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O escritor Lima Barreto: na contramão do discurso oficial (Fotos: Reprodução)

O Brasil no ESPELHO

Pesquisa desenvolvida no IEL mostra como as obras
de Lima Barreto refletem as mazelas do país

MANUEL ALVES FILHO

IlustraçãoA revolta e a melancolia presentes na obra do escritor Lima Barreto são reveladoras das contradições que marcaram a vida brasileira no início do século 20. A interpretação é da tese de doutorado de Manoel Freire Rodrigues, defendida recentemente no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, sob orientação do professor Antonio Arnoni Prado. De acordo com o pesquisador, o desencanto demonstrado pelo autor em relação à própria trajetória pessoal, à política e à realidade social do seu tempo contribui para entender melhor a constituição do país, pois serve de contraponto ao relato histórico oficial. “Um aspecto interessante nos textos de Lima Barreto é a sua atualidade. Neles, o escritor fala de problemas que nos preocupam até hoje, como o preconceito, a desigualdade social, a corrupção na política ou a degradação ambiental”, afirma o pesquisador.

Freire começou a trabalhar com a obra de Lima Barreto no mestrado, defendido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), orientado pelo professor Marcos Falchero Falleiros. Na ocasião, ele fez uma análise do romance Triste fim de Policarpo Quaresma. Desta vez, ele ampliou a investigação para quatro publicações, sendo dois romances (Recordações do Escrivão Isaías Caminhas e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá), o Diário íntimo do escritor e um conjunto de crônicas e artigos publicados originalmente na imprensa. “No trabalho, eu procurei construir o perfil do narrador, que no caso via o Brasil com um olhar profundamente desiludido e melancólico. Os textos demonstram uma coerência muito grande de Lima Barreto no que se refere à postura que ele tinha, como observador privilegiado do seu tempo, diante da vida e do mundo”, explica o autor da tese.

Nos textos de Diário íntimo, por exemplo, Lima Barreto fala das experiências pessoais com tristeza e dor. As narrativas, que possivelmente não se dirigiam a um leitor imediato, visto que foram publicadas muito tempo depois da morte do escritor, tocam em temas como preconceito e exclusão. Ele faz, ainda, confissões amarguradas acerca da hostilidade da sociedade em geral e do segmento literário em particular. “Nos textos, Lima Barreto também aborda com desgosto e mágoa os problemas de convívio que tinha em sua casa e registra depoimentos ora resignados, ora revoltados sobre esses e outros assuntos”, aponta Freire.

Manoel Freire Rodrigues, autor da tese: "O Brasil que Lima Barreto denunciou ainda não apareceu" (Foto: Antoninho Perri)Quanto aos dois romances tomados para análise, prossegue o pesquisador, os textos surgem com tons autobiográficos. Em ambos os livros, há a presença de personagens que apresentam trajetórias e características parecidas com as de Lima Barreto. Freire lembra que o escritor, que era mulato, sofreu com o preconceito de cor e com as dificuldades impostas àqueles que pertenciam a famílias humildes. Em Isaías Caminha, não por acaso, a personagem principal, um mestiço, sai de uma cidade do interior com destino ao Rio de Janeiro, então capital da República, para estudar Medicina. Na mala, além de alguns poucos pertences, leva uma carta escrita por um coronel da sua região recomendando-o a um deputado. O político simplesmente não o atende.

Sozinho na cidade grande, o jovem sente-se perdido. “A narrativa vai se fazendo por meio das decepções e derrotas da personagem. No texto, fica evidente o preconceito do qual ela é vítima. Em uma passagem, por exemplo, o jovem é recusado para realizar um trabalho braçal em uma padaria simplesmente por conta da sua cor”, destaca Freire. Em Gonzaga de Sá, Augusto Machado, narrador e um dos protagonistas do romance, mais uma vez um mulato, é um sujeito deslocado da sociedade. Sua personalidade se mostra incompatível com os valores dominantes na Belle Époque brasileira. “A personagem, aspirante a escritor, demonstra uma visão desiludida em relação ao Brasil, à República recém-instalada, à vaidade acadêmica e à corrupção na política. Assim como Lima Barreto, que deixou os estudos para tornar-se funcionário público, o protagonista é igualmente um burocrata que se sente fracassado”, conta o autor da tese.

