Untitled Document
PORTAL UNICAMP
4
AGENDA UNICAMP
3
VERSÃO PDF
2
EDIÇÕES ANTERIORES
1
 
Untitled Document
 


Um olho na Europa. E o outro, no poder

Pesquisa investiga a função social do ensino secundário nos períodos colonial e imperial

MANUEL ALVES FILHO

Solange Zotti: “A educação no Brasil foi estruturada a partir da transplantação de padrões da cultura européia” (Foto: Divulgação)No Brasil, durante os períodos colonial e imperial [século XVI ao XIX], o ensino secundário cumpriu a função fundamental de formar quadros dirigentes e intelectuais afinados com os interesses das classes hegemônicas. A conclusão é da educadora Solange Zotti, que defendeu recentemente tese de doutorado sobre o tema na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. De acordo com a pesquisadora, o principal papel cumprido por esse nível de ensino era o de preparar os filhos da elite aristocrática para o ingresso no ensino superior, notadamente em países da Europa. O trabalho foi orientado pelo professor José Luís Sanfelice.

Em sua pesquisa, Solange Zotti investigou a função social do ensino secundário no contexto da formação da sociedade capitalista brasileira. No período tomado para análise, lembra, a estrutura econômica do país baseava-se na produção agrícola e extrativista e no uso da mão-de-obra escrava. Tal modelo, por sua vez, estava submetido aos interesses de Portugal e do capitalismo europeu de forma geral. Criado e consolidado nesse panorama, o ensino secundário foi organizado de modo a também servir aos projetos dos grupos que detinham o poder, tanto na fase colonial quanto na imperial. “Não por acaso, a educação no Brasil foi estruturada a partir da transplantação de padrões da cultura européia”, afirma a autora da tese.

Uma das marcas desse ensino, prossegue a educadora, era o seu caráter preparatório, visando principalmente ao ingresso dos estudantes no ensino superior. “Justamente por isso as disciplinas eram majoritariamente da área de humanidades, como literatura e idiomas, porque constituíam o conhecimento básico para o acesso às demais carreiras”, explica. Solange Zotti assinala que a origem do ensino secundário está no trabalho realizado pelos jesuítas, que chegaram ao Brasil em 1549, sendo o primeiro grupo liderado por Manoel de Nóbrega. Embora a missão principal dos religiosos naquela época fosse a catequização dos indígenas, eles também criaram um sistema de educação chamado de “primeiras letras”, equivalente ao ensino fundamental (séries iniciais) de hoje. O objetivo era fazer com que os jovens aprendessem a ler, a escrever e a fazer contas.

O quadro “O Marquês de Pombal expulsando os jesuítas”, de Louis-Michel van Loo e Claude-Joseph Vernet (1766): mudança de diretrizes (Foto: Reprodução)Os estudantes que se destacavam eram então selecionados para aprender latim, atividade que correspondia ao ensino secundário. Posteriormente, eram encaminhados a Portugal, onde dariam continuidade aos estudos e se formariam sacerdotes ou optariam por outras profissões. Numa segunda fase, com o advento dos colégios jesuítas, a educação passou a ser mais organizada no país. O currículo foi ampliado e o modelo contemplou a evolução seriada. “Ainda assim, a base do curso era humanística, pois era fundada em disciplinas como literatura, latim e retórica”, destaca Solange Zotti. Os alunos, de acordo com ela, eram os filhos dos colonos e das camadas dirigentes que tinham o papel de articular os interesses metropolitanos.

Novos quadros
A autora da tese observa que esse tipo de educação atendia tanto aos interesses da Igreja, empenhada em formar novos quadros e em expandir sua proposta evangelizadora, quanto do Estado português, que queria preservar a sua condição hegemônica. O atrelamento do trabalho jesuítico ao ideal político e econômico de Portugal foi de tal ordem que os religiosos, com raras exceções, não se posicionaram contra o regime escravagista.  “Como a escravidão era defendida como uma necessidade pelo Estado português, os jesuítas se adaptaram à situação. Nesse aspecto, o trabalho de catequização e educação realizado pelas ordens religiosas contribuiu para a concretização dos objetivos da colonização”, reflete Solange Zotti.

De acordo com ela, o sistema educacional implantado no Brasil era exatamente igual ao praticado em Portugal. Houve, reforça a educadora, uma “transplantação” da cultura européia em geral e portuguesa em particular para o país. A intenção era transformar a realidade local a partir dos conceitos estrangeiros. Essa lógica, conforme a autora da tese, sobreviveu ao fim dos trabalhos dos jesuítas em terras brasileiras, determinada pela Reforma Pombalina, empreendida por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Naquele instante, a nação portuguesa começava a questionar o poder da Igreja na Europa e a sua própria situação política e econômica, visto ser o Estado menos desenvolvido do Continente.

Como consequência dessa reavaliação, o bloco europeu passou a entender que o desenvolvimento econômico estava diretamente associado ao avanço da ciência. Assim, a razão, o espírito crítico e o livre pensamento, princípios que não eram defendidos pela Igreja, ganharam relevância. “Diante disso, o Estado Português assumiu os rumos da educação no Brasil. Os colégios jesuítas foram extintos e o modelo de ensino criado pelos religiosos foi substituído por outro que instituía as aulas régias, compostas por disciplinas isoladas. No início, esse projeto enfrentou várias dificuldades, inclusive a falta de professores e a escassez de bibliografia adequada à nova proposta pedagógica”, conta Solange Zotti.

Apesar da mudança de foco, o ensino secundário permaneceu tendo um perfil fortemente humanista e seguiu servindo como preparatório ao curso superior. Também continuou voltado aos filhos das elites locais.  Com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, consolidou-se o modelo de aulas régias. O conteúdo das disciplinas, assinala a pesquisadora, obedecia às determinações dos cursos superiores, sobretudo Direito e Medicina. “Na época, os estudantes saídos do ensino secundário faziam provas, semelhante ao vestibular atual, para comprovar o conhecimento adquirido e assim poder dar prosseguimento aos estudos em nível superior”, diz.

Mesmo com as especificidades de cada uma das conjunturas consideradas no trabalho acadêmico, reafirma Solange Zotti, é possível concluir que o ensino secundário no Brasil cumpriu, ao longo de todo o período tomado para análise, a função básica de formar quadros que estivessem comprometidos com os interesses dos detentores do poder político e econômico. “Esse projeto certamente ajudou a difundir uma visão de mundo desse grupo hegemônico. Tratou-se, em última análise, de uma função coerente com o modelo de sociedade de então, fortemente baseada nas atividades agrícola e extrativista. Dentro dessa lógica, na qual o regime escravista era encarado como necessário ao desenvolvimento, a educação era tida como um instrumento para preparar aqueles que teriam a missão de ocupar as posições de comando no país”.

Um ponto interessante levantado pela educadora refere-se ao fato de a educação atual guardar, de alguma forma, similaridades com a que era oferecida nos períodos colonial e imperial. “As críticas de hoje, de que o ensino secundário está mais preocupado com a preparação do jovem para o vestibular do que com o seu desenvolvimento intelectual, são semelhantes às que encontrei nos documentos oficiais que balizaram meu trabalho, como relatórios de ministros do Império”, compara Solange Zotti.    


 
Untitled Document
 
Untitled Document
Jornal da Unicamp - Universidade Estadual de Campinas / ASCOM - Assessoria de Comunicação e Imprensa
e-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP