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Texto original, tradução, adaptação ou imitação?

Ana Cláudia Suriani da Silva

Na seqüência, capas dos livros do belga Victor-Georges Hénaux, a  tradução de Machado e a edição bilíngüe da Editora da Unicamp (Fotos: Editora da Unicamp/Reprodução)

Em 1861 o nome de Machado de Assis saiu pela primeira vez impresso na folha de rosto de um livro, não na posição de autor, mas antes de tradutor de um ensaio cujo título, autor e língua originais foram omitidos. Trata-se de Queda que as mulheres têm para os tolos, livrinho publicado pela tipografia de Paula Brito, na época patrão e amigo de Machado e um dos primeiros a reconhecer e apostar no talento do jovem escritor. Através da pesquisa pioneira de Jean-Michel Massa, sabemos hoje que Queda é tradução do ensaio De l´amour des femmes pour les sots (1858), do belga Victor-Georges Hénaux.

Antes de sair em livro, essa mesma tradução havia sido publicada em cinco fascículos entre os meses de abril e maio de 1861 na revista carioca bissemanal A Marmota, do mesmo Paula Brito. Na publicação seriada não havia nenhuma indicação do autor da obra nem de que se tratava de uma tradução. Na verdade, esse tipo de omissão era prática muito comum nos periódicos ou revistas brasileiras, pelo menos na primeira metade do século XIX. Segundo nos informa Jussara Quadros, os nomes dos autores originais, como o de E. T. A. Hoffmann, perdiam-se freqüentemente entre uma pletora de escritores anônimos e pseudônimos. A atividade da tradução ou adaptação livre fazia parte da formação do escritor brasileiro, sobretudo daquele que vivia da sua colaboração com a imprensa, como Machado de Assis. Esses primeiros livros publicados em português – como Queda (mesmo que este represente um exemplo tardio) – são por conseguinte produtos da incipiente literatura brasileira, entre plágios, adaptações e traduções não identificadas.

O caso de Queda é especialmente interessante porque, em primeiro lugar, comprova que a prática de se publicarem traduções ou adaptações sem a indicação do autor e título originais entrou pela segunda metade do século XIX. Em segundo, o que é mais óbvio, mas não custa mencionar, porque o seu tradutor veio a ser um dos maiores escritores da literatura brasileira. Por mais controverso que seja o tema de De l´amour des femmes pour les sots, o que fez com que o ensaio fosse debatido e contestado na imprensa belga da época, é muito improvável que o ensaio tivesse causado tanta polêmica entre os críticos brasileiros até hoje se seu tradutor não se tornasse duas décadas mais tarde o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro.

Queda discute o que determina as mulheres na escolha de um amante ou de um marido. Segundo Hénaux, as mulheres escolhem um amante ou um marido com pleno conhecimento do que fazem. Comparam, examinam e só decidem depois de verificar nele a qualidade da toleima. Hénaux cita exemplos da Antigüidade para comprovar que esse tem sido o critério de escolha das mulheres de todos os tempos. Ele distingue a toleima adquirida da toleima inata e conclui que os tolos mais bem sucedidos são aqueles a quem a fortuna, ou a posição social, cedo leva à prática do mundo. Grande parte do ensaio é uma caracterização desses dois tipos masculinos, de como cada um se comporta perante a mulher amada ou a ser conquistada. O homem de espírito, de um lado, é delicado, tímido, respeitoso, considera as mulheres entes de mais elevada natureza que a sua. Ele não fatiga a mulher amada com sua presença insistente e nem a bombardeia com declarações de amor ou cartas vulgares. O tolo, do outro, não tem nenhum escrúpulo. Tem o sangue-frio, é audacioso, conquistador e sente-se seguro da conquista. Importuna aquela que ama para fazer-se notar. Lisonjeia-a com bilhetes amorosos, pequenas provas de amor, como ramalhetes de flores e frutas a serem compartilhadas num jantar.

A polêmica em torno de Queda teve início alguns anos depois da morte de Machado de Assis e ganhou contornos muito diferentes no Brasil: desviou-se do tema da misoginia em si para se concentrar na questão da originalidade e imitação na literatura.

Grosso modo os críticos se dividem em três times. O primeiro, do qual fizeram parte Lúcia Miguel-Pereira e por muito tempo Galante de Sousa, considera Queda texto original de Machado. O segundo time aposta que o ensaio é uma adaptação ou imitação. O terceiro defende que é uma tradução. Fazem parte deste último Agrippino Grieco e, como já sabemos, Jean-Michel Massa. Em seu La jeunesse de Machado de Assis (1839-1870), de 1969, o crítico francês tentou investigar por que Queda foi considerado texto original do estreante escritor brasileiro:

Acima e abaixo, manuscrito de Memorial de Aires: para crítico, Queda influenciou segunda fase do escritor (Manuscritos: Academia Brasileira de Letras)Os críticos [Lúcia Miguel Pereira e Luís Viana Filho] observaram que a peça [Desencantos] retomava um tema já tratado nos treze capítulos de Queda que as mulheres têm para os tolos, texto em prosa cujo título indica sem dissimulação as clássicas intenções misóginas. Mas o raciocínio dos críticos sobre as duas obras foi falseado por um erro. Queda foi publicado em abril-maio de 1861, nas oficinas de Paula Brito. Na página de rosto lê-se: “pequena obrinha, traduzida pelo Sr. Machado de Assis”. Apesar da evidência e num refinamento sutil, pretendeu-se ver na obra um trabalho original. Seria honroso para ele escrever, aos vinte anos, esta “sátira em prosa”, mas, por não acreditar em Machado de Assis, a crítica embarafustou por um caminho sem saída. Queda é sem a menor dúvida uma tradução, e Desencantos é uma adaptação dramática. A originalidade de Machado de Assis foi transpor a prosa satírica para a prosa cênica e, com alguns acréscimos, dela ter feito uma peça curta para o teatro.

