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Como recolocar a poesia no centro do debate?
Michel Deguy responde

A convite do Jornal da Unicamp, o poeta, tradutor e professor Marcos
Siscar entrevista o poeta, ensaísta e filósofo Michel
Deguy, um dos nomes mais importantes da literatura francesa
e autor, entre outros livros, de Reabertura após obras (Editora
da Unicamp). A obra foi traduzida por Siscar, que coordena a
pós-graduação em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos
da Linguagem (IEL) da Unicamp e é autor de Poesia e Crise, também
pela Editora da Unicamp. Na entrevista, Deguy defende a aliança entre
pensamento e poesia e faz uma avaliação severa
dos padrões atuais do debate sobre a cultura.



MARCOS SISCAR
Especial para JU

Marcos Siscar – Seu trabalho tem uma inclinação filosófica e, de fato, muitos de seus textos podem ser lidos como legítimas formulações de questões filosóficas (ou antropológicas), como a questão do “ser-como”. Entretanto, sua obra é conhecida como obra de “poeta” e o sr. faz questão de dizer que escreve no “interesse” da poesia. Como, a seu ver, deveria ser colocada essa relação entre filosofia e poesia? Haveria uma necessidade de filosofia para explicar a poesia?

Michel Deguy – Dei este título a um dos meus livros: “A poesia não está só” [La poésie n’est pas seule, Seuil, 1988]. Logo que tiver a oportunidade, terei prazer em intitular um outro texto, “A filosofia não está só”. A questão geral é justamente a do acompanhamento, do ser-junto, do COM. O sentido nasce do ser-com e dentro dele.

Quem veio primeiro? A questão é insolúvel por princípio e de modo geral. Aporia definitiva; paradoxo princeps. E conhecemos a resposta: se algo deu errado, foi o outro (você, por exemplo); se algo deu certo, fui eu que comecei. No caso: Homero antes de Heráclito? O “poema” de Parmênides é a proto-ontologia? Sófocles antes de Sócrates?, etc. E nas outras civilizações?

Poderia repetir, juntamente com Vico, que a primeira idade da humanidade foi poética; sim... Mas isso não nos ajuda muito... pois o que seria isso: a primitividade ou a primordialidade do poético?

A aliança e a liga da intuição ao conceito (Kant) como imaginação “transcendental” formadora, ou encenadora, do mundo (ein Bildengskraft) são tais que o poeta não pode desprezar o conceito. Este seria meu desacordo, por exemplo, com Yves Bonnefoy.

Para retomar uma de suas expressões: a poesia não basta a si mesma. A partir de sua íntima constituição, que é peri-parafrástica, ela demanda glosa, co-mentário, interpretação, acompanhamento: sua potência alegórica abre o pensamento por-vir.

Seria preciso analisar sob vários outros ângulos as relações do casal poesia-filosofia; aponto aqui mais dois ou três.

Se “o acontecimento é nosso mestre” (Pascal), o poema entrega o acontecimento (a “circunstância”) à instância meditativa da “filosofia”. Não será isso o que acontecido recentemente com Paul Celan, cujo poema “testemunha” da Exterminação tem mobilizado, requerido, com urgência imperativa (após a opinião, escandalizada com os relatos), o “julgamento” filosófico? (Lembremos dos escritos de Jacques Derrida, que se encontram com Celan e o acompanham). “Para memória”, o poema recolhe e retém o memorável.

Se “nós somos um diálogo” – por plurívoca que seja a “hermenêutica” deste famoso dito de Hölderlin –, isso significa que o elemento “lógico” no qual se formam as verdades, desdobra-se em uma dissensão não pacificável: a História das ideias (ou da “verdade”) reúne as fases dessa altercação incessante. Ora, o desacordo fecundo sempre consiste na – ou trata da – “vista” daquilo que é o mesmo ou de modo algum o mesmo.

