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Longe da quimera, perto do real

Intelectuais de universidades europeias interpretam a
sociedade contemporânea à luz da utopia

DA REDAÇÃO*

Cena de Metropolis, filme dirigido por Fritz Lang nos anos 1920 Os professores Cosimo Quarta (Universidade do Salento), Jean-Michel Racault (Universidade da Réunion), Peter Kuon (Universidade de Salzbourg) e Vita Fortunati (Universidade de Bolonha) analisam, nesta e nas próximas duas páginas, o lugar do ideário da utopia no mundo contemporâneo e sua influência na produção cultural, apontando também quais são as obras relevantes que atualmente se enquadram no pensamento utópico.

Os quatro intelectuais, que fazem parte do conselho editorial da Revista Morus, editada no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), participarão do II Congresso Internacional de Estudos Utópicos, que ocorre na Unicamp entre os dias 7 e 10 de junho. O evento reunirá representantes de 11 países e de 36 universidades.

Jornal da Unicamp - A utopia ajuda a compreender o mundo contemporâneo?
Jean-Michel Racault - Poderíamos responder a esta pergunta com duas outras: O que se deve entender por mundo contemporâneo? O que é utopia?
A primeira pergunta é bastante simples. Se o "mundo contemporâneo" é entendido como aquele ao qual pertence certa obra utópica, seu autor e também seus leitores, a resposta é, certamente, sim. Parece que em todas as épocas a função principal dos textos utópicos foi a de entabular uma reflexão crítica sobre a realidade social na qual eles estão enraizados.

A República de Platão é uma resposta à crise das cidades gregas após a guerra do Peloponeso, no momento em que elas se encontram em meio a modelos antagonistas, Atenas e Esparta, a democracia e o autoritarismo, o comércio e a guerra. Quando publica sua Utopia em 1516, em plena conquista européia da América e às vésperas da Reforma, é evidente que Thomas More tenta pensar ao mesmo tempo os dois problemas que são colocados em sua época: um mundo brutalmente dilatado pelas Grandes Descobertas, e as relações do cristianismo e do paganismo em uma perspectiva religiosa renovada pelo humanismo evangélico.

Mas se a palavra "contemporâneo" designa o mundo onde nós vivemos hoje, em 2009, a questão exige que nos indaguemos se este vastíssimo corpus de textos que se estende por mais de dois milênios - grosso modo, da República de Platão à atual ficção científica - tem algo a nos ensinar ainda hoje. Sobre este ponto, a resposta depende muito da universalidade ou da variabilidade dos ideais e dos sistemas políticos: o que nos aparece hoje em dia como bom e justo seria também o ideal de dois mil anos atrás? A tipologia dos modelos de governo sobre a qual o pensamento político se apoiou durante séculos - timocracia, oligarquia, democracia, tirania - é passível de ser transposta ao mundo atual, apesar de todas as suas mutações?

Quanto à segunda interrogação - o que é a utopia? - ela é provavelmente insolúvel, pois esta palavra compreende duas noções diferentes. Se chamarmos de utopia o "sonho de um mundo melhor", ou seja, a aspiração a transformar a realidade existente para que se chegue a uma sociedade mais racional, mais justa, mais feliz… o objetivo parece ser agir sobre a realidade contemporânea ao invés de procurar compreendê-la, mesmo que uma coisa dependa da outra.

Mas ganharíamos em clareza se batizássemos de utopismo tudo o que se configure como programa de transformação radical da sociedade, reservando a palavra utopia para um gênero literário em que se apresenta ao leitor uma sociedade imaginária, apartada, em funcionamento, como se ela realmente existisse. Há, portanto, sem dúvida alguma, um deslocamento em relação ao mundo contemporâneo do autor e do leitor. No entanto, este deslocamento não se situa mais na dimensão do porvir, como é o caso no utopismo, mas na dimensão do alhures - por exemplo, numa ilha dos antípodas.

Neste caso, o objetivo primeiro não é transformar a sociedade de seu tempo, mas ajudar a compreendê-la, pensando-a em sua complexidade. Contrariamente à representação convencional do utopista como um sonhador irrealista ou um entusiasta ingênuo, os autores das utopias são mais irônicos do que militantes.

Vita Fortunati - Estudando a utopia no final do século XX e no início do século XXI não se pode prescindir de interrogar-se sobre sua função na história e na sociedade contemporânea. Tal questão é fundamental não apenas quando se elabora um projeto de pesquisa, mas também se escolhemos trabalhar com os temas da utopia e do utopismo em cursos destinados a estudantes universitários.

Penso que a potência da utopia reside na capacidade de suscitar um pensamento sobre os possíveis laterais da experiência. Trabalhar, nestes anos, tem tido o sentido de confrontar-me com estudiosos de disciplinas diversas, unidos por uma clara vontade de repensar tanto a capacidade de especulação e abstração que a utopia implica, quanto suas declinações históricas e suas valorações políticas e ideológicas. Ainda mais ambiciosa foi, e ainda é, a vontade de entender se é possível adotar a utopia como método, isto é, como instrumento de indagação do real, como método hermenêutico.

Nessa perspectiva, creio poder individuar finalidades comuns aos estudiosos do Centro, afirmando que indagar sobre a utopia e a antiutopia nestes anos significou atribuir um valor importante ao percurso heurístico que cada pensador utópico traça, ainda que com orientações extremamente diversas. A utopia pode também ser considerada como a procura de compensação para algo que está faltando e se busca tenazmente, tanto em termos sociais quanto pessoais. Como evidenciaram F.E. Manuel e F.P. Manuel em Utopian Thought in the Western World [1979], a relação que o utopista instaura com o tempo e com a história é complexa e intricada.

O utopista observa o real com um olhar escrutador e em seguida se distancia, ou mais precisamente, recua para assumir um comportamento crítico, desconstrutivo frente aos males e à sociedade contemporânea. A utopia - e aqui fica clara a ligação genealógica com a sátira - pressupõe uma recusa global do mundo: o utopista opera uma dissecção que o leva a efetuar uma cesura. Enquanto o escritor satírico anatomiza o real para revelar seus defeitos, o utopista é capaz de superar a fase destruens pela criação do projeto: ele descompõe o real para recompô-lo segundo o próprio nomos.

Na utopia positiva se passa sempre de uma fase destruens a uma fase costruens. Observar as convenções e as instituições de um ponto de vista recrutado significa esvaziá-las dos significados que lhes são atribuídos pelo senso comum. Este procedimento passa de comportamento mental a, não apenas um expediente de técnica literária, mas também a um modo de deslegitimar cada aspecto político, social e religioso da sociedade onde vive o utopista.

* Colaboraram: prof. Carlos Eduardo Berriel e Ana Cláudia R. Ribeiro (tradução)
(Continua nas páginas 6 e 7)

 

 
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