Já as crônicas e artigos produzidos por Lima Barreto, publicados originalmente na chamada pequena imprensa de então, apresentam uma particularidade, segundo Freire. Neles, o escritor fala diretamente ao público, sem se valer de personagens. Os textos têm uma forte carga ideológica, por meio da qual o literato mais uma vez critica aspectos da vida brasileira, da literatura, da organização social e da política. “Nesses escritos, é perceptível a revolta do excluído. A meu juízo, trata-se de uma visão muito original daquele período, pois vai na contramão do discurso oficial Manoel Freire Rodrigues, autor da tese: “O Brasil que Lima Barreto denunciou ainda não desapareceu” e dos interesses daqueles que acreditavam na República e que viam no novo regime a porta para o progresso que, depois se saberia, não incluiria a maioria da população”.

Conforme Freire, um dos motivos que o levaram a estudar Lima Barreto foi justamente o caráter atual da sua obra. “O Brasil que ele denunciou ainda não desapareceu. Apesar das grandes transformações pelas quais o país passou, como a chegada da modernidade e da relativa democratização, muitos dos problemas levantados por ele ainda estão aí. No que se refere à compreensão da sociedade brasileira, Lima Barreto foi

Da zona rural para a academia


Manoel Freire Rodrigues cumpriu uma trajetória incomum no mundo escolar. Nascido em Apodi, município localizado no sertão do Rio Grande do Norte, ele trabalhou dos 10 aos 21 anos na roça, ajudando o pai. Por conta das atividades na agricultura, e por não haver escola próxima onde pudesse dar continuidade aos estudos, fez inicialmente apenas até a antiga 4ª série do ensino fundamental. “Abandonei a escola, mas não a ideia de estudar. Enquanto trabalhava na roça, ficava pensando num meio de poder conciliar a enxada com os cadernos e livros”, relata. A solução veio por meio do ensino a distância, que à época tinha uma configuração diferente da que conhecemos hoje, na qual a internet aparece como ferramenta fundamental. “Fiz o supletivo do primeiro grau por correspondência, por meio do curso oferecido pelo Instituto Universal Brasileiro”, informa.

Como a alternativa mostrou-se viável, Freire decidiu fazer também o supletivo do segundo grau por correspondência. “Trabalhava o dia inteiro, chegava em casa cansado, mas mesmo assim encontrava forças para estudar. Completei o segundo grau, prestei vestibular e fui aprovado para o curso de Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Assim que conclui a graduação, ingressei imediatamente no programa de mestrado”, conta. Um dos integrantes da banca de avaliação da dissertação era o professor Antonio Arnoni Prado, que convidou Freire a participar do processo de seleção do doutorado do IEL-Unicamp. “Ele me disse que, se eu passasse, ele me orientaria. Vim, prestei o concurso, passei e comecei a trabalhar na tese. Sou muito grato ao professor Arnoni tanto pela orientação quanto pela acolhida que me deu. Não foi fácil desembarcar numa cidade como Campinas, onde não conhecia ninguém”, admite.

Atualmente, Freire é professor na UERN, na cidade de Pau dos Ferros, interior do Rio Grande do Norte, onde iniciou a vida acadêmica. “Voltei para meu Estado por considerar que sou mais útil lá do que aqui em São Paulo, onde há muita mão-de-obra qualificada. Penso que minha volta é uma forma de devolver um pouco do que as três universidades públicas onde estudei me deram ao longo da minha carreira acadêmica”, considera. Por conta desse percurso vitorioso que traçou, Freire pode ser considerado, por assim dizer, o reverso das personagens melancólicas e fracassadas que marcaram a obra do escritor Lima Barreto

 
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