Tal aproximação de duas ou mais coisas (“de duas coisas uma”, diz o estereótipo francês do enfrentamento), ou “comparação” – aliás, falávamos muito em poética da “imagem”, antes que o termo tivesse sido completamente monopolizado pelo tele-visual –, esta afinidade, ou esta semelhança, esse “ar de família” (etc.) é exato, ou não? O “mesmo” é o mesmo, ou inteiramente outro? O pensamento tornou-se cego pela diferença modificadora que deveria proibir a “assimilação” ou, ao contrário, a “analogia” remonta a um inteligível que pode reunir as diferenças em um mesmo. A operação de julgar é poética: o como, ou operador da submissão das coisas sob as palavras, é o agente de ligação mais importante do pensamento. E se o pensamento é figurativo (figurante figurado), diremos que a parábola (a fábula, a figura especiosa) é a bússola do discurso filosófico.

Siscar – O sr. poderia dar mais detalhes sobre o modo como se realiza essa “aliança” com o pensamento na poesia?

Deguy – Eis algumas formas de enlace da relação poema/filosofema:

- O philein: a filosofia é um philein, uma philia (o que seria o sophon, de quem ela gosta? perguntava-se Heidegger. Não sigo agora nessa direção.)

A poesia também ama. É uma philia. Mas ama a quem? Talvez respondêssemos que ela ama o apego; ela está apegada às coisas e ao mundo; ou seja, à relação coisas-mundo, se é verdade (era verdade, no tempo de Rilke) que existe mundo apenas na medida em que há um aqui das coisas, e vice-versa, ou reciprocamente. Mas onde foram parar as coisas? É nossa questão... “Enquanto esperamos”, a poesia como o amor (como a filosofia) arrisca tudo nos signos (estou citando um poema meu). Elas têm em comum o philein: as duas são filológicas.

- Os dois modos do pensar falam a língua no modo vernacular; no “logikon” grego. Sua preocupação comum é a tradução; o trans(porte) em línguas. Poesia e filosofia, ambas filólogas, viram e reviram sua língua enquanto pensam: linguistic turn; tropismos; tropologia. É isso que a filosofia tende a esquecer, tendo acreditado por muito tempo que o Espírito é a “intuição” (ligada ao inefável!?) ou uma língua pré-babélica, um esperanto universal, convenientemente coincidente com a língua daquele que filosofa! A poesia existe para obstar a essa pretensão.

Quanto aos cientistas (no meu país, um [Claude] Allègre, que foi também Ministro da Educação...), são misólogos, rejeitam tanto o filosofema quanto o poema, colocando-os do mesmo lado: fora da ciência... (lembremos que, para Lévi-Strauss, a poesia, envolvida com as “correspondências” que a neurologia esclarecia cientificamente, ganhava uma idade pré-científica, à Augusto Comte).

- Que a poesia não seja “argumentativa”; que a brevidade tenha se tornado, ao longo dos séculos, um de seus traços característicos (com o soneto, por exemplo; ou seja, a unidade da página torna-se a grande forma geradora de poesia, que se aglomera em canzoniere, semelhante ao retângulo do “quadro” onde a “pintura” chega e se conforma, para oferecer-se sem trégua, com generosidade espantosa, em milhares de obras), não impede – ao contrário, alimenta – o intercâmbio-das-provas (Mallarmé), a interfecundação, a aliança. O lançamento pro-fético do poema com sua aparência de revelação ou de iluminação, faz germinar, atrai, o comentário.

Siscar – Em Reabertura após obras, o sr. fala de uma submissão da poesia (e da arte em geral) à lógica patrimonial e turística, sua “diminuição” no momento em que percorre outros espaços da cultura, na direção do espetáculo e da “plasticidade”. Poderia explicar em que consiste a “época do cultural”? De que maneira a arte e a poesia, no passado, teriam tido mais prestígio que no contemporâneo?

