Edição nº 618

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de março de 2015 a 15 de março de 2015 – ANO 2015 – Nº 618

O almanaqueiro solitário


Paginas do 'calendario nordestino'

Foto do almanaqueiro paraibano Jose Costa Leite

Aos 87 anos, o cordelista e xilógrafo paraibano, radicado em Pernambuco, José Costa Leite é o último almanaqueiro tradicional do Nordeste ainda vivo e em atividade. Seu Calendário Nordestino (chamado, nos primeiros anos, de Calendário Brasileiro e, em uma única edição, de Almanaque do Padre Cícero) circula desde 1960, trazendo previsões astrológicas, informações sobre fases da Lua e conselhos de saúde, agricultura e misticismo. “O almanaque sertanejo, ou nordestino, é um objeto muito rico”, disse ao Jornal da Unicamp a pesquisadora Camila Teixeira Lima, que dedica sua dissertação de mestrado à figura de Costa Leite e vê, nele, a sobrevivência do narrador tradicional, descrito há quase 100 anos pelo filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940).

“De acordo com Benjamin, com a modernidade, a experiência tradicional de contar, narrar histórias, transmitir conselhos de geração em geração, deixa de existir”, disse ela. “Por isso ele fala em pobreza da experiência, quando o conhecimento tradicional já não mais circula. Segundo Benjamin, o que a gente tem hoje é uma experiência falsa, que não é mais coletiva, e sim individualizada. Então todo aquele conceito, toda aquela história moral que havia nos contos de fadas, na poesia épica, no conhecimento tradicional e artesanal pré-capitalista não seria mais possível. Só que quando comecei a trabalhar com o almanaque, vi que tem muita coisa ali que parecia ser essa experiência tradicional de que o Benjamin falava”.

A dissertação de Camila, com o título “Entre o narrador e o almanaqueiro: o lugar da experiência tradicional na produção do artista popular José Costa Leite”, foi defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Almanaques

O almanaque é um gênero de publicação originado na Europa, que circula a partir do século 15. “Algo que liga os almanaques em um gênero literário comum é a relação com o tempo: o controle do tempo e do espaço, que estaria por trás de toda essa produção”, disse ela. A dissertação lembra que as profecias em verso de Nostradamus circulavam, originalmente, em almanaques.

Por conterem informações sobre astrologia, alquimia e textos esotéricos, os almanaques sofreram críticas tanto religiosas – tanto da Igreja Católica quando das nascidas na Reforma – quanto das ciências empíricas que surgiam a partir do trabalho de pioneiros como Francis Bacon e Galileu Galilei. O gênero, no entanto, sobreviveu e diversificou-se, chegando ao Brasil com as primeiras tipografias, no século 19.

No país, surgiram almanaques dos mais variados tipos. “O gênero se diversificou no Brasil e vários tipos de almanaques se destacaram pela sua circulação e popularidade, tais como os almanaques religiosos, que continham preces, orações, dias santos, vida de santos e santuários; e os almanaques da atualidade, compostos de uma forma o mais semelhante possível das enciclopédias, que possuíam muitas ilustrações e abordavam temas variados”, nota a dissertação, que chama atenção, ainda, para a popularidade dos almanaques farmacêuticos, que começam a circular a partir de 1880: “São os almanaques: Saúde da Mulher, Bromil, Capivarol, Almanaque Granado, e, com destaque, os almanaques Pharol da Medicina (primeiro almanaque farmacêutico no Brasil, escrito, porém, por um português); Almanaque IZA e Biotônico Fontoura”.

“Todos esses almanaques diversos no Brasil tiveram características específicas, mas se assemelham (...) porque a relação com o objeto almanaque passa pelo marcar, contar, trabalhar com o número para que, por meio de uma ordenação do tempo, se possa entender as determinações deste na vida dos homens”, escreve a autora.

No Nordeste

Os almanaques sertanejos, tratando da influência da passagem do tempo sobre a pesca, as plantações, nas colheitas foram sendo feitos por homens que viviam, nas palavras de Camila, “entre a enxada e a literatura popular”, e preservam características dos almanaques europeus originais, dos séculos 15 e 16.

“Sobretudo no que diz respeito ao uso da astrologia e influência celeste no espaço e na vida dos sujeitos e na elaboração de previsões e prognósticos dos anos”, afirma a dissertação. “Mas a determinação do céu não se restringe, nesses almanaques, às influências ‘pagãs’ astrológicas. Formulações de natureza teológica - de um catolicismo popular – também estão presentes nesses almanaques”.

“Foi através do almanaque comecei a estudar a questão do conhecimento tradicional, mas com o Costa Leite percebi que isso era algo que ultrapassava essa produção: era uma característica mais do artista, do Costa Leite, e envolvia ainda o cordel e a xilogravura. Então, depois, mudei o foco. O objeto do estudo deixou de ser o almanaque e passa a ser a produção do Costa Leite em geral”.

O narrador

Nascido em 1927, numa família na qual o pai era agricultor de foro – pagava pela moradia e pelo uso da terra cedendo uma parte da produção ao proprietário – José Costa Leite (JCL) aprendeu a ler ouvindo cordel nas feiras do Nordeste, e a escrever com a ajuda de cadernos de caligrafia cedidos por um cunhado.

“O cordel surgiu na vida de JCL quando este ainda era criança. Se sua morada era instável, já que muitas mudanças foram feitas ao longo de sua infância e adolescência, um espaço era fixo na vida de JCL: a feira. As feiras, ainda mais do que hoje, eram comuns no interior do Nordeste, e onde quer que Costa Leite fosse sempre tinha uma feira por perto. A feira foi fundamental em sua vida”, diz a dissertação.

O primeiro cordel, Costa Leite escreve em 1949. Aprende a fazer xilogravura para ilustrar os folhetos que produz. Já o primeiro almanaque de sua lavra sai em 1960. Desde então, JCL vem produzindo seus almanaques anualmente, com uma única exceção – o ano de 1998 – , sendo o mais recente o referente a 2015.

É nos anos 30 do século passado, enquanto Costa Leite ainda vive uma infância difícil no Nordeste brasileiro, que Walter Benjamin publica suas ideias sobre a morte da experiência e do narrador tradicional – marcado pela transmissão oral da narrativa, pela capacidade de dar conselhos e de consubstanciar um conhecimento coletivo, construído por inúmeros indivíduos ao longo das gerações – e a ascensão da vivência, uma forma moderna de experiência de caráter mais individualizado, e das formas modernas de narração, que se dão por meio do romance e do jornalismo.

A pesquisadora Camila Teixeira Lima

Camila afirma, no entanto, que no caso específico do Nordeste brasileiro, por conta de suas formas peculiares de desenvolvimento e de entrada na modernidade, avanços tecnológicos como a imprensa – que Benjamin aponta como uma das armas implicadas na morte do narrador tradicional – não trouxeram, de imediato, uma transformação tão radical.

“Quando comecei a pesquisa, comecei também a fazer essa trajetória individual do personagem Costa Leite em seu meio, no Nordeste, para tentar entender por que essa produção era diferente daquela que o Benjamin explicou quando falou da morte da experiência”, disse ela. “Por que aqui era possível ter experiência, quando lá, na Europa, não era mais possível. A conclusão que tiro é que a evolução das forças produtivas acontece de forma diferente, a partir da história e da trajetória diferente das regiões. O Brasil tem uma trajetória atípica, comparada ao desenvolvimento europeu ou norte-americano, porque ele mescla o tradicional ao contemporâneo durante toda a sua história”.

Na dissertação, a autora elabora a questão da seguinte maneira: “Que desenvolvimento técnico muda a percepção dos indivíduos e, por isso, abala a experiência tradicional, não há como negar. (...) Mas no caso específico do Brasil, a relação da técnica com a experiência tradicional não significou meramente a sobreposição da primeira e o desaparecimento da narração. A capacidade de adaptação dos artefatos populares em questão fez com que a relação entre técnica e narração se ressignificasse: uma conseguiu da outra elementos necessários para conquistar novos públicos, se adaptar a novos tempos, resistir”.

Ouvinte

Se o narrador tradicional sobrevive, no entanto, a outra metade da equação – o ouvinte – parece estar desaparecendo, de acordo com a análise de Camila. “Isso ficou muito claro, para mim, até pela nossa relação, minha e do Costa Leite”, disse ela, que entrevistou o artista várias vezes e com quem se comunica por correspondência.

“A vida dele sempre foi ir à feira, porque era na feira que ele narrava, que ele cantava seu cordel, que ele vendia, que ele conversava, que ele dava conselho e agora, por causa da idade, não consegue ir mais”, explicou. “E aí é como se fosse essa morte do narrador, que passa a não estar mais nesse espaço em que a sua experiência circulava, não tem mais contato com o público. Mas toda vez que vou lá, a partir do momento em que ele percebeu que tenho interesse no almanaque, no cordel, na produção dele, era como se aquele ouvinte perdido tivesse batido na porta”.

Na dissertação, ela registra que, com as transformações sociais e tecnológicas da modernidade, “o dom de ouvir foi abalado”. No entanto, acrescenta: “Mas o narrador parece ter resistido à diminuição do número de ouvintes. Surpreendentemente, a relação de interdependência entre narrador e ouvinte que Benjamin afirmou, não se sustentou no caso de Costa Leite e seu público: Costa Leite é quase um narrador solitário”.

 

Publicação

Dissertação: “Entre o narrador e o almanaqueiro: o lugar da experiência tradicional na produção do artista popular José Costa Leite”

Autora: Camila Teixeira Lima

Orientador: Sílvio César Camargo

Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)