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CENÁRIOS DA CRISE


A indústria e a inserção externa

Fernando Sarti e Célio Hiratuka

Os impactos da crise financeira global no Brasil são analisados nesta e nas próximas duas páginas por seis docentes da Unicamp: Ricardo Antunes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), e Célio Hiratuka, Cláudio Dedecca, Daniela Prates, Fernando Sarti e Francisco Lopreato, todos do Instituto de Economia (IE). Os especalistas não apenas avaliam os efeitos da crise e as medidas que podem mitigá-los ou atenuá-los, como também traçam cenários. Trabalho, setor público, conjuntura, indústria, inserção internacional e mercado de crédito, entre outros temas, estão na pauta.

A crise financeira global interrompeu o ciclo de crescimento econômico vivenciado pelo Brasil no período recente e, em particular, a trajetória de consolidação da indústria brasileira iniciada em 2004-05. Esse ciclo foi o mais longo dos últimos 30 anos e foi sustentado, em grande medida, pela expansão industrial e aceleração da taxa de investimento. Com a crise financeira, os impactos negativos sobre produção,  investimento e emprego industriais têm sido significativos. Paradoxalmente, a crise global oferece algumas oportunidades para o desenvolvimento industrial brasileiro. 

O Brasil vivenciou nas últimas três décadas um indesejado processo de desindustrialização no âmbito de uma crescente e mal planejada internacionalização produtiva, financeira e comercial. Esse processo de desindustrialização deve ser entendido e mensurado pela perda crescente de capacidade da indústria de liderar e puxar o crescimento econômico. No Brasil, desde a década de 80, o produto industrial evoluiu a taxas inferiores a do PIB, que, por sua vez, evoluiu a taxas bem inferiores à média global e, sobretudo, das economias mais dinâmicas do sul e sudeste asiático (emergentes). O modesto crescimento econômico dificultou os avanços tão desejados e necessários em termos de desenvolvimento social.

Com baixas taxas de crescimento e de investimento, limitado desenvolvimento tecnológico, inadequada estrutura patrimonial e de financiamento, assimétrico padrão de inserção comercial e submetida a uma acirrada concorrência internacional, a indústria brasileira fragilizou sua capacidade competitiva e de geração de valor tanto no PIB doméstico quanto no produto industrial global, sobretudo com relação aos países emergentes do sul e sudeste asiático e do leste europeu.

A tendência de desindustrialização no Brasil apresentou uma relativa inflexão no ciclo de crescimento econômico do período 2004-2008. Nesse período a taxa de crescimento da economia brasileira foi de 4,6% a.a., que é o dobro da verificada nos últimos 20 anos, e a taxa acumulada de crescimento do produto industrial foi de 23%, incluindo os resultados do último trimestre de 2008. Já o segmento de bens de capital apresentou uma expressiva expansão de 80% em 5 anos, beneficiado pela aceleração da taxa de investimento que atingiu 19% do PIB em 2008. Assim, o que diferenciou o recente ciclo de crescimento foi o fato que a expansão do produto industrial e da taxa de investimento voltaram a ser os motores dinâmicos da economia.

É importante ressaltar que a retomada de crescimento da indústria foi facilitada pelo cenário internacional extremamente favorável, vigente entre 2003 e setembro de 2008. Além do aumento na quantidade demandada de várias commodities agrícolas e minerais, impulsionado pelo crescimento da China, os preços internacionais desses importantes produtos na pauta de exportações brasileira foram inflados por movimentos especulativos nas bolsas de mercadorias mundiais. Indiretamente, esse movimento beneficiou também as exportações de produtos manufaturados brasileiros, uma vez que vários países, em especial na América do Sul, foram beneficiados por esses ganhos de termos de troca e passaram a importar mais manufaturados do Brasil.

Enquanto no período 1990-2002 a taxa média de crescimento anual das exportações brasileiras foi de 5,6%, entre 2003 e 2008 essa taxa elevou-se para 22%. O volume recorde de US$ 198 bilhões atingido pelas exportações em 2008 superou em cerca de US$ 125 bilhões as exportações de 2003, resultando em reservas elevadas e em redução da vulnerabilidade externa.