Deguy – A amplitude e a radicalidade do fenômeno cultural ainda não foi percebida e, principalmente, não foi “ratificada” pelos intelectuais. A questão toda cabe no seguinte axioma: nossa cultura é a cultura do cultural; tudo é “cultural”. A demonstração disso é implacável, e eu a condenso ao máximo: tudo aquilo que é, sem exceção, é tomado como fenótipo de um genótipo nacional (no fundo: étnico) retraçável: aquilo que lhe dá valor, “anterior” à acumulação do capital e de toda produção pelo trabalho; é seu valor “patrimonial” (acrescido a ele na economia cultural) que torna todo ente oferecido ao consumo uma mercadoria disponível (a que preço!) no mercado mundial; tal definição não marxiana do valor vale para o “turismo” mundial de uma Paz “perpétua” globalizada. O mundo (cujo homônimo nos faz acreditar que ainda continua o mesmo) tornou-se o grande fenômeno turístico, a exposição à curiosidade turística dos humanos; é como turístico que o local é parte constitutiva do global. O paradigma, o exemplo por excelência que permite entender o fenômeno, é o da língua: tesouro último (“reserva” última) da identidade “nacional” e que nenhum trabalho ou capital produziu. O “gênio” (hoje em dia, os genes, pois toda essa ideologia poderosa do capital é sustentada por, e dentro de, uma metaforicidade regente, proveniente das Ciências da Vida), o “gênio de um povo” se “exprime” aí.

Entretanto (e com este “entretanto” economizo uma enorme transição), ou “ao mesmo tempo”, a mutação fenomenal em curso, verdadeira bifurcação da antropomorfose, completa-se como saída do logos, saída da esfera do pensamento vernacular que os Gregos nomeavam “logikon”. A linguagem das línguas, elemento “imediato” (Hegel) do pensamento dos seres-falantes, é considerado hoje como um “medium” entre outros, pouco a pouco colocado em segundo plano, negligenciado e mesmo desprezado: a imagem, no sentido icônico tecnológico, passou na frente. Esse movimento, esse deslocamento, tende a abandonar o “dialegein”, diálogo e dialético: saída da “filosofia”, se quisermos. Assim, tomada pelo ângulo da poética, a “poesia” abandona o elemento tradicional (translationes studiorum) do “poema” (oral, escrito, citável, recitável, vociferável, em “paper”, como dizem os comunicadores nos congressos). O programa [logiciel, em francês] substitui o “logos”, em todos os modos de falar (em particular, na política); o numérico substitui o analógico (e outros estereótipos): a inteligência “artificial” (dos robôs domésticos, os drones, etc.) abandona o intelecto agente – tornou-se comparante (ou seja, modelo) para entender a inteligência mental tradicional, etc.

Além disso, a “poética” (que agita os “poetas”, digamos) não tem mais “voz” no debate (o debate das ciências duras e moles, das socio-políticas, etc.); não participa mais das discussões que interessam, ou é seu destino (social) que se resolve em termos de cultural – este que, por sua vez, não é compreendido com profundidade.

Ela não está mais no Debate – e a ambição da revista Po&sie, aproveito para lembrar isso de passagem, é de recolocá-la no centro do Debate, para que seja ouvida (incerto combate). O Debate oficial entre pessoas sérias (responsáveis pelos recursos) determina que seu lugar, simpático, na esfera e na febrilidade culturais deve ser suficiente para ela.

Tudo isso não constitui uma “questão de prestígio” para a poesia! Antes, de vida-ou-morte e, portanto, de ressurreição. A poesia-em-poema conseguirá renascer, depois dessa última “translatio” cultural que ameaça engoli-la? A arca que a transporta(ria) sobre as águas deste dilúvio, impondo uma mutação da substância (em termos aristotélicos: a materialidade-formalidade-finalidade-factibilidade) para elemento distinto do logikon, pode de fato aniquilá-la?

