos que o conheceram, que o destaca como figura das mais notáveis entre a intelectualidade nacional: além de ser reconhecido como um dos mais importantes cientistas sociais brasileiros, foi uma referência ética nesse campo, pois jamais abriu mão do compromisso com a justiça social e a liberdade.

As dezenas de livros e artigos por ele escritos, que ampliaram o horizonte das investigações na área das ciências sociais, abrangem um largo espectro de problemas e dilemas que atravessam a sociedade contemporânea. Lembro uma questão entre as muitas, que ilustra sobremaneira essa sua qualidade de referência ética e intelectual.

Um dos temas fundamentais da reflexão de Octavio Ianni foi a análise da condição social do negro brasileiro. Temática de sua primeira grande pesquisa – da qual resultou primeiramente parte do livro Cor e mobilidade social em Florianópolis (1960), em seguida Metamorfoses do Escravo (1962), – atravessou, embora nem sempre centralmente, toda sua obra. Mais que isso, a questão do negro no Brasil não foi para ele somente um assunto de reflexão, mas objeto de constante militância.

Questiona, em seus trabalhos, não apenas a bibliografia consagrada sobre a questão étnica, mas também os comportamentos que fundam as relações sociais no Brasil. Mostra como, ao definir-se a situação da população negra e mulata no Brasil, a raça é elemento dos mais importantes, pois funda a assimetria das relações sociais. Essa ausência de paralelismo nas trocas sociais leva à configuração de uma desigualdade perversa, não só porque impede que grande parte da população tenha acesso aos bens sociais, como opera como reprodutora da condição de excludência. Aqui se coloca a questão principal que orienta sua reflexão: como romper esse círculo vicioso?

Na busca de respostas a essa pergunta desenvolve grande parte de sua investigação e enfoca a situação de submissão dos negros na sociedade brasileira. Denuncia o racismo camuflado, a exclusão da população negra dos melhores empregos e salários, o não acesso às melhores escolas, o que afeta sua possibilidade de competição, a concentração racial da riqueza e do poder. A partir dessa constatação, critica as interpretações sobre a questão racial que veiculam a idéia de que a predominância no Brasil é do preconceito de classe e não do de raça, como se fosse um mero acidente o fato de o negro e o mulato concentrarem-se nas classes mais pobres, tanto na cidade como no campo.

Nessa direção, em Raças e classes sociais no Brasil (1970) e Escravidão e racismo (1978) mostra que raça e classe são categorias complementares na análise e como essa articulação se constitui como base dos conflitos sociais tanto no Brasil como no restante da América Latina. Assim, indo além das atitudes, das verbalizações, dos comportamentos visíveis, indica que o substantivo da avaliação reside na percepção das práticas sociais nas relações de produção, na escola, na família, nas igrejas, na hierarquia militar, na administração pública.

Ao lado de Mário Schemberg, Octavio Ianni fala durante a Semana Karl Marx, realizada em março de 1983 em São PauloÉ certo que o desnível de oportunidades já aponta para a existência de práticas sociais discriminatórias em relação ao negro, constituindo-se como um limite ao avanço da democracia. Mas, como Ianni demonstra, essas manifestações discriminatórias expressam técnicas de preservação de interesses e privilégios e, por isso, impedem a livre circulação das pessoas segundo sua competência e sua qualificação. Assim, a questão racial acaba por transformar-se em componente fundamental da política e, desse modo, afeta o debate, o encaminhamento e a resolução da questão nacional nos países latino-americanos.

Mas, se a pesquisa é fundamental para a compreensão das transformações da sociedade, a ação também o é: com esse intuito, Ianni aproxima-se dos movimentos sociais. Busca perceber o sentido do protesto negro tanto como força que operou na história da sociedade brasileira como no seu delineamento presente. Aprende com ele. Descobre seu sentido de desvendamento, desmistificação do véu ideológico que recobre a realidade da condição da raça negra. Isso explicaria as mobilizações em sua diversificação no espaço e no tempo, além da amplitude de sua ação, ora afirmando uma cultura afro-brasileira, ora lutando contra qualquer espécie de discriminação. Acata a diversidade de direções. Compreende, desse modo, a articulação entre a literatura negra e o movimento negro, notando que ambos conjugam-se e se retroalimentam. Sua construção é simultânea, um não sendo superior ao outro. Absorve esse dado como uma lição para a direção do trabalho intelectual.

