| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 313 - 20 de fevereiro a 5 de março de 2006
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Fabiana Bonilha
 

6-7

O Mandarim. Uma história
da infância da Unicamp

 

A partir deste número o Jornal da Unicamp trará, em sua edição semanal, um ou mais capítulos do livro inédito O Mandarim. História da infância da Unicamp. O autor é o jornalista Eustáquio Gomes, coordenador de imprensa da Universidade desde 1982, com um hiato entre 1999 e 2002. A publicação do livro em fascículos e sua posterior edição impressa – os 34 capítulos já estão escritos, mas o autor espera “poder melhorá-los ao longo da série” – entram no contexto das comemorações dos 40 anos da Unicamp, celebrados em 2006.

“Um livro como este nunca é definitivo”, diz o autor, “porque com freqüência as pesquisas e depoimentos colhidos para escrevê-lo são incapazes de levar à convergência das versões existentes, por vezes numerosas, sobre um mesmo fato, por simples que seja”. Embora tenha recorrido à documentação disponível em acervos públicos e particulares, dos quais o mais importante é sem dúvida o Arquivo Central do Sistema de Arquivos (Siarq) da Unicamp, o autor se amparou fortemente em elementos de história oral, valendo-se da memória de pioneiros ainda vivos e levando em conta que raramente as histórias de bastidores são documentadas.

Mais de 60 entrevistas foram feitas nos últimos cinco anos, não faltando alguma recusa que o autor ainda tem a esperança de dissuadir. A publicação prévia em jornal tem aliás o propósito de levantar críticas e observações que possam levar à correção de erros ou à calibragem de enfoques.

Esta narrativa cobre um período que começa em 1956, ano da organização da campanha pela criação de uma faculdade de medicina em Campinas – aquela que se tornaria o núcleo embrionário da Unicamp – e termina em abril de 1982, com a posse do reitor José Aristodemo Pinotti. Segundo essa concepção a era Zeferino, que o autor toma como a “infância” da Universidade, se encerraria catorze meses após sua morte. No estilo dos romances de suspense, é pela morte que o autor principia.

CAPÍTULO 1

O dia em que Zeferino não embarcou num cruzeiro

Onde a história da Unicamp se mistura com a passagem pela costa brasileira do transatlântico Navarino, de bandeira grega

EUSTÁQUIO GOMES

O navio Navarino numa foto da década de 80 (Foto: Reprodução)FEVEREIRO DE 1981. Atracado no porto de Santos, otransatlântico Navarino, de bandeira grega, preparava-se para fazer sua última viagem – um sossegado cruzeiro até o arquipélago de Fernando de Noronha, na costa nordeste do Brasil – a serviço da Karageorgis Lines. Ninguém poderia prever que seis meses depois, na ilha de Patmos, o Navarino seria quase destruído por um incêndio que irrompeu em sua casa de máquinas. Vendido a outra companhia, foi reformado e transformado em navio de carga, mudando de nome para Regent Sea. Nem assim livrou-se de bater contra um cais flutuante e danificar-se seriamente. Em julho de 2001 foi vendido como sucata a uma empresa indiana. Não chegou a completar a viagem de entrega: depois de ser atacado por piratas na costa de Dacar, naufragou ao sul do cabo da Boa Esperança, após quarenta e quatro anos de vida no mar.

Se tivesse o poder da antevisão, como às vezes pensava que tinha, Zeferino Vaz certamente teria evitado comprar aquelas duas passagens para Fernando de Noronha — uma para Arlinda Rocha Camargo, a secretária-geral da universidade que fundou e dirigiu por doze anos, e outra para si mesmo. De todo modo, nenhum dos dois embarcou. Uma semana antes da viagem, o capitão do navio confidenciou a Zeferino sua preocupação com as condições de desembarque no porto de Santo Antônio. O ex-reitor ofereceu-se para ajudar. No dia seguinte, por volta da uma da tarde, de seu escritório no campus da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, ele entrou em contato com a administração militar do arquipélago e informou-se minuciosamente sobre o porto e a posição exata de fundeamento dos navios de grande tonelagem.