E, a propósito deste tom “apocalíptico”, observo que o apocalipse, outrora entendido como revelação, iluminação desveladora, visão de clarevidência definitiva, tem tomado aos poucos sentido inverso: o da cegueira, do entrechoque caótico, do mau arremate.

Siscar – Haveria indícios, na prática artística, dessas transformações que o sr. descreve no horizonte de uma possível “aniquilação” da poesia?

Deguy – Retomo uma outra via para abordar a questão do meio (medium, Mitte, Mittel, Relation...): se tentarmos entender a Arte no singular, isto é, determinar o traço essencial da modernidade que caracteriza e subjuga todas “as artes” (até a sétima, oitava, nona, décima...), eis a afirmação-constatação (ou, se preferirmos, a hipótese principal) que lhe dá forma:

A operação decisiva da techné (o savoir-faire de cada arte transformada em técnica), no centro disso que todo artista chama de seu “trabalho”, tem como nome montagem (talvez a partir da preponderância social do cinema e da glória particular de alguns, como Jean-Luc Godard). A arte é arte da montagem. Como sempre, muitos dirão que “nada mudou”, e que se trata de um rebento daquilo que era a composição; mas o problema é precisamente o da alteração do “mesmo” em algo totalmente diverso, a partir das homonímias e dos sinônimos...

Recorro a expressões em uso, sem nenhuma entonação pejorativa. O moderno é bri-colagem, colagem de cacos. A questão decisiva é a seguinte: como fazer-ficar-junto? O quê? Tudo e qualquer coisa. A questão é sobre como juntar aquilo que não poderia ser juntado; aquilo que não é adjacente; que não está “com”. A questão é sobre como ligar tudo a tudo, independentemente da distância, da heterogeneidade, da estranheza dos elementos (ou componentes). A questão é a da cola. Em termos cada vez mais recentes, cada vez mais tecno-lógicos, é a questão (a terminologia) da “matéria plástica” do “sintético” – passando por Queneau (“o canto do polistireno”) e indo até a reflexão de Catherine Malabou sobre a plasticidade e a sináptica (sem omitir em nenhum momento, é claro, que a síntese, em sua diferença com a síncrese, e do a-priori com o a-posteriori, seria a grande problemática filosófica transcendental).

Será que isto pode juntar-se com aquilo? Sim, depende da cola.

Há vários tipos de mistura; por exemplo, o tipo “sopa”, que faz a mixagem e confunde os ingredientes, diferente do tipo salada “primavera”, que reúne por justaposição, preservando a discernabilidade dos ingredientes, etc. A questão do melhor “modelo” se coloca. A febre da mixagem em geral, da novação por “crioulizações”, do tornar-se “caos” do “mundo” (na linguagem de Edouard Glissant) apropria-se de todo tipo de “forma” para multiplicar as possibilidades: a técnica torna tudo possível. Da “realização” fílmica à nova nouvelle cuisine dos novos chefs, até as proezas dos disc-jockeys, passando (mas talvez sejam eles os líderes) pela arte daqueles a quem se reserva o velho título de criadores, a saber, os modistas, designers, cabeleireiros... trata-se do campo mais exposto da midiatização, o mais atraente do mercado.

A questão é, então, a relação do todo às partes.

Em resumo: à estética do acabamento (confecção, perfeição) sucedeu, moderna e pós-modernamente, a do inacabamento, no sentido, digamos, da decomposição que leva até o projeto, o esboço, o rascunho, o despedaçamento, a fragmentação, a explosão, o minimal, o caco, a alusão, a pulverização, a mensagem, o subliminar, o conceitual, o virtual, etc. Será que alguma coisa poderia ainda ter lugar como aparição, isto é, para um espaço comum com um outro, um encontro, um piscar de olhos...?

