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Tradução em cena

 

MARIA ALICE DA CRUZ

Depois do duelo entre os filhos pelo trono de Tebas, quando ambos estão agonizando no chão, Jocasta pega a espada, corta o próprio pescoço e jaz abraçada aos filhos. Era possível sentir a dor, a comoção de Jocasta. É um texto frio e, enquanto vamos traduzindo, vamos nos comovendo. Começamos a imaginar como seria no palco.” Nenhum detalhe fugiu da tradução em prosa da tragédia grega As Fenícias, de Eurípides (480 a.C. – 406 a.C.), feita pelo pesquisador Evandro Salvador em sua tese de doutorado, recém-defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, sob orientação do professor Flávio Ribeiro de Oliveira. Destinada ao público não-especializado em poesia dramática grega, a pesquisa traz de volta ao leitor, por meio de versos e marcações de palco, detalhes de vestuário, gestual, expressões, um aspecto fundamental da tragédia: a audiência teatral. Para atingir o objetivo do trabalho, o autor traduziu o texto d’As Fenícias estabelecido por Donald Mastronarde (1994). Também foram consultadas as edições críticas da francesa Christine Amiech (2004), da inglesa Elizabeth Craik (1988) e do italiano Enrico Medda (2006).

Salvador acredita ter conseguido um diferencial entre as tantas traduções de poesia dramática feitas para serem lidas no isolamento de um quarto ou de uma sala. A tese permite que leitores especializados, afeitos ao teatro antigo, como diretores e atores, se orientem, por meio de pontuações criteriosas dispostas principalmente ao longo de um ensaio dedicado à personagem Jocasta, que morreu em tragédia anterior criada por Sófocles. Mas as pontuações também servem para aproximar o leitor não-especializado da carga dramática da obra de Eurípides. Uma mostra da precisão das marcações pode ser percebida na cena em que Polinices, protegido por uma trégua costurada por sua mãe, avança pela linha de soldados tebanos e adentra a cidade. “Ele está receoso, pode ser uma armadilha. E está com a espada, a mão na bainha. E deixo esses movimentos muito claros no texto”, explica Salvador. O ensaio também traz aspectos de dança coral realizada por mulheres estrangeiras.

Com a tradução em versos, Salvador tenta construir uma ponte entre o mundo grego antigo e o mundo do leitor moderno. “Tive a preocupação de trazer o que senti para o leitor de língua portuguesa porque as tragédias tinham muito fortemente a proposta do visual e da audiência”. Ele ressalta que a Atenas clássica não era exatamente uma sociedade letrada. A poesia dramática era composta e transmitida oralmente. E lembra que as tragédias reuniam uma população inteira com a proposta de homenagear Dioniso, patrono do teatro, e que essa vertente teatral se perde nos dias de hoje, em que o teatro se distancia do cotidiano das pessoas.

Salvador diz ter buscado uma tradução equilibrada, que não fosse vulgar, mas também não muito acadêmica para que o leitor perceba a carga dramática da obra de Eurípides. “Se o leitor optar pela leitura em biblioteca ou sala, ele consegue ver todas as imagens que a tragédia tem. Ao mesmo tempo, tem todo o material que serve de apoio para encenação”, reforça.

De acordo com Salvador, que já havia pesquisado também Os Sete Contra Tebas (467 a. C.), de Ésquilo, a escolha pela tragédia de Eurípides se deu justamente por conter algumas inovações quanto ao tema da linhagem de Édipo, dando sua própria interpretação à linhagem amaldiçoada pelos deuses. “Surpreendentemente, ela vai sendo identificada pelo espectador ao longo do texto de Eurípides, em que ela aparece aos andrajos, com cabelos rasos e brancos. Édipo, que também teria morrido em Os Sete contra Tebas quando os dois filhos chegam à idade adulta e disputam o trono de Tebas, está trancafiado no palácio”. As tragédias Laio e Édipo, anteriores a Os Sete contra Tebas, tratavam do tema da maldição familiar desde Laio, passando por Édipo, até chegar à maldição contra seus filhos. Já As Fenícias, de Eurípides, reúne várias partes do drama dessa linhagem numa tragédia só, segundo Salvador.

Em Édipo Rei, Jocasta também se mata ao saber que compartilhava o leito com o filho, que era Édipo, e que havia gerado quatro filhos: dois homens e duas mulheres. “E Sófocles trabalha esse reconhecimento da catástrofe de maneira magistral e é tudo feito aos olhos da população. Então, ela descobre o que aconteceu, adentra o palácio e se enforca. Édipo fura os olhos e é banido de Tebas”, relembra Salvador. Em sua opinião, Eurípedes agregou novos detalhes ao mito, dando sobrevida a Jocasta, mantendo Édipo em Tebas e dando voz a personagens que quase não apareciam nas tragédias anteriores, como por exemplo, Polinices.

