Leia nessa edição
Capa
Artigo: financiamento a C&T
Cartas
Ianni: chama da utopia
Ianni: responsabilidade
intelectual
Ianni: poesia na sociologia
Renato Ortiz
Inéditos
Cylon Gonçalves
Painel da semana
Unicamp na mídia
Oportunidades
Teses da semana
Básico I - coração do campus
Empresas juniores
E dona Maria aprende a ler
 

3

Ianni manteve acesa a chama da utopia até os últimos dias


"É difícil acreditar que ele tenha nos deixado".



A relação do reitor da Unicamp, professor Carlos Henrique de Brito Cruz, traduz a perplexidade da comunidade acadêmica com a morte do sociólogo e professor Octavio Ianni, ocorrida no último dia 4. Mesmo lutando contra o câncer que o vitimou, Ianni manteve-se fiel à sua dedicação à pesquisa e ao ensino até uma semana antes de falecer, aos 77 anos. Brito Cruz lembra que, em almoço no Gabinete da Reitoria no último dia 9 de março, encontrou um Ianni disposto e muito animado com o curso de pós-graduação que vinha lecionando no IFCH. Conversaram, entre outros assuntos, sobre as políticas de ação afirmativa e o acesso à Unicamp de estudantes oriundos de escolas públicas. "O conhecimento e a experiência do professor Ianni nos ajudaram a entender mais sobre este tema", testemunha o reitor.

Seis dias antes do encontro com Brito Cruz, Ianni foi aplaudido de pé por cerca de 2 mil pessoas no Anfiteatro da USP, onde deu a Aula Magna da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) a convite do professor Sedi Hirano, que foi seu aluno, orientando e colega nos anos 60, na Rua Maria Antônia, e hoje dirige a FFLCH. Ianni falou sobre o tema Ciência e Arte, ao qual vinha se dedicando nos últimos tempos. "Foi uma das maiores emoções da minha vida. Vi um brilho nos olhos de Ianni, um professor com mais de 45 anos dedicados à universidade pública. É difícil dimensionar o tamanho da sua emoção, mas é certo que havia nesse brilho uma satisfação no sentido de que a Aula Magna significou alguma coisa para os alunos."

O professor Octavio Ianni é aplaudido por alunos, docentes e funcionários depois de dar aula inaugurl no anfiteatro da USP, no último dia 3 de marçoHirano conheceu Ianni numa situação inusitada, na ocasião em que foi prestar o vestibular, em 1960, para o curso de Ciências Sociais na USP. Durante a prova, depois de discorrer sobre o tema Fatores Humanos da Industrialização do Brasil, Hirano foi indagado pela professora Célia Quirino, da banca de História do Brasil, de onde havia tirado as informações. O então candidato respondeu: "De um artigo publicado na Revista Brasiliense, de autoria de um tal de Octavio Ianni". A professora levou a conversa adiante: "Mas quem é esse tal de Octavio Ianni?". Hirano respondeu: "Deve ser um historiador ou assemelhado...". A examinadora emendou: "Pois então, apresento o tal de Octavio Ianni, o presidente da mesa". Foi o primeiro contato de uma amizade que atravessaria as mais de quatro décadas seguintes.

Tão logo ingressou na Maria Antônia, Hirano foi abordado por Ianni nas escadarias da faculdade. Vieram os parabéns, as primeiras palavras de incentivo e de carinho. Depois, as pequenas doações, marca registrada do mestre. "Toda a vez que Ianni tinha uma duplicata de livro na área de sociologia, ele me dava um exemplar de presente. Quando o livro era de sua autoria, fazia uma dedicatória me incentivando. Era quase um chamamento, quase uma missão a ser desempenhada. Era um professor extremamente preparado – suas aulas tinham introdução, desenvolvimento e conclusão."

Ao terminar o curso em 1964, Hirano foi fazer especialização e, por indicação do próprio Ianni, tornou-se professor assistente de Florestan Fernandes, ocupando o lugar de Fernando Henrique Cardoso, que foi para o Chile depois do golpe militar. Três anos depois, em 1967, elaborou seu projeto de mestrado, tendo como orientador Octavio Ianni. A parceria seria abortada com o AI-5, que resultou, em 1969, na aposentadoria do mestre. Hirano passou a ter outro orientador, mas os frutos ficaram. O projeto transformou-se no livro Castas, estamentos e classes sociais: Introdução ao pensamento sociológico de Marx e Weber (Editora da Unicamp, 3ª edição).

Na avaliação de Hirano, Ianni "era a essência da generosidade, um homem que acreditava em todas as pessoas. Para ele, não existia o aluno ruim, médio ou excelente. Ele acreditava que essa força vinda das pessoas poderia fazer com que vários intelectuais atuassem na direção de uma renovação da sociedade brasileira". Uma generosidade que caminhava junto, na avaliação de Hirano, com a chama da utopia mantida acesa "pela paixão pelas ciências sociais e pela universidade pública gratuita e acessível a todos".

O professor Sedi Hirano, diretor da FFLCH: amizade de mais de 40 anosHirano destaca também a importância do conjunto da obra de Ianni e vai mais longe. "Se Ianni, um homem extremamente simples e que tinha um discreto carisma, não tivesse acreditado num jovem que veio da periferia de São Paulo [Itaquera], filho de imigrantes japoneses que não tinham capital social, cultural e financeiro, eu não teria chegado aqui. Sou um produto da aposta que Octavio Ianni e Florestan Fernandes fizeram em mim. Ambos introduziram uma prática acadêmica de democratização."

Orientando – O sociólogo Marcelo Santos vinha sendo orientado pelo professor Ianni no curso de doutorado do IFCH. Seu projeto abordava as relações Estados Unidos –América Latina no contexto do globalismo. Foram quase oito anos de amizade e aprendizado com o professor emérito da Unicamp – Ianni já havia orientado Santos no mestrado. As palavras do aluno expressam tudo. "O professor Ianni era uma das pessoas mais belas que conheci. Era dotado de uma generosidade e de uma humildade extremadas. Mais que isso: tinha uma preocupação intensa de externar esses valores, tanto na sua conduta pessoal como na acadêmica."

O doutorando revela que inúmeras vezes enviou um texto para que Ianni fizesse as observações, e o retorno era quase imediato. Impressionava no estudante o compromisso que seu mestre tinha com a universidade pública e com a pesquisa. "Era um educador incansável. Do ponto de vista acadêmico, o pouco que sei devo a ele. E por várias razões. Ele tinha uma preocupação em mostrar como se escrevia, como se organizava um conjunto de idéias e como devia ser redigido um capítulo de tese. Nunca atropelou etapas. Se hoje consigo desenvolver a pesquisa, devo ao Octavio". Ainda sob o impacto da perda, Marcelo não sabe como vai tocar seu projeto, mas tem uma certeza: o professor Ianni cimentou as bases do seu trabalho. "O compromisso que tenho neste momento é o de fazer um trabalho digno da orientação que tive."


Repercussão

A forma como o professor Ianni se relacionava com a vida e conosco era única. É muito difícil falar dele sem me emocionar. Nesses anos em que ele trabalhou no IFCH, todos nós aprendemos. Quando você lê sua obra e pensa em como ele era, você constata que não eram diferentes. O professor era o que escrevia, e ele escrevia porque acreditava no poder transformador de sua obra. Sua maneira de ser era muito peculiar. Conversava muito com ele. Uma vez, quando foi aos Estados Unidos para um ciclo de palestras, na volta, me contou suas impressões. Em outra ocasião, quando eu estava digitando a primeira versão de O Príncipe Eletrônico, tinha uma frase em que estava escrito "agora". Fiquei na dúvida sobre o significado da palavra e resolvi perguntar a ele – foi o suficiente para ter uma aula de meia hora sobre o que significava "ágora". Pensei: que privilégio!

O professor Ianni era de fato um educador. Uma pessoa que tem o mesmo tempo para todo mundo é um educador por excelência. Para mim, isso era o que o diferenciava. Em seu enterro, quando vi uma sobrinha falando o tipo de tio que ele era – solícito, prestativo, sempre disposto a ajudar – fui entender o quanto esse sentido de família é complicado; mas, ao mesmo tempo, descobri que é bonito, já que ele era assim com todo mundo. Não havia nada que a gente perguntasse que, de alguma forma, ele não desse uma resposta. É isso o que a gente espera da academia: aprender.

Cursei História, estudei sua obra e de todos os integrantes da "Escola paulista de Sociologia", que se preocuparam em dar uma resposta para a questão dos negros no país. A partir daí, muita coisa mudou. O fato é que essa escola foi um marco para a historiografia brasileira. Independentemente das discussões levadas a cabo pela academia sobre a validade dessas teorias, muitas indagações surgiram. Acredito que, a partir daí, é que surgiram outras possibilidades. Isso é muito legal, eles foram muito importantes.

Quando o professor Milton Santos morreu, o professor Ianni me disse que havia pensado muito em mim durante o enterro, já que sabia do meu apreço pela obra e pela pessoa do geógrafo. Então, as pequenas e as grandes experiências que tive com ele me emocionaram. O professor Ianni tinha uma preocupação em nos engrandecer, em dar mais elementos para a nossa discussão. Ele fazia a gente entender, qual fosse a discussão, quais os seus pontos relevantes. Na verdade, seu espírito era muito jovem. Ele vai fazer muita falta para todos nós. Já está fazendo.
Magali Mendes, funcionária da livraria do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH)


O professor Ianni deixa uma lacuna muito grande. Com todo seu conhecimento, o professor deixa a imagem de uma pessoa extremamente simples, sem vaidade. Era um eterno aprendiz. Quando ele ganhou o título de professor emérito da Unicamp, os funcionários fizeram um cartão com os seguintes dizeres: "O senhor é um sábio, um eterno aprendiz e um mestre". Ele sempre colocou seu conhecimento a serviço dos outros. Ele jamais vinha ao Instituto sem falar com os funcionários. Passava, sentava um pouquinho e falava: "Como você está? Só passei para saber como você está". Ele transmitia para as pessoas uma paixão intensa pela vida e pela universidade pública. Era um sábio, não tenho mais o que falar.

Elisabeth Solange dos Santos Oliveira, secretária do Departamento de Sociologia do IFCH

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP