O som dos chocalhos indígenas e palmas marcam ato em memória de um ano da morte de Dom e Bruno

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A doutoranda Kellen Vilharva Guarani-Kaiowá, da FCM; a estudante de Biologia, Emily Metänä Ticuna e a indígena Marcela Torres Pankararu: uma herança indígena 

Neste 5 de junho, no Teatro de Arena da Unicamp, o som dos chocalhos indígenas se misturou ao barulho das palmas durante o ato em memória ao jornalista Dom Phillips e ao indigenista Bruno Araújo Pereira, assassinados há um ano na Terra Indígena (TI) do Vale do Javari, oeste do Estado do Amazonas. O campus da Universidade em Barão Geraldo, em Campinas, foi um dos sete locais no Brasil onde houve manifestações em homenagem aos dois defensores dos povos indígenas, sem contar os atos realizados em Washington (Estados Unidos) e Londres (Reino Unido), todos coordenados pelas viúvas de Dom, Alessandra Sampaio, e de Bruno, Beatriz Matos.

Entre a primeira fala do evento, iniciada às 13h10 e proferida pela jornalista Liana Coll – “Para que não deixemos o assunto morrer” –, e o último depoimento, às 14h40, da professora de Antropologia da Unicamp Artionka Capiberibe – “O que está em jogo é o futuro” -, sete estudantes indígenas narraram histórias de luta de seus povos em seus territórios, onde a violência e o perigo ainda persistem. O evento encerrou-se com a apresentação de um toré – dança ritual indígena. O ato na Unicamp foi promovido pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DeDH), com apoio da Secretaria Executiva de Comunicação (SEC) e a participação dos estudantes indígenas da Unicamp. O evento foi transmitido pelo canal da TV Unicamp no YouTube.

Relatos de medo no Javari

A estudante de Biologia Emily Metänä Ticuna recordou o seu contato com Bruno na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em Atalaia do Norte (AM), onde ela atuava como estagiária em 2022. A mãe dela trabalhava com o indigenista e quase acompanhou Bruno e Dom na viagem de canoa na qual sofreram a emboscada e foram assassinados. Ticuna lembra que, antes da viagem, entregou documentos a Bruno e fala da tensão e do trauma que tudo isso lhe causou. “Estagiar na Funai foi tenso. Eu não podia sair com a camiseta da Funai porque tinha medo de algum ataque”, lembra a estudante.

Filha de líderes indígenas, Emily Ticuna fala que esteve frente à frente com os suspeitos do assassinato de Dom e Bruno, que chegaram à Funai armados tentando abrir as portas do local. “Achei que eu ia morrer. Estava só eu e um colega. Depois disso, perdi a confiança nas pessoas.” De acordo com a estudante, a Funai continua sucateada e o efetivo policial é insuficiente para garantir a segurança na região. “Foi tudo muito triste e marcante. Dói ver a Funai sucateada por conta do desgoverno anterior. E agora, com a votação do PL [Projeto de Lei 490/07 sobre o marco temporal], como é que a gente fica?”, questiona.

O estudante indígena Wellison Reis Batalha Marubo também é da região do Vale do Javari. “Até agora, as ações de segurança na região não foram efetivadas”, protestou. “Existe o crime organizado. Antes havia apenas pescador e caçador, mas agora eles são aliciados pelo narcotráfico”, denuncia o estudante. Wellison Marubo falou da importância do ato em homenagem a Dom e Bruno e lembrou o assassinato do indigenista Maxciel Pereira dos Santos, em 2019, em Tabatinga (AM), no Vale do Javari, onde em média são assassinados 170 indígenas por ano. Segundo Wellison, essa é a segunda maior terra indígena do país, abrigando sete etnias diferentes (Mayuruna/Matsés, Matis, Marubo, Kulina-Pano, Kanamari, Korubo e Tsohom-Dyapá).

O estudante Main Matis, do curso de História, compartilhou uma lembrança afetuosa sobre seu encontro com Bruno no Vale do Javari, quando tinha apenas 10 anos de idade. “Lembro muito bem dele.” O pai de Main era cacique e convidou Bruno para caçar na mata. Na volta, Bruno perdeu os óculos. Os indígenas passaram a chamar esse caminho de caça de “caminho onde Bruno perdeu os óculos”.