Por terem a finalidade de ser executadas em um teatro, diante de uma grande plateia, acompanhadas de dança, música, as tragédias diferem do modo de comunicação da poesia contemporânea, de maneira geral, segundo Salvador, justamente porque a cultura do ocidente, com raríssimas exceções, valoriza a palavra escrita. “Os textos são feitos para serem lidos no silêncio dos cômodos de uma casa ou mesmo em uma biblioteca”, reafirma Salvador.

A força da poesia

Ele lembra que na Grécia clássica a poesia dramática tinha uma função educativa, pois todos iam ao teatro para ver seus personagens míticos, a dramatização das lendas. Tudo era feito em torno da poesia, que era cantada, dramatizada, e não lida, como acontece hoje. Ao mesmo tempo, os personagens saíam de seu mundo heroico para atuar nas cidades. “Eles eram os reis que governavam e se viam com esses problemas de ordem moral e política. E, ao mesmo tempo em que se questionava a cidade, questionava-se o ser humano”, acrescenta. Segundo o autor, a tragédia confrontava os personagens e as forças do destino, seus aspectos morais e éticos. Tudo era feito através da poesia. Era cantada, dramatizada, não lida.

Salvador ressalva que é difícil saber qual teria sido a expectativa criada e a reação da audiência ateniense do fim do século V a. C. quando As Fenícias foi dramatizada. Neste caso, o tradutor tem de tentar transportar-se à época para imaginar qual teria sido o impacto visual e auditivo da apresentação em todos os seus níveis. “É exatamente um exercício que precisa ser feito para compreender a tragédia, evitando que ela seja apenas um texto fechado em si mesmo. É o trajeto que procuro empreender ao longo do ensaio”, explica.

A dificuldade está justamente no fato de que muito da produção poética se perdeu ao longo do tempo, ou seja, muitas tragédias foram dramatizadas e não há o registro escrito dos textos. A tensão marcante no festival trágico também se perdeu. A população se envolvia muito no início. Cada poeta apresentava uma trilogia trágica seguida de um drama satírico, que era tido como uma descontração após o ambiente tenso da tragédia. Segundo Salvador, os poetas eram obrigados a apresentar no mínimo quatro dramas: três tragédias e um drama satírico. “Era uma situação burlesca, de descontração, mais próxima de celebrar o deus patrono do teatro, que era Dioniso”, explica.

O texto da tese está estruturado em linhas que correspondem, na medida do possível, aos versos gregos, a fim de possibilitar aos estudiosos da língua grega estabelecer uma comparação interna e, também, uma comparação externa, já que as traduções se diferenciam umas das outras e o jogo comparativo entre elas é um exercício construtivo no processo de tradução e leitura de textos antigos. Segundo Salvador, a partir de recursos da língua portuguesa encontrados em dicionários e gramáticas especializadas, foi possível acomodar aspectos da língua grega ao português. “Optamos pela clareza e simplicidade do texto vertido, num estilo sóbrio”, acrescenta.

De acordo com Salvador, foi com o desenvolvimento da cidade-estado e da consolidação da democracia ateniense no século V a. C. que o repertório mítico desembocou fortemente no teatro de Dioniso, em Atenas, alçando a tragédia num primeiro plano, tendo sido incorporada ao cronograma de festividades das Dionísias Urbanas. Os eventos eram anuais e tinham caráter religioso e político. A celebração a Dioniso consistia de procissões solenes, sacrifícios e concursos de poesia ditirâmbica e trágica.

Na época, a distância entre mito e realidade não era muito clara. O mito articulava o mundo dos gregos nas esferas religiosa, social, política ou antropológica. Segundo o autor, o mito era tido como um modelo arquetípico de comportamentos e valores que deveriam ou não nortear a vida coletiva ou individual do homem grego. E é na dramatização do mito que a tragédia grega se diferencia da narrativa épica e lírica, pois o fato narrado e dramatizado se aproxima do cotidiano do homem comum.

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■ Publicação

Tese: “Tradução da tragédia As Fenícias, de Eurípides e ensaio sobre o prólogo (VV.1-201) e o primeiro episódio (vv. 261-637)”
Autor: Evandro Luis Salvador
Orientador: Flávio Ribeiro de Oliveira
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
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