Ao depor o telefone no gancho, sentiu uma onda de calor e ardência no peito. Estava tendo um aneurisma na aorta abdominal. Arlinda, que há vinte anos o acompanhava de um posto a outro, foi alertada por Maura, uma de suas auxiliares. Entrou na sala e deu com o chefe, pálido, de braços caídos ao longo da poltrona. Gritou por socorro. No andar de cima, onde funcionava o gabinete do reitor, o rebuliço foi grande. O almoço foi interrompido e todos se levantaram. Zeferino passando mal na reitoria era como o colapso do papa em Roma. Plínio, o reitor que o sucedera no cargo, estava de viagem mas seu filho Bento, que também fazia de secretário particular do pai, desceu correndo a escada em curva do prédio. Encontrou Zeferino estendido no tapete, ofegante. Telefonou para o hospital da universidade, um prédio em esqueleto onde por ora só funcionava o pronto-socorro. Ouviu que a última ambulância tinha acabado de deixar o pátio: o motorista costumava almoçar em casa e levara o veículo. Bento meteu-se num Fiat 147 da reitoria e conseguiu interceptar a ambulância no balão de entrada do campus. Ele e o motorista chegaram a tempo de ver Zeferino tentar recompor-se, mas não a ponto de se pôr de pé. Baixaram a maca e o transportaram para o interior da ambulância. Era leve: 60 quilos proporcionais a parcos 158 centímetros de altura. Naquela penosa circunstância, encolhido na maca, parecia ainda menor.

Zeferino preside reunião do ‘Conselhinho” em 1967. À sua esquerda, Paulo Gomes Romeo, Rubens Murillo Marques e Arlinda Rocha Camargo; à direita, Giuseppe Cilento e Carlos Liberalli (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)A ambulância contornou o edifício da reitoria, margeou os jardins da administração e deixou para trás os prédios dos institutos e faculdades, treze ao todo naquela altura, cenário que ele havia montado, peça por peça, a partir de 1966. Agora, sem que desconfiasse, deixava-o para sempre. Deitado na maca, de olhos fechados mas lúcido, Zeferino tentou tranqüilizar Arlinda, que no último instante saltara para a ambulância. Disse-lhe que não perdesse tempo com ele. Que aquilo não era nada. E que, chegando ao hospital, tomasse um carro e voltasse ao escritório. Trabalho era o que não faltava. Desde que deixara o posto de reitor, ocupava-se com organizar a fundação da universidade.

O Hospital Irmãos Penteado fica no centro de Campinas. Ali o ex-reitor já era esperado pelo diretor da Faculdade de Ciências Médicas, o ginecologista e obstetra José Aristodemo Pinotti. Avisado por Bento, Pinotti colocara em alerta o cirurgião cardiovascular Renato Terzi, que nesse dia chefiava a emergência da casa. Terzi era ex-aluno de Zeferino. Meia dúzia de médicos se reuniu em torno do paciente. Enquanto discutiam os procedimentos a tomar, Zeferino, acostumado a dar ordens, pôs em marcha o seu humor cáustico:

— Decidam logo. Não quero ter um cadáver no colo.

Os exames confirmaram a suspeita. O aneurisma, quando não causa morte imediata, pode levar à perda dos sentidos ou, em alguns casos, a uma sensação de uma falsa recuperação graças ao tamponamento da ruptura pela pressão interna da aorta. Se não houver intervenção cirúrgica imediata os órgãos vitais tendem a entrar em colapso. Era o que Terzi explicava a um Zeferino hipotenso enquanto o conduziam ao centro cirúrgico. A cirurgia durou duas horas e correu bem. Presentes, além de Terzi, o cirurgião cardíaco Valentim Baccarin, um médico-residente, o anestesista e a instrumentadora. O aneurisma foi aberto e a aorta rompida recebeu um enxerto.
Levado para a UTI, o paciente passou bem a noite mas logo de manhã apresentou sinais de insuficiência respiratória. A gasometria indicou que os pulmões não estavam oxigenando satisfatoriamente. Foi necessário submetê-lo ao respirador mecânico. Mesmo assim, pelo vidro, acenou para a filha Marly e fez um sinal positivo para dona Yoanna, a esposa, que tinham vindo às pressas de São Paulo no dia anterior. Sérgio e Fernando, os outros filhos, interromperam as férias e estavam a caminho.

No segundo dia, quando se constatou que os rins tinham parado de funcionar, a família concordou em transferi-lo para São Paulo. Os Vaz residiam lá e era bom estar perto de casa numa hora dessas. Em Campinas, o paciente teria de se deslocar a outros hospitais para fazer hemodiálise (o Irmãos Penteado não contava com esse serviço), o que seria um grande transtorno. Pelo telefone Terzi entendeu-se com o Dr. Ruy Sevado Bevilacqua, médico do Hospital Sírio-Libanês e da Universidade de São Paulo, um dos pioneiros da medicina intensivista no país. Bevilacqua aceitou assumir o caso.

Mas o que se passou na capital foi uma escalada dos problemas começados em Campinas. Além do déficit respiratório e do colapso dos rins, Zeferino apresentou insuficiência cardiovascular e uma gotejante hemorragia que se estendeu do local do aneurisma a toda a cavidade abdominal. Rapidamente se caracterizava um quadro de falência múltipla de órgãos — no caso, quatro — em que as chances de sobrevivência diminuíam a cada hora. Se a cirurgia houvesse sido feita antes da ruptura, isto é, preventivamente, o risco de vida seria de apenas 5%. Mas Zeferino, mesmo sendo médico (com especialidade em parasitologia e biologia geral), nunca ia a médicos. Nos últimos anos tornara-se esclerótico e não sabia disso. Confiava na sua meia hora de ginástica diária e no quilômetro e meio que fazia, antes e depois do jantar, pelos gramados do campus. Mantinha a crença de que movimentar os dedos das mãos ativava a circulação sangüínea. “Sou biólogo e sei que a inércia física leva à degeneração orgânica”, dizia. E lembrava com orgulho seus tempos de velocista do Clube Atlético Paulistano, especialista nos 100 e 200 metros rasos, sem falar no revezamento 4x100 e 4x200, como se esses feitos de juventude o tivessem imunizado das doenças e também, quem sabe, da morte.

Contudo ele também era humano, embora às vezes não parecesse. Morreu às quatro da tarde do dia 9 de fevereiro de 1981, sete dias depois de ter comprado as passagens para o último cruzeiro do Navarino. Completaria 73 anos em maio.

CAPÍTULO 2

“Prefiro plantar perobas a plantar couves”

De como o pequeno ator, jovem velocista e soldado constitucionalista de 1932 desenvolveu a crença de que tinha o corpo fechado

VINHA DA INFÂNCIA a crença de Zeferino na própria imunidade física. Aos seis anos, quando a irmã Marina teve tifo, deitava-se ao lado dela com o intuito de contaminar-se. No entanto, não contraiu nenhuma doença comum da infância, exceto brotoeja. Durante a epidemia de gripe espanhola, em 1918, repetiu o costume de deitar-se na cama da irmã, que por pouco não morre. Não ficou nem mesmo resfriado. Foi assim durante quase toda a sua vida, levando-o a gracejar em casa e até em reuniões acadêmicas que tinha o “corpo fechado”.1

Zeferino Vaz nasceu na cidade de São Paulo em 27 de maio de 1908. Os pais, José e Izolina, eram espanhóis da Galícia que se mudaram para o Brasil na virada do século. A família era abastada. Dos seis aos oito anos passou viajando por Espanha, Portugal e França na companhia dos pais e dos três irmãos. Voltaram em 1917 com o oceano juncado de submarinos alemães. Deve ter contribuído para seu senso de infalibilidade o fato de que a viagem, com todos os passageiros trajando salva-vidas, transcorreu sem incidentes.

Zeferino garoto: esporte, teatro e cinema com Rodolfo Mayer (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)No Liceu Coração de Jesus, em São Paulo, os padres trataram de canalizar seu excesso de energia para o esporte e o teatro. Sua admiração pelos salesianos duraria a vida toda e, embora não fosse católico praticante, declarava sua devoção por Dom Bosco. Chegou a subir ao palco com Rodolfo Mayer e protagonizou a seu lado um filme em 1921, Como Deus castiga, tornando-se, aos doze anos, um pioneiro do cinema nacional. Da adolescência até os 25 anos foi velocista do Clube Atlético Paulistano. E praticava jiu-jitsu na Universidade de São Paulo, onde graduou-se e doutorou-se em Medicina com especialização em parasitologia e doenças parasitárias, zoologia e biologia geral e genética.

Entre os mestres que marcaram sua formação, Zeferino destacava Lauro Pereira Travassos (“o maior helmintologista da América do Sul e um dos maiores do mundo”, nascido em 1890 e falecido em 1970), o naturalista Rodolfo von Ihering (1883-1939) e os médicos André Dreyfus (1897-1952), Arthur Neiva (1880-1943) e Henrique Rocha Lima (1879-1956), todos cientistas que hoje freqüentam as enciclopédias. “Eles me plasmaram a mente e a alma”, escreveu certa vez.

Em 1932, já médico formado, combateu na Revolução Constitucionalista do lado paulista. A seus alunos da USP dizia que as noites a céu aberto, cavando trincheiras, eram mais educativas do que muitas aulas da faculdade.

Aos 27 anos tornou-se catedrático — ou mandarim, segundo sua expressão – após defender tese na área de zoologia médica e parasitologia. “Eu já comecei mandarim”, diria mais tarde, “mas isso não impediu que tivesse consciência de ser a cátedra a única instituição feudal do Brasil”. Para ele, o catedrático brasileiro era “um senhor feudal de baraço e cutelo”.

O fundador da Unicamp no traço de Rubens Gonzaga de Campos Leite (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)Três décadas depois elogiaria publicamente o ministro da Educação do governo militar de Castello Branco, Raimundo Muniz de Aragão, que patrocinou o projeto de extinção da cátedra no país e implantou o sistema departamental nas universidades, coisa que Zeferino já havia feito por antecipação no desenho acadêmico da Unicamp. Qualificou o projeto de “a verdadeira democratização da universidade”. Em 1936, no entanto, iniciou uma carreira de mandarim cujo gosto por períodos administrativos longos ele demonstrou como diretor da Faculdade de Medicina Veterinária da USP (1936-1947), diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (1951-1964) e reitor da Universidade Estadual de Campinas (1966-1978). O mandarinato foi frutífero na medida em que fez dele um especialista em organizar, implantar e administrar escolas superiores de concepção didático-científica sempre um passo adiante do que existia então. Ao longo de quarenta e três anos de carreira acadêmica, até ser apanhado pela compulsória em 1978, foi responsável direto pela criação de quatro faculdades de Medicina (Ribeirão Preto, Botucatu, Santos e São Paulo), uma escola de Engenharia (São Carlos), uma faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas (São Paulo) e uma universidade – a Unicamp.

Aos que lhe perguntavam como fora possível realizar obra física tão extensa num país sem tradição universitária, gostava de responder na sua voz enfática e aguda:

— Acontece que não sou dos que plantam couves para comer pessoalmente amanhã. Prefiro plantar perobas que hão de beneficiar as gerações futuras.

1. Depoimento de Marly Vaz.

CAPÍTULO 3

Flores para o pequeno homem de sombra longa

Em que o governador Maluf discursa com a mão direita pousada no caixão coberto por uma bandeira da Unicamp

EM 10 DE FEVEREIRO de 1981, quando o corpo deixou o salão nobre da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na rua Dr. Arnaldo, onde fora velado durante a noite, uma pequena multidão já o aguardava no Cemitério da Consolação. Uma frase do editorial da Folha de S. Paulo daquela manhã era repetida nas conversas como um achado que podia servir de epitáfio ao morto:
— Era de pequena estatura, mas que sombra projetava ao seu redor.
Não por acaso em alguns círculos ele era chamado de “O Napoleãozinho”. O editorial, de autoria do físico Rogério Cézar de Cerqueira Leite, um dos mais fiéis escudeiros de Zeferino e membro do conselho editorial da Folha, usava um estilo quase épico para traçar o perfil do ex-chefe:

Notícia da morte de Zeferino, de  10 de fevereiro (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)Ninguém jamais esquecerá a força de seu olhar penetrante, a voz vibrante, o temperamento obstinado, a inquebrantável convicção. (...) Sua fronte magnânima dominava as feições delicadas revelando sua índole guerreira. Uma idéia promissora o fazia explodir no mais pueril e sadio entusiasmo. Uma injustiça o punha como um cavaleiro andante, imediatamente ao lado do mais fraco. Fazia inimigos com a mesma facilidade com que conquistava admiradores. (...) Prezava, talvez sem perceber, a fidelidade acima de todas as virtudes. (...) Acreditava que educar era quase sinônimo de amar. (...) Não lhe faltava coragem. Nos tempos dos desmandos autoritários, foi dos poucos que ousou interpor-se entre a força bruta da repressão e a fragilidade de intelectuais desafetos do regime. Valorizava acima de tudo o talento e a competência e abominava a mediocridade militante, pois sabia que somente essa perene inimiga poderia destruir a obra a que dedicara sua vida. E quantas vezes não fora ele derrotado pela mediocridade arregimentada? Para ressurgir após e tudo recomeçar. Desta vez, entretanto, Zeferino não voltará. E não há ninguém para ocupar seu lugar.1

Cerqueira Leite ia na linha de frente do cortejo até o túmulo, ao lado do governador nomeado Paulo Maluf, do reitor da Universidade de São Paulo Valdir Muniz Oliva e do dentista Plínio Alves de Moraes, sucessor de Zeferino na Unicamp. Com a mão direita pousada sobre o caixão coberto por uma bandeira da Unicamp, Maluf discursou no seu timbre nasalado e imperativo. Uma de suas frases foi destacada no dia seguinte pelos jornais:
— Ele fazia planos para daqui a dez, vinte ou trinta anos, como se fosse eterno.
E anunciou que naquela mesma tarde assinaria um decreto dando o nome do morto ao campus da universidade criada por ele, o que de fato fez. Enquanto falava seu secretário da Saúde, o cirurgião cardíaco Adib Jatene, o físico César Lattes chorava junto ao túmulo de granito negro, “num abandono desolado de menino”, conforme relatou mais tarde a ex-ministra Esther de Figueiredo Ferraz, velha conhecida de Zeferino.
Os discursos feitos ao pé do túmulo número 1 da rua 38 tendiam ao panegírico, assim como a maioria dos artigos, necrológios e depoimentos publicados nos dias seguintes. Todos se esforçavam por caracterizar a personalidade multifacetada de Zeferino e seu perfil de homem pequeno na aparência e agigantado na essência, até porque sua figura — uma mistura fisionônima do escritor André Malraux com o Amigo da Onça do cartunista Péricles — era um convite perene ao bico-de-pena. Assim José Nêumanne o descreveu no Jornal do Brasil:

Miúdo, o cigarro eternamente na ponta da piteira encravada no canto esquerdo da boca, a voz mansa e pausada, Zeferino Vaz pouco tinha que fisicamente justificasse agressividade ou disposição para brigar. No entanto, de todos os traços de seu caráter, certamente a franqueza devastadora e a constante necessidade de comprar uma briga por algum de seus ideais eram o que de melhor poderia definir sua trajetória de educador e homem público. (...) era certamente uma ave rara por jamais permitir um eufemismo quando podia dispor da palavra certa para definir uma situação ou um sentimento seu. (...) usava sempre a arma demolidora de um discurso cortante e sem meios-termos, de uma dureza que alguns adversários poderiam confundir até com crueldade.2

Zeferino entre Alexander Fleming e Paulo Gomes Romeo, em Ribeirão Preto, na década de 50 (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)Seguiu-se um sem-fim de missas e sessões de homenagem em São Paulo, no Rio, em Ribeirão Preto e em Brasília, lugares onde ele havia deixado laços de amizade ou de cumplicidade acadêmica. O ministro da Educação do governo militar do general Figueiredo, Rubens Ludwig, presidiu pessoalmente a sessão solene do Conselho Federal de Educação do dia 16, toda ela dedicada a lembrar Zeferino, seu antigo conselheiro. Esther, a presidente do Conselho, citou Bertolt Brecht a propósito do amigo: “Há homens que lutam um dia e são bons; há homens que lutam um ano e são melhores; há homens que lutam muitos anos e são muito bons; e há homens que lutam a vida inteira: esses são os imprescindíveis”. No fim do discurso, muitos conselheiros estavam de olhos úmidos.
Os elogios públicos iam do chavão ao retrato mais ou menos fiel do morto. “Poucos brasileiros terão dado contribuição tão importante ao desenvolvimento da pesquisa em nosso país”, disse o ministro Ludwig. Muniz Oliva foi generoso, deixando de lado a disputa entre a USP e a Unicamp, acirrada na época: “A história da universidade brasileira divide-se em antes e depois de Zeferino Vaz”. O senador João Calmon, num discurso no Senado, lembrou que Zeferino fora “taxado de louco por receber um canavial e a partir daí pretender montar uma universidade”, tornando-se talvez o único homem no mundo capaz de atrair, de uma só vez, 230 professores estrangeiros e 180 cientistas brasileiros que trabalhavam no exterior para uma aventura que ninguém sabia se ia dar certo. O sociólogo e crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza, a quem Zeferino chamara, no início da década de 70, para instalar o curso de letras da jovem universidade, revelou sua admiração pelo ex-reitor:

— Os dois anos em que colaborei com ele foram talvez a experiência mais rica de minha vida universitária. Ele foi um dos maiores líderes que conheci e talvez nenhum outro haja realizado individualmente no Brasil obra tão importante quanto a dele.
Nem mesmo o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, um representante da fina flor marxista dos anos 60 e 70 e uma vítima das listas negras da USP, no início do regime militar, a quem Zeferino admirava mas de quem guardava algumas léguas de distância ideológica — “esse moço tem uma inteligência diabólica”, costumava dizer — nem ele furtou-se a um comentário favorável:

— Impossível negar que na época da repressão Zeferino garantiu na Unicamp a liberdade de pensamento acadêmico e defendeu os professores perseguidos.
Somente um jornal de Campinas, o Diário do Povo, viria a destoar do florilégio geral um ano depois, por ocasião do primeiro aniversário da morte de Zeferino. Um certo Costa Carvalho, pseudônimo sob o qual se ocultava o filósofo Eduardo Chaves, dizia que, como qualquer homem público, Zeferino tinha seus defeitos e não havia por que negá-los. E acusava-o de ter alçado a “altos postos da administração da universidade pessoas de dúbios princípios morais e de competência questionável”.3 Não chegava a dizer que pessoas eram essas, mas bastaria a alguém folhear as coleções passadas de seu matutino para desvendar a origem da azeda crítica. Tinha o mérito de lembrar que, longe de ter sido um caminho plano e atapetado de flores, a história dos primeiros anos da Unicamp sempre esteve juncada de obstáculos.

Continua na próxima edição

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