Edição nº 606

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 15 de setembro de 2014 a 21 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 606

Esperança para crianças portadoras de doença renal

Estudo revela que é possível retirada de medicamentos imunossupressores de pacientes com síndrome nefrótica

Estudo desenvolvido no Instituto de Biologia (IB) e com financiamento da Fapesp e CNPq traz nova esperança a crianças com a síndrome nefrótica (SN), um conjunto de sinais e sintomas que ocorre no caso de proteinuria (perda de proteína na urina) maciça. A resposta pode estar em um estudo genético que avalia as mutações no organismo de seus portadores. 

A primeira boa notícia é que os resultados, recém-obtidos da tese de doutorado da bióloga Mara Sanches Guaragna, mostram que já é possível a retirada de medicamentos imunossupressores de crianças corticorresistentes, em geral à base de cortisona, e a indicação de transplante renal de doador vivo. 

Apesar da relativa facilidade em caracterizar um paciente nefrótico através de edema (inchaço) acentuado (que começa pelas pernas e pálpebras, para depois se generalizar), a identificação do diagnóstico etiológico pode ser complexa. 

No Brasil, a pesquisa molecular para o diagnóstico de síndrome nefrótica é incipiente e aponta que há um vasto campo a ser desbravado. “Este é o primeiro estudo no país com uma grande casuística envolvendo crianças, muitas delas usuárias de medicamentos imunossupressores”, comenta a autora da tese.

A pesquisadora relata como seu estudo começou. Ela avaliou genes que codificam proteínas localizadas no glomérulo (unidade filtradora dos rins), composto por capilares que formam um emaranhado parecido com novelo de lã, o que aumenta a superfície de filtração. São nesses capilares que ficam as células chamadas podócitos, aonde estão expressas proteínas como a nefrina e a podocina.

As crianças com síndrome nefrótica são classificadas em corticorresistentes (resistentes aos corticoides) e em corticossensíveis (que respondem aos corticoides). Segundo a bióloga, que teve orientação da docente do IB Maricilda Palandi de Mello, o trabalho sugeriu, assim como na literatura, que as corticorresistentes que apresentam mutações nos genes possuem um problema estrutural. “Deste modo, elas não precisam continuar recebendo tratamento com corticoides, se na verdade a origem da síndrome é genética”, afirma. 

Essas crianças, explica, não respondem a esse tipo de tratamento e ainda por cima são obrigadas a ter que lidar com os efeitos colaterais de drogas que deprimem seu sistema imunológico. Portanto, quando são encontradas mutações, o tratamento à base de imunossupressores pode ser retirado e os pequenos pacientes também podem ter indicação de transplante renal de doador vivo, visto que a doença não sugere recidiva após tal procedimento. 

Dois dos genes avaliados por Mara foram NPHS2, que codifica para a proteína podocina, e o NPHS1, que codifica para nefrina. Essas duas proteínas interagem nos podócitos, formando uma fenda na barreira de filtração glomerular, estrutura onde acontece a filtração do sangue. 

A integridade desta estrutura permite que proteínas tais como a albumina, principal proteína presente no sangue, fiquem retidas no sangue dentro dos capilares presentes nos glomérulos. Se a barreira de filtração sofrer algum dano, devido às mutações, por exemplo, acontece a perda de proteína pela urina, e as crianças desenvolvem a síndrome nefrótica.  

 

Essa síndrome é percebida através de edema, proteinuria e hipoalbuminemia (baixa concentração de albumina no corpo), porque, quando desencadeia perda urinária de albumina, o paciente sofre uma diminuição sérica. Como consequência, haverá também um distúrbio lipídico (uma dislipidemia), e o seu colesterol ficará elevado. 

É na interação desses sinais e sintomas que surge tal síndrome, define Anna Cristina de Brito Lutaif, nefropediatra do Hospital de Clínicas (HC), que teve uma importante participação nos aspectos clínicos da pesquisa de Mara.

A médica diz que a SN pode ter a forma congênita, que se manifesta até os três meses de idade (forma grave); o tipo infantil, que se manifesta dos três meses de vida até um ano de idade; a forma da infância, que se manifesta dos dois aos 12 anos; e, a partir de 12 anos, a forma juvenil e adulta. 

Na verdade, expõe ela, essa disfunção pode aparecer em qualquer idade, mas a forma predominante é entre os dois e os seis anos (corticossensível). A sua incidência fica em torno de 3 em 100 mil crianças na Inglaterra. No Brasil, não existe estatística oficial.

Campo

Em 2009, Mara investigou o sangue de crianças no Ambulatório de Glomerulopatias da Infância, no Centro Integrado de Nefrologia (CIN) do HC, mediante consentimento dos pais, para participar de uma pesquisa genética. Contou às crianças que essa pesquisa não teria um retorno tão imediato, pois ainda não foi descoberta cura. Esclareceu que esse estudo permite eliminar o tratamento medicamentoso, no caso de existência de mutação. 

Ao avaliar o sangue de 150 crianças, a bióloga fez a extração do DNA, material genético humano. Foi um trabalho árduo e que exigiu muito dela, principalmente o estudo dos genes. O NPHS2, exemplifica, possui oito éxons, ou pedaços, que precisam ser estudados um a um. “Os éxons codificam para a proteína que vai ser expressa”, expõe Mara.

Ela prossegue explicando que o gene NPHS1 possui 29 éxons, os quais requerem igualmente estudo. É necessário promover a amplificação dos genes, aumentando o número de cópias por meio da técnica de reação de polimerase em cadeia (polymerase chain reaction). Amplificando esses éxons, consegue-se enxergar melhor a mutação.

E não é somente isso. “Os éxons são lidos num sequenciador, o que envolve várias etapas até chegar à leitura do resultado (se a pessoa tem ou não a mutação), quando analisamos o sequenciamento das bases ATCG – bases nitrogenadas que formam o nosso DNA”, descreve a pesquisadora. É justamente nelas que a mutação será observada. 

Achados

Mara identificou mutações que corresponderam com o fenótipo em quatro crianças corticorresistentes (uma já foi transplantada, recebendo o órgão de doador cadáver), que justificavam a síndrome. O que isso significa? Que a doença é de origem autossômica recessiva, ou seja, é preciso um gene do pai e um gene da mãe para que haja expressão no filho.  

Hoje, não raro, muitos médicos solicitam pesquisa de mutação, se ainda paira dúvida quando é preciso levar o paciente a transplante. A ideia é que, ao encontrar mutação, ele seja submetido a essa intervenção porque terá mais chance de não sofrer recidivas.   

De acordo com a nefropediatra, indica-se diálise (que pode ser peritoneal ou hemodiálise) quando o paciente tem cerca de 10% da sua função renal. Isso significa que a criança deve ter uma terapia renal substitutiva (tratamento que exerce as funções dos rins que, quando doentes, não conseguem mais executar). “Quando é colhida a função renal e se verifica que a criança tem apenas 15%”, ressalta a médica, “o procedimento é inscrevê-la na lista de transplante”.

O êxito desse procedimento depende de muitos fatores: da patologia de base, da idade da criança e das condições do doador. Normalmente, a sobrevida hoje é mais longeva. É comum encontrar transplantados há mais de 15 ou 20 anos, graças às novas drogas que estão chegando ao mercado. 

Se a criança com perda de função renal não for submetida à terapia renal substitutiva, informa Anna, ela não terá chance de viver, “morrendo em dias, por uremia (toxinas se acumulam no seu organismo já debilitado)”.  

Atualmente, o transplante passa a ser a melhor opção para a criança que perdeu função renal. A despeito disso, ainda se discute muito se vale a pena manter uma criança em diálise ou transplantá-la. “Certamente o transplante é a terapia de escolha para quem perdeu a sua função renal e para uma criança renal crônica”, ressalta Anna.

Agora o interesse da bióloga é fazer o sequenciamento massivo do exoma, um estudo de diversos outros genes durante seu pós-doc. Isso porque, em alguns pacientes, encontrou apenas uma mutação. “Provavelmente existem outros genes que estão expressos no mesmo lugar e que estão envolvidos no processo”, admite a bióloga.  

Anna, que está fazendo o seu doutorado na Faculdade de Ciências Médicas (FCM), estudando a SN, pondera que cada país tem um tipo de mutação. “Se a população é miscigenada, vamos encontrar alguns tipos de mutação. Na América do Sul, a população que veio da Europa tem outras mutações, diferentes da China e do Japão”, pontua. 

Mara identificou esses pacientes corticorresistentes com mutação e começou a fazer um estudo populacional, epidemiológico, que torna a pesquisa ainda mais interessante, opina Anna. “Esse trabalho pode investigar inclusive as mutações mais comuns no país, traçando um perfil.” 

A expectativa da bióloga é avançar a sua pesquisa e se aprofundar mais na compreensão de como essas proteínas estão interagindo no glomérulo. É isso que outros grupos estrangeiros estão fazendo agora. 

Conforme Anna, 90% das crianças corticossensíveis com SN respondem bem ao tratamento com corticoide e, em longo prazo, têm um prognóstico muito bom. Dá para prever que a síndrome provavelmente vai entrar em remissão e desaparecer, e a função renal vai permanecer preservada, ou seja, não vai evoluir para insuficiência renal crônica. 

Dez por cento dos pacientes são corticorresistentes, esses sim são os casos mais preo-cupantes. Desses dez por cento, 30% a 40% vão evoluir para insuficiência renal crônica e perderão o rim em dez a 11 anos. “Por isso é relevante encorajar as campanhas de prevenção, para que se faça um exame de urina nos postos de saúde, que ajuda a detectar precocemente a proteinuria. Pode ser uma amostra de urina 1 ou testes de fitas urinárias”, ensina a nefropediatra. 

A médica revela que a criança com SN terá um acompanhamento crônico, por não haver cura. Alguns pacientes poderão recidivar várias vezes, ainda que sendo corticossensíveis, voltando a inchar.

Na rotina, internações

As crianças com síndrome nefrótica são pacientes que vão frequentemente às consultas, colhem exames periodicamente e, dependendo do caso, requerem constantes internações. O tratamento atrapalha muito os estudos e exige um cuidado permanente dos pais.

Além da doença, é preciso cuidar dos efeitos colaterais das medicações imunossupressoras e das complicações. São crianças previamente normais, que, de uma hora para outra, começam a edemaciar e a desenvolver a SN. “Elas não costumam relatar dor, mas sofrem o desconforto que causa o edema generalizado”, presencia a médica.

A própria autora da pesquisa teve proteinuria aos 19 anos e passou quatro anos com esse problema. Fez tratamento e a proteinuria foi regredindo. Parou de fazer o cursinho pré-vestibular e ficou atrasada nos estudos. Ingressou no IB da Unicamp e, por uma feliz “coincidência”, veio a pesquisar esse tema.

 

Publicação

Tese: “Síndrome nefrótica em crianças: avaliação molecular em uma casuística brasileira”
Autora: Mara Sanches Guaragna
Orientadora: Maricilda Palandi de Mello
Unidade: Instituto de Biologia (IB)
Financiamento: Fapesp e CNPq