O inacabamento renuncia a continuar a relação, o ajuste (que podemos chamar simbólico) de uma parte (os pedaços) com um todo, ele próprio “diminutivo” de uma totalidade, ela própria em relação com um Todo. (Era a questão obsessiva na época estruturalista, da metonímia e da metáfora). Haveria pedaço sem uma resposta à questão de quê é esse pedaço? O que fazer quando o “todo” não existe mais, etc? Pedaço de nada?

É possível abandonar o logos por um “outro medium” (sonoro; icônico; somático...), ao mesmo tempo em que se pretende permanecer “poesia”, ou ainda “poema”? Não há mais diferenças – entre justaposição, oposição, etc.; ou síncope, apócope, etc. O que seria, então, o caos?

As diferenças entre anacolutos, disjunções diversas ou prolepses, tmeses, etc.; a diferença por alínea, mesmo entre prosa e poema, nada pode ter sentido se não há mais o meio tático trópico. Entramos na justaposição indiferente, que provoca a ilusão da desordem, a aparição na disposição, graças somente às técnicas (incessantemente “aperfeiçoadas” em “definições superiores”) da vertigem icônica televisual levando tudo para a tela, deslocando todo o visual (todo signo) em velocidade-limite (para o olho), ou seja, aparições do que-quer-que-seja contadas em centésimos de segundo (?). É preciso (sempre “no interesse do poema”) criticar, vigiar o mixador, o liquidificador ultra-contemporâneo sempre mais sofisticado.

Temos o hábito de insistir sobre os ganhos (o público está satisfeito); mas sabemos realmente o que perdemos?

Siscar – O sr. mantém uma revista de poesia e está muito presente nas discussões sobre a questão patrimonial da cultura. Sua obra poética e crítica foi objeto de vários estudos especializados. Recebeu, também, recentemente o título de Cavaleiro da Legião de Honra, na França. Observa-se, em Reabertura após obras, uma tomada de responsabilidade em relação à “herança” poética. Como o sr. vê o desdobramento de suas iniciativas e de outras do mesmo gênero, sobretudo na França, no que diz respeito ao futuro da poesia?

Deguy – Esta questão me leva a uma resposta autobiográfica. Então, vou a ela por um único caminho, sem sutilezas. Se tratarmos o problema da maneira mais tradicional, a resposta é simples: acabou! Um escritor – e, ainda por cima, “de poemas”, em outras palavras, um “poeta” – que não tem ou já não tem visibilidade-audibilidade (televisão, rádio) ou notoriedade que possa fisgar o jornalista, está fadado a desaparecer. O abate das gerações (sim, o ritmo da prostituição é terrível; eis um episódio recente: Einaudi, ou seja a Edição italiana, para “recuperar” um atraso – irrecuperável – decide fazer uma “antologia de poesia francesa” e reúne alguns poetas... nascidos depois de 1968: critério absurdo que permite saltar uma ou duas “gerações”; o que agrava a inépcia intrínseca das antologias). O recorte de fatias “escolhidas”, os jogos de influência dos mais bem colocados, o desleixo da crítica – e fico por aqui – completam a insignificância final: “in pulverem revertuntur”... e podemos dispersar as cinzas após o crematório. Fim da “imortalidade laureada” (Paul Valéry), fim da mortalidade laboriosa renomada...

Por outro lado, temos a performance sincrética “única”, que desloca a noção de circunstância, quando “a poesia é de circunstância”, significando agora não mais as condições de nascimento do poema, mas que a dita existência social da poesia realiza-se no evento poético cultural. A performance abole a leitura como dicção interna ou pronunciada; e assim o horizonte do pensamento leitor, loquaz, fraseado, articulado. Trata-se de outra coisa; e não sabemos ainda exatamente que outra coisa é essa... Quero dizer que “o cultural” não é algo condenado ou condenável, mas que a “translation studiorum” que ele veicula provavelmente engolirá os studia. Uma antiga expressão francesa definia “a cultura como aquilo que permanece quando esquecemos tudo”.

Podemos dizer que o “cultural é aquilo que permanece quando esquecemos o sentido da definição-da-cultura-como-aquilo-que-permanece-quando-esquecemos-tudo”. É o pensamento do resto, do traço, que é complicado, inteiramente novo (talvez a própria questão da novação do neo esteja em relevo aqui) nesta homonímia, e apesar dela. Seria preciso falar da mutação, pois passamos da época da revolução (= façamos tábula rasa do passado; apaguemos os traços!) à época do cultural, ou seja, da estocagem: como conservar tudo, colocar em reserva, patrimonializar, etiquetar (“Unesco”), restaurar...? Seguir o rastro e, em todos os campos e circunstâncias, o princípio da perquirição pós-moderna (idêntica aos princípios de precaução, de vigilância, de risco-zero, etc.). A traçabilidade de um fugitivo da justiça ou de um pedaço de carne no supermercado depende da técnica – que a exigia. Círculo fatal da “delinquência geral” em regime de equivalência geral (“financeira”).

Uma ficha de traçabilidade no imenso Supercomputador que conecta todas as redes de todos os computadores assegura (certifica? garante?) o ser de todo ente, para todo cérebro “cartesiano” de todo sujeito geneticista-informático, i.e. de todo homem moderno. Se termino minha resposta com um léxico filosófico (da certeza cartesiana; do sujeito; da enticidade), é para lembrar que toda essa situação “terá sido” onto-lógica.

Siscar – Considerando essa situação preocupante que o sr. descreve, alguém poderia se perguntar: vale a pena continuar?

Deguy – É claro que sim; não há outra coisa a fazer. Continuamos na “resiliência”, ou seja, na tentativa de entender o que nos acontece. E, assim, este último traço de inquietação e autovigilância se impõe: pode ser que a mutação em curso seja tão integral, tão complexa, afetando todos os campos, setores, instrumentos, conceitualizações, e eu, seu interlocutor, seja tão ignorante, tão marginal e “inativo”, que me torne incapaz de compreendê-la convenientemente e até de me referir a ela – para além dessas generalidades que acompanham, sem incomodá-la, a panmetamorfose que está em curso...

Quem é

Michel Deguy nasceu em Paris, em 1930. No início da carreira, trabalhou como professor de filosofia no ensino médio e, em seguida, como professor de literatura francesa na Universidade de Paris VIII, onde se aposentou e recebeu o título de professor emérito. Foi membro do conselho editorial da Gallimard, durante 25 anos, e participou do comitê editorial de diversas revistas francesas importantes. Edita, desde 1977, a revista Po&sie, à qual se associou recentemente uma publicação eletrônica com conteúdo próprio (Pour Po&sie). Pela Editora Belin, Deguy também dirige a coleção L’Extrême Contemporain, que reúne trabalhos ensaísticos de destaque na área. De 1990 a 1992, dirigiu o Collège International de Philosophie, em Paris, e, de 1992 a 1998, a Maison des Ecrivains.

Como poeta, é autor de dezenas de obras que têm sido objeto de eventos e publicações especializadas. Recebeu os prêmios Fénéon, Max Jacob e Mallarmé. Recebeu, ainda, o Grand Prix National de la Poésie, em 1998, e o Grand Prix de Poésie da Academia Francesa de Letras, em 2004. Em 2010, foi condecorado com o título de Chevalier da Ordem Nacional da Legião de Honra, título da República francesa destinado a militares, cientistas, artistas e escritores de destaque. Além de artigos publicados em livros e revistas, Michel Deguy tem dois livros editados no Brasil, ambos com tradução de Marcos Siscar e Paula Glenadel: a coletânea de poemas A rosa das línguas (Cosac Naify, 2004) e o ensaio Reabertura após obras (Editora da Unicamp, 2010).

SERVIÇO

Título: Reabertura após obras
Autor: Michel Deguy
Tradução: Marcos Siscar e Paula Glenadel
Páginas: 344
Preço: R$ 50,00
Editora da Unicamp



 
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