Os estudantes indígenas Main Matis, Wellison Reis Batalha Marubo e Jeremias Akroá Gamela: lembranças de outros assassinatos
Os estudantes indígenas Main Matis, Wellison Reis Batalha Marubo e Jeremias Akroá Gamella: lembranças de outros assassinatos

Violência em outras regiões 

A doutoranda Kellen Vilharva Guarani-Kaiowá, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, mora há um ano em Campinas. Ela comemorou a iniciativa do ato em memória ao indigenista e ao jornalista. “A Universidade tem que ter esse papel. É importante falarmos também das nossas realidades muito diferentes da vida urbana.” Kellen Kaiowá fez graduação e mestrado em Dourados, próximo à sua aldeia, Jaguapiru, no Mato Grosso do Sul, onde os casos de violência contra os indígenas se repetem.

O avô dela, cacique Marcos Verón, foi brutalmente assassinado há 22 anos na luta pela retomada da terra ancestral de seu povo. “É importante falarmos do assassinato de Dom e Bruno e da luta dos povos indígenas para que isso não se repita no futuro e para que as novas gerações não passem por isso.” A estudante fala que hoje há 11 líderes indígenas presos no Mato Grosso do Sul, onde predomina a produção de soja, cana-de-açúcar e milho por grandes produtores. “Eles mandam em tudo e conseguem prender os líderes indígenas.” De acordo com Kellen Kaiowá, a votação do PL 490/07 pode provocar uma tragédia porque “os Guarani preferem morrer ali onde estão enterrados os nossos antepassados”. Ela agradeceu à Unicamp pelo apoio e disse que o espírito e a memória de Dom e de Bruno estão vivos na mata. 

O estudante indígena Jeremias Akroá Gamela, do Maranhão, lamentou ter que falar de violência ao invés de compartilhar seus conhecimentos sobre as culturas e os modos de vida indígenas. Até 2013, seu povo não tinha reconhecimento do próprio Estado. “Sobrevivemos da pesca, do açaí e do coco babaçu, mas os grandes produtores queriam impedir de entrarmos em nosso território (a oeste do Maranhão). A nossa terra não era nossa, era do agronegócio”, disse Akroá Gamela à plateia predominantemente indígena. Ele também lembrou do assassinato, há 23 anos, do líder Cacique Chicão e do ataque ao seu povo, em abril de 2017, promovido por fazendeiros e políticos. “São essas pessoas que querem nos matar.”

As professoras Josianne Cerasoli (IFCH) e Sônia Seixas (Cameja) e a ex-prefeita de Campinas Izalene Tiene: crime ocorreu no Dia Mundial do Meio Ambiente
As professoras Josianne Cerasoli (IFCH) e Sônia Seixas (Cameja) e a ex-prefeita de Campinas Izalene Tiene: crime ocorreu no Dia Mundial do Meio Ambiente

Visibilidade e demarcação

A professora Sônia Seixas, presidente da Comissão Assessora de Mudança Ecológica e Justiça Ambiental (Cameja) da Unicamp, lembrou em sua fala que o crime violento contra Bruno e Dom ocorreu no Dia Mundial do Meio Ambiente. “A impunidade a respeito do que ocorre nessas regiões é quase como um projeto.” A ex-prefeita de Campinas Izalene Tiene, eleita pelo Partido dos Trabalhadores (PT), também contou sobre seu encontro com Bruno na época em que ele era coordenador da Funai em Atalaia do Norte. Tiene atuou, entre 2012 e 2016, como missionária da Igreja Católica no Alto Solimões, em ação contra o tráfico de mulheres. “Ele era muito zeloso com os indígenas”, lembra. “Eu quero testemunhar o quanto é importante este ato de luta na Unicamp, porque é preciso dar visibilidade aos indígenas nas cidades.”