Com os desafios do presente, com a cristalização de uma sociedade global, com o fato de os homens depararam com uma nova etapa da história, desloca-se a ação do movimento negro, que passa a beneficiar-se do debate mais amplo sobre os direitos universais. Ianni levanta algumas indagações sobre os caminhos da nova história da questão racial, agora dentro de diferentes condições de existência. A definição dessas novas condições é objeto de seus livros recentes: A Sociedade Global, de 1992, A Era do Globalismo, de 1996, e Enigmas da Modernidade-Mundo, de 2000.

Com a questão racial quis exemplificar, brevemente, como Ianni percebeu a recriação das diversidades e das desigualdades no Brasil, em vários momentos da história e, através dessa reflexão, exerceu permanentemente a crítica. Em outros termos, como assumiu um traço intrínseco à condição de intelectual: vincular a atividade de pensar ao compromisso de elevar a condição humana.


*Elide Rugai Bastos é professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp

Repercussão

"O professor Ianni foi um dos grandes intelectuais brasileiros. Dedicou-se a conhecer e a entender a sociedade brasileira como poucos já o fizeram. Sua imagem é um modelo de pessoa acadêmica, comprometida com o avanço do conhecimento, com o método da ciência, a educação de estudantes e a defesa de idéias. Sua ausência será muito sentida."
Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Unicamp




A morte do professor Octavio Ianni deixa um vazio muito grande. Fica a ausência de um pensador e de um in-telectual extremamente preocupado com o destino da sociedade brasileira, com as injustiças sociais e com a necessidade de construção de uma nova ordem e de uma nova forma de organização social no Brasil. Demonstrou, até o final da vida, uma dedicação imensa ao ensino e ao debate – vale dizer que, apesar de doente e de estar na condição de professor a-posentado compulsoriamente, deu aula na Unicamp até dez dias antes de falecer.

Nós perdemos um grande colega, um homem extremamente dedicado aos interesses do povo brasileiro. Seu maior legado foi a análise que fez do Estado brasileiro e de sua formação. Fez também uma análise crítica única do desenvol-vimento do capitalismo no Brasil. Essa é uma contribuição fundamental para todos nós.
Rubem Murilo Leão Rego, diretor do IFCH-Unicamp


Além da obra, que foi extremamente evolutiva – do jovem intelectual até o grande sociólogo da globalização –, o professor Octavio deixa um legado particularmente imenso na área de ensino. Ele formou pelo menos dez gerações de sociólogos, economistas e cientistas políticos. Não consigo enumerar o volume de teses de mestrado e doutorado que o professor Octavio orientou, mas é de uma qualidade e quantidade impressionantes. Outro grande legado seu foi a ética. Sempre foi um grande sociólogo, extremamente discreto, cumpridor de seus deveres, absolutamente dedicado aos alunos e sem nunca se deixar contaminar pela única doença profissional da universidade, que é a vaidade.
Geraldo Di Giovanni, professor do Instituto de Economia da Unicamp


Octavio Ianni era de uma geração que estudou e consolidou as ciências sociais no Brasil, além de ter feito uma obra importante com Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira e Fernando Henrique Cardoso. Obra que, de uma certa forma, é um desdobramento do Caio Prado e de Werneck Sodré e que teve o papel de desvendar o que era o Brasil, um país até então praticamente desconhecido. Sua importância também foi muito grande na área da teoria, na introdução de uma sociologia de cunho marxista e dialético no Brasil, além de seu pioneirismo no estudo da globalização, deixando vários livros que são extremamente importantes. Sua perda está inserida em outra perda, que é a de uma geração que está sumindo e que será muito difícil de ser reposta. São quadros de intelectuais orgânicos cujas elaborações e análises foram inclusive incorporadas por diferentes classes sociais, por instituições e foram fundamentais na construção de uma universidade pública no Brasil, o que não é pouca coisa.
José Antonio Segatto, diretor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP