A invenção sem fronteiras

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Uma série de atividades, entre comunicações orais, mesa-redonda e apresentações musicais, marca hoje a passagem de Egberto Gismonti pela Unicamp, no âmbito do V Festival de Música Contemporânea Brasileira. 

O professor e músico Paulo Tiné, que vai participar da mesa-redonda “Estética musical e textura rítmica nas obras de Egberto Gismonti”, orientou duas pesquisas sobre o compositor fluminense no Instituto de Artes (IA), local das atividades do festival (veja a programação de hoje).

Para Tiné,entender a música de Gismonti, seu contexto e sua significação é, de certa forma, entender a nós mesmos”. Na entrevista que segue, o docente analisa a obra e fala sobre o lugar de Egberto na música brasileira.

Foto: Perri
O professor Paulo Tiné: “As contribuições foram imensas, sobretudo no âmbito da música instrumental”  


Qual o lugar de Egberto Gismonti na música brasileira contemporânea?

Paulo Tiné – Egberto Gismonti já tem hoje uma posição consolidada, mais na música popular, dentro de um lugar fruto do contexto da década de 1970 que terminou por classificá-lo, junto a Hermeto Pascoal, como o lugar da vanguarda e de experimentalismo. Paradoxalmente, naquela época, a junção desses termos (vanguarda e popular) foi possível por uma série de fatores históricos, culturais e sociais. Entretanto, especificamente naquilo que se classifica como música brasileira contemporânea, que é o lugar da música clássica brasileira de hoje, Egberto não é consenso.

O meio de produção e manutenção desse tipo de música é restrito a ambientes acadêmicos ou de lugares parcialmente públicos, como o ambiente dos SESCs, que incentiva esse tipo de produção. Mas deve-se ressaltar que, apesar disso, a música de Gismonti circula em muitos ambientes de música clássica também, até por ser uma música que cultiva o hábito da escrita. O ambiente onde possivelmente haja ressalvas à sua produção seria, especificamente, o da composição de música clássica contemporânea.


Em sua opinião, quais foram as maiores contribuições do compositor para o que se convencionou chamar de linha evolutiva da música brasileira?

Paulo Tiné – Em primeiro lugar devemos lembrar que esta expressão da “linha evolutiva”, se não me engano, foi forjada por Caetano Veloso no contexto da década de 1970, sobretudo no contexto do Tropicalismo. Para isso, precisamos ter um olhar de certa forma linear sobre os acontecimentos da história da música popular do Brasil e acreditar numa certa narrativa histórica sobre a MPB, cuja sigla, por si, já explicita esse pensamento.

Entretanto, deixando de lado essas ressalvas, as contribuições foram imensas, sobretudo no âmbito da música instrumental. A música de Gismonti encerra o ciclo do samba jazz e da abordagem ligada à improvisação jazzística, dando maior ênfase ao violão que tem influência, sobretudo, de Baden Powell. Como arranjador insere procedimentos experimentais que, sim, dialogam com correntes de música contemporânea da década de 1970, procedimentos que incidem em uma maneira muito particular e única de tocar piano.

Somando-se a isso muitos traços de ritmos populares brasileiros e aspectos ligados a um certo misticismo, também característico dos anos 70 e 80. As experiências do Xingu, da Índia e com religiões afro-brasileiras findam trazer traços étnicos  à sua música que extrapolam o âmbito dos elementos musicais nacionais ainda que, em última análise, tudo serve à sua brasilidade particular, de certa forma, uma postura antropofágica. Não à toa, sua música foi classificada como “selvagem”, principalmente a música do antológico "Dança das Cabeças". 


O conjunto da obra mostra que Gismonti conseguiu fazer o novo com um pé na tradição. O que o senhor acha dessa fusão e o que dela resultou?

Paulo Tiné –  Eu, particularmente, gosto muito. Na verdade aprendi a gostar da música de Egberto. Não é uma música fácil, exige uma postura ativa por parte do ouvinte e muitos discos são de uma proposta de suítes, ou seja, de músicas intercaladas. Ele faz bastante uso de ambientes sonoros que complementam a música.

E, na verdade, esse pé na tradição também é um pé de invenção ou de uma tradição que lhe é peculiar. Como exemplo disso, pode-se constatar o quão pouco de frevo há em sua peça Frevo e o quanto seu Maracatu é estilizado. Não me parece que Gismonti tenha estudado exaustivamente os cânones dessas manifestações, mas se apropriou delas de maneira personalizada e singular. Talvez se possa dizer o mesmo de Villa Lobos.  

Como o sr. vê a homenagem prestada a ele no festival, ainda mais em se tratando de um país cujo forte está longe de ser a memória?

Paulo Tiné – A presença dele, e de todos os outros e outras desta edição e das edições anteriores é algo extremante importante. Estamos trabalhando com músicos vivos e do presente. Nossos objetos de estudo e fonte de inspiração estão aí. Claro que nossa abordagem deve sempre se pautar por um distanciamento e posicionamento crítico, mas no campo da arte acredito que podemos entendê-la como um tipo específico de produção de conhecimento que é singular a cada obra composta ou improvisada e cuja fórmula, normalmente, serve exclusivamente ao exemplo singular. O mesmo vale para casos como o de Egberto. Assim, entender a sua música, seu contexto e sua significação é, de certa forma, entender a nós mesmos.

 

 

‘O diálogo com um universo expandido’

 

Foto: Divulgação
Bia Cyrino: “A obra de Egberto é um exemplo nítido daquilo que se concebe como o território da “intersecção” das práticas dos universos erudito e popular” | Foto: Divulgação

A pianista e pesquisadora Bia Cyrino vai participar de uma das comunicações orais programadas para hoje, com o trabalho intitulado A sonoridade de Egberto Gismonti no início de sua trajetória (1969-1977)”. Segundo a pesquisadora, que é docente e coordenadora do Curso Superior de Música da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), a apresentação de hoje vai mostrar um pouco de sua pesquisa de doutorado, defendida em 2016 no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, com o título “Um coração futurista: desconstrução construtiva nos processos composicionais de Egberto Gismonti na década de 1970”. A orientação foi do professor Rafael dos Santos.

“Como todo trabalho de pesquisa, a tese abriu discussões que ainda necessitam de mais aprofundamento”, afirma, revelando que, na apresentação de hoje, ela pretende deter-se mais no conceito de ‘sonoridade’”, enfatizando o material composicional e a estrutura das músicas de Egberto Gismonti. “Quero demonstrar os parâmetros analíticos que nos fazem perceber a sonoridade como uma dimensão fundamental de uma obra musical, em detrimento de seus parâmetros melódicos e harmônicos”. Abaixo, a pianista fala sobre a sua tese e sobre a obra do compositor fluminense.

Qual foi o eixo temático de sua tese?

Bia Cyrino – A origem da ideia da realização da pesquisa sobre Egberto Gismonti se deu a partir de um conteúdo que comecei a investigar durante o mestrado, no qual me dediquei ao estudo da produção musical de um grupo brasileiro chamado “Som Imaginário”, que produziu na transição das décadas de 1960 e 1970. Este é um período muito rico musicalmente e uma fase bastante conturbada no que diz respeito à situação política e social do Brasil. Desta forma, no doutorado, procurei permanecer me aprofundando neste momento histórico, só que desta vez com uma ênfase maior em um pianista, em razão da minha especialidade como musicista, e na música instrumental. Foi neste momento que busquei a obra de Egberto Gismonti.

Você já tinha referências sobre a sua obra?

Bia Cyrino Pouco sabia sobre sua produção inicial, pois o reconhecia mais como um músico instrumental. Foi assim que descobri que Gismonti iniciou sua atuação no mercado da música popular no Brasil no ano de 1969 e, até 1977, lançou diversos discos, muitos dos quais voltados à produção de canção popular brasileira. Assim, o recorte da pesquisa se dirigiu à análise musical destes primeiros discos.

Por estar inserida na área de pesquisa acadêmica que hoje se define como “música popular”, procurei não somente analisar estruturalmente sua produção musical, mas também buscar conexões entre os aspectos desta e as transformações sociais e culturais daquele período.

Delimitei meu material de análise em fonogramas retirados de oito de seus álbuns, e uma boa parte da pesquisa foi dedicar-me à transcrição deste material, me atendo principalmente às regravações de determinadas composições que aparecem mais que uma vez nesta discografia, cada versão com arranjos bem distintos.

A comparação entre estas versões foi fundamental como ferramenta metodológica da tese. Busquei também por documentos históricos que permitiram o reconhecimento das condições mercadológicas a que Gismonti estava submetido no período estudado. Foram coletados em torno de 40 reportagens de jornais e revistas entre 1969-1977.

Quais foram os achados dessas prospecções?

Bia Cyrino O material musical analisado e situado em contexto permitiu a elaboração de discussões a respeito dos sentidos mais amplos que a música de Gismonti apresenta naquele período histórico. De maneira geral, a tese propõe que o tipo de narrativa musical encontrada na produção musical deste recorte está conectada a uma outra visão de mundo, oposta à ideia do “ser nacional” que comumente se associa às outras produções da música popular brasileira daquele período.

Podemos ver em seu processo criativo o diálogo com um universo expandido de informações culturais provenientes de diversos lugares do mundo, e sua relação com outras identidades culturais que não são mais fixas, que atravessam fronteiras naturais.

Quais foram as conclusões da pesquisa?

Bia Cyrino – Pudemos lançar luz na velha discussão entre a famosa mistura entre “erudito e popular”, chegando à conclusão de que as noções antagônicas já não dão conta de explicar aquilo que se reconhece por “híbrido” na obra de Gismonti.

Procurei, ainda, elaborar a maneira como Gismonti utiliza os procedimentos de determinada prática musical nos seus processos criativos. Para isso, trouxe alguns conceitos estéticos como os de “recriação” “inclusão”, “transcrição”, “experimentação” e “sonoridade”, para amparar as discussões trazidas no trabalho. De maneira geral, percebemos que, dentro do período em que Gismonti inicia sua atuação profissional no campo da música popular brasileira, as categorias identitárias não estão mais conectadas a uma cultura nacional unificada e sim a um cenário que se dispõe cada vez mais fragmentado, tanto no sentido musical, como social. 

Na condição de musicista, que análise você faz da importância e dos aspectos inovadores da obra de Egberto Gismonti?

Bia Cyrino – A dimensão da obra de Egberto Gismonti é algo muito difícil de precisar, visto que, além de sua discografia numerosa, o músico é um incansável compositor que produz ininterruptamente e de maneira obstinada até os dias de hoje, incluindo trilhas sonoras e obras grandiosas para orquestra.

Acredito que sua obra é um exemplo nítido daquilo que se concebe como o território da “intersecção” das práticas dos universos erudito e popular, mas muito mais que isso, ela é uma obra atemporal que, apesar de altamente elaborada, é imensamente criativa, flexível e acessível, tanto que muitas de suas composições são regravadas ano após ano por diversos artistas do mundo.

Como musicista, posso dizer que a música de Gismonti permite incorporação e adequação a uma infinidade de roupagens; o próprio fazer musical de Egberto como instrumentista e arranjador nos mostra isso. A cada apresentação sua, uma novidade para aquela composição antiga; uma mesma música nunca é tocada da mesma forma. Para mim, esta é a maior importância de sua obra: sua potencialidade imaginária, criativa, fluída e atemporal.

Qual é, em sua opinião, o lugar do compositor na música brasileira contemporânea?

Bia Cyrino – Outro dado importante é que Egberto Gismonti sempre esteve à frente no pensamento musical, infringindo potencialmente e com muita propriedade algumas “regras” e “tradições” do campo da música brasileira, como, por exemplo, quando grava o disco com obras do Villa Lobos utilizando sintetizadores em 1985.

Desta forma, o músico se conectou sempre com os aspectos experimentais do campo musical, explorando os materiais musicais ao máximo, preocupando-se muito mais com o “como” tocar do que com o “quê” tocar. Esta concepção musical o faz sem dúvida figurar como um personagem importantíssimo na música brasileira contemporânea, inspirando novos artistas e nos fazendo relembrar sempre que a música é mesmo um território sem fronteiras.

 

 

Vida, obra e brasilidade na usina de sons
 

Foto: Divulgação
O músico e pesquisador Mario Admir Patreze Junior | Foto: LeoLin | Divulgação

Em sua pesquisa de mestrado intitulada “A dança das 8 cordas nas cabeças de Egberto Gismonti”, Mario Admir Patreze Junior dedicou-se a estudar a utilização de vários tipos de violão na obra do compositor, que sempre foi o responsável pelas afinações.

A ênfase foi o violão de 8 cordas usado por Egberto no seminal “Dança das Cabeças” (1977), inspiração para o jogo de palavras no título do trabalho, apresentado no ano passado no IA sob orientação do professor Paulo Tiné. “Busquei analisar seu aspecto técnico-composicional, os estilos empregados, assim como os discursos e matrizes musicais envolvidos, além de questões históricas, da trajetória de Egberto e do contexto de produção do disco”, revela Patreze.

Na opinião do autor do estudo, que também é músico, a obra de Gismonti é marcada pela concatenação de diferentes discursos musicais, reunindo práticas da música erudita, popular e até mesmo regional.

Patreze acredita que esta marca é reflexo da trajetória de vida e da obra do compositor, que foi criado numa família de muitos músicos e que teve como parceiros, de palco e de discos, nomes de diferentes estilos e correntes. Ele cita, entre outros, Marie Laforet Herbie Hancock, Airto Moreira, Naná Vasconcelos, Jan Garbarek, Charlie Haden, e Ralph Towner.

No âmbito regional, Patreze menciona as experiências com os índios do Xingu e Sampaim. “Parece que Egberto, flexível e eclético que é, incorpora todas estas vivências e faz questão de incluí-las em suas falas, seja nas entrevistas ou em sua música”, opina. “Pelo que pude observar, tudo isso está ligado à sua concepção de brasilidade. Para Egberto, ser brasileiro é lidar justamente com esta pluralidade”.

 

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O professor Paulo Tiné, orientador de duas pesquisas da Unicamp sobre Egberto Gismonti | Foto: Perri

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