Na sua tese complementar, Machado de Assis, traducteur, Massa afirma que comparou a tradução com a quarta edição de De l’amour des femmes pour les sots, pertencente à Biblioteca Nacional de Paris. Ele não publicou, no entanto, um exame detalhado dos dois textos que sustentasse o seu argumento. O resultado disso é que a controvérsia a respeito da autoria de Queda ainda persiste. E como se vê no quadro abaixo (que está longe de ser completo), há além do mais um quarto time, o qual deve ser desconsiderado, porque provavelmente nem chegou a ler o ensaio, já que errou na classificação do gênero literário, considerando Queda peça de teatro.

Os críticos de Machado de Assis assumiram sucessivamente uma atitude defensiva ao considerarem Queda obra original, adaptação, ou imitação, e não tradução. Isso se deveu em parte devido ao difícil acesso ao ensaio de Victor Hénaux, mas também por acreditarem que a tradução é uma atividade inferior em comparação à criação literária. O esclarecimento dos dados bibliográficos e a comprovação de que Queda não é obra original de Machado não diminui, no entanto, o papel que essa tradução desempenhou na atividade criadora do grande escritor brasileiro, como já haviam indicado aqueles mesmos críticos. Eles viram no suposto ensaio da juventude idéias que seriam posteriormente desenvolvidas pelo escritor em seus romances.

Fac-símile da revista A Marmota: tradução publicada em fascículos e sem crédito

Maia Neto, por exemplo, considera Queda um dos pontos de partida para a construção do ceticismo do escritor, o qual evolui da primeira para a segunda fase. Sua hipótese é de que o escritor brasileiro desenvolve a visão do mundo cética “como uma alternativa teórica e prática ao homem de espírito quando a vida exterior se torna hegemônica, ou seja, quando a alternativa para a verdade e moralidade na paz doméstica do casamento não está mais disponível”.

Maia Neto argumenta que as idéias apresentadas em Queda acompanham a criação artística de Machado, da publicação da peça Desencantos (1861) até seu último romance Memorial de Aires (1908). As suas principais personagens céticas são os autores ficcionais dos romances e contos da segunda fase: de Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Memorial de Aires e “O imortal”. A tradução de Queda teria gerado a escrita de Ressurreição (1872), uma vez que esse romance é tido como uma versão narrativa de Desencantos. Além disso, dado que Ressurreição é, de acordo com Helen Caldwell, o germe de Dom Casmurro, podemos deduzir que o romance mais controverso de toda a literatura brasileira tenha sido delineado de acordo com a teoria sobre tipos masculinos e femininos que o escritor havia traduzido aos 22 anos. Dessa forma, teria sido a partir da tradução palavra por palavra que o jovem Machado pôde refletir sobre as idéias de De l’amour e fazer posteriormente emergir obras do seu próprio cunho.

Sendo assim, por mais que a controvérsia sobre a autoria de Queda fique resolvida, há ainda muito a ser pesquisado sobre, por exemplo, o domínio que o jovem escritor possuía do francês, sobre a sua atividade enquanto tradutor, e sobre o próprio papel que as traduções desempenharam na sua criação literária. Como bem observa o autor de uma carta contra De l’amour, publicada no Journal de Liège em 14 de julho de 1859, falta no ensaio um capítulo: aquele que diferencia as mulheres tolas das mulheres de espírito. Segundo o autor ou autora da carta, Hénaux não deveria confundir todas as mulheres num só anátema. Será que Machado não pressentiu essa mesma falha em Hénaux? O que me faz apostar nessa hipótese é a constatação de que o escritor brasileiro dedicou grande parte de sua obra contista e romanesca (pelo menos durante o início de sua carreira e, depois, dos anos 80 aos 90) ao estudo da alma feminina, nas suas diversas manifestações. Essa pode ter sido uma de suas portas de entrada no processo de recriação a partir das idéias de De l’amour. Machado talvez tenha percebido um dos defeitos identificados por um outro oponente de Hénaux em artigo publicado no jornal La Tribune em 7 de agosto de 1858, segundo o ou a qual Hénaux conhece muito pouco as mulheres: a alma feminina seria na verdade inatingível. Não é essa no final das contas a mensagem de Dom Casmurro?

65 anos de especulações

65 anos de especulações

A edição bilíngüe de Queda que as mulheres têm para os tolos que eu publico pela Editora da Unicamp neste ano do centenário da morte do escritor segue intencionalmente os princípios tradicionais da crítica textual para oferecer uma base mais segura para pesquisas futuras. Estabelece definitivamente o texto traduzido por Machado e traz em espelho o texto de Victor Hénaux, o que permite que original e tradução sejam lidos lado a lado por um público que agora não se restringe mais ao próprio Machado e a uma meia dúzia (ou menos) de críticos.

Quem é


Ana Cláudia Suriani da Silva


Ana Cláudia Suriani da Silva é mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e doutora em Letras Modernas pela Universidade de Oxford. Ensina português na Universidade de Birmingham e é Honorary Research Fellow de Birkbeck College, Universidade de Londres. Publicou Linha reta e linha curva: edição crítica e genética de um conto de Machado de Assis pela Editora da Unicamp, em 2003, e vários artigos sobre a obra de Machado de Assis e sobre a relação entre a literatura e a imprensa.

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