A indígena Marcela Torres Pankararu destacou que há uma herança indígena e, ao mesmo tempo, violência contra os povos originários em todos os lugares do Brasil. Há cidades na região de Campinas com nomes indígenas, como Mogi Mirim (que quer dizer pequeno rio das cobras, na língua tupi), Mogi Guaçu (cujo nome significa grande rio das cobras) e Jaguariúna (rio da onça preta). Os últimos indígenas de Mogi Mirim foram queimados, disse Marcela. “Aqui também houve assassinatos.” A indígena convidou todos os presentes para a mobilização contra o PL 490/07, que será votado no Senado neste dia 7 de junho (quarta-feira) e passa a ter outro número, PL 903. “Falar sobre demarcação gera um sentimento de agonia e de incertezas. O momento é de luta, porque estamos em guerra.” Marcela Pankararu agradeceu pelo espaço de fala e leu a carta produzida pelos estudantes indígenas da Unicamp contra o marco temporal.

As professoras Artionka Capiberipe (IFCH) e Chantal Medaets (FE) destacaram a importância do ato
As professoras Artionka Capiberipe (IFCH) e Chantal Medaets (FE) destacaram a importância do ato

Memória e legado

“A importância do ato não é só de prestar homenagem a eles, mas é de ampliar”, disse a professora Chantal Medaets, da Faculdade de Educação (FE) e uma das organizadoras do ato. De acordo com Medaets, há uma forte identificação de muitos professores da Universidade com Dom e Bruno, que eram não indígenas aliados na luta dos – e pelos – povos indígenas. “Nós temos aí o PL votado pela Câmara [dos Deputados], que agora passou para o Senado. Temos que lutar contra ele”, afirma a professora, que convidou estudantes de diferentes regiões para falar sobre suas lutas.

A jornalista Liana Coll, que também participou da organização do evento, discorreu sobre sua visita ao Vale do Javari para a cobertura do desaparecimento de Dom e Bruno, cujos corpos foram encontrados dez dias depois do crime. Ela chegou no dia 10 de junho à região, com o fotógrafo Antonio Scarpinetti, também da SEC Unicamp. “O que presenciamos foi mais uma violenta história de um país que insiste em deliberar pelo genocídio das populações originárias”, disse Coll.

Para a professora Josianne Cerasoli, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e organizadora do Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Vladimir Herzog/Unicamp, o ato faz relembrar a dor da perda, mas é importante atualizar o pesar por esses atos de violência que se repetem, além de reforçar o papel da Universidade nessas situações:  “A importância desse ato na Unicamp é que estamos em uma universidade pública. Se a universidade pública não estiver comprometida com a vida no planeta, então fecha tudo. Temos que falar de vida digna, justa para todos os seres existentes”. Segundo Cerasoli, a presença dos indígenas na Unicamp transforma a Universidade. Ela conta que a ideia do ato surgiu durante seu contato com Alessandra Sampaio, viúva do Dom, que não sabia da presença de estudantes indígenas na Unicamp nem que havia uma pauta ambiental na Universidade. Ao saber disso, Sampaio convidou a Unicamp para fazer parte dos atos realizados no Brasil, nos Estados Unidos e no Reino Unido.

“Parabéns a todos os que se envolveram na organização do evento”, disse emocionada a antropóloga Artionka Capiberibe, que fez a última fala do ato, antes da apresentação de música e dança indígenas. Ela falou da necessidade urgente de trazer aliados para a causa indígena. “O que está em jogo é o futuro. As principais reservas de conservação do bioma estão em terras indígenas.” Capiberibe também lamentou ter que falar de perdas que não deveriam ter acontecido, como as mortes de Dom, de Bruno e de “todos os que tombaram”.

Os jornalistas da SEC Liana Coll e Antonio Scarpinetti: cobertura do desaparecimento de Dom e Bruno há um ano 
Os jornalistas da SEC Liana Coll e Antonio Scarpinetti: cobertura do desaparecimento de Dom e Bruno há um ano 

Confira mais imagens do ato em memória de Dom e Bruno:

Estudantes indígenas narraram histórias de luta de seus povos em seus territórios
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Imagem de capa
Manifestações foram coordenadas pelas viúvas de Dom, Alessandra Sampaio, e de Bruno, Beatriz Matos

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