É importante ressaltar que esse cenário externo permitiu também que algumas empresas viabilizassem um importante esforço de internacionalização produtiva via realização de investimentos diretos no exterior. A estrutura produtiva brasileira, que sempre foi caracterizada pela grande presença de empresas estrangeiras nos mais diversos setores, e pelo volume elevado de investimentos recebidos do exterior, passou a mostrar alguns sinais de redução nessa assimetria.

Cumpre lembrar, porém, que embora alguns setores e empresas tenham se beneficiado desse cenário externo favorável, a elevação da demanda externa não foi capaz de dinamizar por si só o conjunto da estrutura industrial.  Esse dinamismo industrial esteve associado ao aumento da demanda doméstica por bens de consumo, sobretudo duráveis e semi-duráveis, fortemente beneficiados pelo aumento da massa salarial e pela melhoria das condições de crédito. A forte expansão da produção doméstica beneficiou-se da existência de uma capacidade produtiva relativamente ociosa e das crescentes importações de insumos e componentes, barateadas devido à valorização cambial.

Em um segundo momento, o vetor de dinamismo concentrou-se na expansão generalizada dos investimentos na agricultura, na indústria, nos serviços e na infraestrutura. A taxa de crescimento da formação bruta de capital fixo (FBCF) foi mais que o dobro da taxa de crescimento do consumo e do PIB entre 2006 e o terceiro trimestre de 2008 e superou em larga medida as taxas dos demais países avançados e emergentes, com exceção da China. A forte expansão na demanda por investimentos foi suportada pelo aumento da produção doméstica de máquinas e equipamentos e pelo incremento das importações de bens de capital.

Os vetores de transmissão da crise financeira internacional têm sido a retração dos fluxos de crédito e de comércio internacional e a deterioração das expectativas. Inicialmente, os setores mais atingidos pela crise internacional foram aqueles fortemente dependentes da demanda externa e do bom desempenho dos preços internacionais (commodities agrícolas, minerais e metálicas) e dos fluxos de crédito externo e doméstico para consumo: cadeia automobilística, construção civil e bens de consumo duráveis, sobretudo os bens de informática. A interrupção dos fluxos de financiamento afetou também o fluxo de caixa das empresas, impossibilitadas de financiarem seu capital de giro e/ou renovarem suas linhas de financiamento de médio e longo prazo às exportações e/ou ao investimento. A crise no mercado de capitais aprofundou as dificuldades de financiamento.

Navio cargueiro deixa o porto de Santos: crise interrompe círculo virtuoso de crescimento econômico (Foto: Antônio Scarpinetti/Antoninho Perri)As estratégias defensivas e preventivas dos grandes grupos econômicos nacionais e das filiais de empresas estrangeiras, buscando reduzir o grau de alavancagem operacional e financeira, num quadro de escassez de crédito e de contração da demanda, promoveu um forte ajuste no nível de emprego e de produção, contraindo a massa salarial e a renda, realimentando assim o círculo vicioso. Neste contexto mesmo os setores de bens de consumo não-duráveis (vestuário e alimentos) menos dependentes de crédito e mais da renda também sofreram os impactos da queda da demanda.

O Governo tem buscado amenizar os impactos da crise com medidas compensatórias destinadas a expandir o crédito e financiamento ao consumo, exportação e investimento (redução do compulsório e atuação mais agressiva dos bancos públicos), ampliar a massa salarial (aumento real do salário mínimo e do prazo do salário-desemprego) e melhorar as expectativas empresariais com medidas fiscais e tributárias, em que pese a conservadora e equivocada política de redução tardia e lenta da taxa básica de juros por parte do Banco Central.

Mas sem dúvida a medida mais contundente e eficaz tem sido a tentativa de manter ou ampliar os investimentos em áreas estratégicas (Petrobrás), em infraestrutura básica (energia elétrica, rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, saneamento) e em construção civil. Com a retração do consumo e do investimento privado, os investimentos públicos e/ou induzidos em parceria com o setor privado tornaram-se o principal vetor de sustentação da demanda doméstica e da produção. Ainda assim, as previsões são de forte desaceleração na taxa de crescimento em 2009, não sendo descartada a possibilidade de recessão econômica.

Assimetria
Os impactos dessas medidas sobre a indústria ainda são incertos mas com certeza serão bastante assimétricos. Os setores exportadores de commodities minerais, metálicas e agrícolas serão pouco beneficiados. A recente desvalorização cambial tende a melhorar a rentabilidade de alguns segmentos, mas não parece ser suficiente para compensar a forte contração da demanda externa nem da redução dos preços internacionais nos principais mercados mundiais. Além disso, a própria redução de perspectivas de rentabilidade pode fomentar processos de consolidação internacional via fusões e aquisições.  Isso pode representar uma ameaça para algumas empresas brasileiras, mas também pode representar oportunidade para aumentar a presença internacional.

No caso de setores que foram fortemente afetados pela maior competição com o produto importado (calçados, vestuário e têxtil) em razão da forte apreciação do câmbio nos últimos anos, estes deverão ser beneficiados pela desvalorização cambial. Também seria o caso de alguns setores de insumos e componentes (eletrônico, fármacos e autopeças), que  poderão compensar parcialmente a retração de demanda em razão da redução da competitividade das importações.

Além disso, os setores de bens de consumo não-duráveis poderão ser beneficiados pelas medidas compensatórias para manter e/ou minimizar a contração da massa salarial. Cabe destacar que existem dois grandes riscos nesse caso. O primeiro está associado à ampliação das taxas de desemprego e a conseqüente retração da demanda doméstica. O segundo diz respeito ao acirramento da concorrência com os grandes produtores asiáticos que dominam o comércio mundial de produtos como têxteis e calçados. Com os mercados dos países desenvolvidos em retração a busca por mercados alternativos com práticas comerciais agressivas com certeza deve ocorrer.

No caso dos bens de consumo duráveis, sobretudo, aqueles de maior valor agregado como os automóveis, fortemente dependentes do crédito, a  melhoria das condições de financiamento (volume, custo e prazo) será crucial. Naquelas cadeias produtivas mais internacionalizadas e com forte presença de filiais de empresas estrangeiras, as estratégias domésticas serão ainda em grande medida condicionadas pelo contexto externo bastante desfavorável.

O setor de bens de capital sob encomenda fornecedor  das obras de infraestrutura e de construção civil serão menos impactados se os investimentos públicos forem mantidos ou mesmo ampliados através de parcerias público-privadas. Já o segmento de bens de capital seriados será forte e negativamente afetado pela retração e/ou postergação dos investimentos industriais.

Em síntese, a crise internacional interrompeu um círculo virtuoso de crescimento econômico e de consolidação da indústria brasileira. O que esse ciclo recente confirmou foi a importância de uma indústria dinâmica e diversificada para a obtenção de um padrão de crescimento econômico mais intenso e sustentado. Sem o desenvolvimento industrial, o Brasil não logrará seu desenvolvimento econômico e social. Assim, as políticas e instrumentos de enfrentamento da crise deverão priorizar na agenda o desenvolvimento industrial de médio e longo prazo.

Esta agenda deveria abarcar duas questões estratégicas ausentes ou não implementadas pelas políticas recentes, mas que se mostram cruciais para o enfrentamento e superação da crise internacional. Primeira, uma profunda reestruturação patrimonial que aumente a capacidade competitiva e tecnológica e viabilize um novo perfil de internacionalização comercial e produtiva de grupos econômicos nacionais. Segundo, um novo padrão de financiamento de longo prazo adequado às estratégias de crescimento, investimento e desenvolvimento tecnológico.

Continua nas páginas 6 e 7

 
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